Outros passarão, Quintana passarinho

Outros passarão, Quintana passarinho

Nos 30 anos da morte de Mario Quintana, o Correio do Povo discute o que é preciso para manter viva a memória de um autor do porte do poeta gaúcho

Por
Correio do Povo

“Se tu me amas, ama-me baixinho
Não o grites de cima dos telhados
Deixa em paz os passarinhos
Deixa em paz a mim!
Se me queres,
Enfim,
Tem de ser bem devagarinho, amor,
Que a vida é breve, e o amor mais breve ainda…”

(O Bilhete)

Por Letícia Pasuch e Carlos Corrêa

Pouco importa quantos anos se passam entre o nascimento e a partida de um poeta. A passagem por esse mundo é inevitavelmente breve e fica sempre a sensação de que o tempo, logo ele, deveria rever suas regras para deixá-los mais um pouco por aqui. Ou talvez mais um muito. Seja como for, Mario Quintana nos fez companhia por 87 anos. Nasceu em 1906, no Alegrete, e nos deixou em 5 de maio de 1994. Três décadas depois, a qualidade do poeta não se discute. No entanto, com uma realidade atual completamente distinta daquela, cabe um questionamento: a manutenção da memória de um autor como Quintana - e tantos outros do mesmo porte - acontece ao natural ou é preciso que as instituições e personagens ligados a ele sigam em um trabalho incessante para manter acesa essa chama?

Talvez seja conveniente que a discussão comece por uma obviedade, traduzida na palavra mais repetida pelos entrevistados para esta reportagem quando questionados sobre o poeta: qualidade. “Quintana precisa ser lembrado pela sua qualidade. Ele foi um poeta de valor excepcional, reconhecido e festejado pelos seus contemporâneos. Só isso já justificaria. Temos que conhecer o que tem qualidade, o que é o caso dele”, aponta Rachel Valença, coordenadora do acervo de literatura do Instituto Moreira Salles (IMS), no Rio de Janeiro, onde hoje está a coleção do poeta.

Professora convidada do PPG-Letras da Ufrgs e pesquisadora do CNPQ, Maria da Glória Bordini foi por anos responsável pelo acervo de Quintana quando o material estava na PUCRS, até 2009. Para ela, o diferencial está no estilo do autor. “Seu sucesso se deve a uma expressão poética aparentemente simples, muitas vezes jocosa, tingida por vezes de melancolia, por outras de ironia. Sua obra é pessoal, de forte lirismo, melódica, sem experimentalismos que travem a compreensão. Tudo isso a aproxima de quem gosta de poesia, seja um letrado ou um cidadão comum”, aponta, lembrando que até hoje seus poemas estão nas memórias tanto de quem os decorava por gosto, como por estudantes do ensino básico, que os aprendiam via livros didáticos.

"Ele conseguiu algo que é mágico. Todos o conhecem. Tu podes não saber uma poesia, mas conhece o Quintana. Acho que o Quintana é pop”, afirma Ivan Pinheiro Machado

Nas palavras do editor da L&PM Ivan Pinheiro Machado, o poeta gaúcho transcende a própria obra, o que raramente acontece. “Ele conseguiu algo que é mágico. Todos o conhecem. Tu podes não saber uma poesia, mas conhece o Quintana. Acho que o Quintana é pop”, exalta, lembrando casos como os de Vinicius de Moraes e Carlos Drummond de Andrade, para em seguida completar: “Ele é seguramente um dos poetas mais importantes do Rio Grande do Sul e tem uma obra que é uma unanimidade. Conseguiu ser ao mesmo tempo de alto nível literário e popular, o que é muito importante”. Machado dá um exemplo bastante prático que demonstra de certa forma o fenômeno Quintana. “A L&PM tem o livro que mais vende dele, que é o ‘Quintana de Bolso’. Só esse livro já vendeu mais de 150 mil exemplares. Tu contas nos dedos um livro que vendeu 150 mil. E segue vendendo. Mas não é uma obra que tem um pico de vendas, não é um livro que tem a curva, como a gente diz. Ele tem uma perenidade que o livro normal não tem, ele não é um best seller, mas vende há 20 anos”, revela, referindo-se à versão de bolso que conta com cerca de 200 poemas do escritor.

Apesar de todas as qualidades, ainda há, no entanto, um sentimento geral, em especial no Estado, de que Quintana não tem um reconhecimento do tamanho de sua obra. “No Sul, ele é lembrado com frequência, embora menos do que no passado, quando tínhamos suplementos literários e, proporcionalmente, penso eu, as pessoas liam mais. Hoje as livrarias estão fechando. Em outros estados, Quintana é mais lido e citado por professores e estudiosos de nossa literatura”, avalia o escritor e amigo do poeta, Sergio Faraco. Os motivos pelos quais isso acontece podem ser muitos, dependendo do ponto de vista, mas levariam invariavelmente a argumentos subjetivos. De qualquer forma, Faraco arrisca algumas relações: “Às vezes penso, sem muita convicção, que ele poderia ser mais conhecido no centro do país se tivesse sido eleito para a Academia Brasileira de Letras. Mas, por outro lado, penso também, e convicto, que a ABL não o merecia. Uma Academia de Letras que recusa Mario Quintana e Fábio Lucas para eleger um jornalista sem obra da Rede Globo tem mais é que fechar”.

Mapa do endereço de Manuel Bandeira no Rio de Janeiro feito para Mario Quintana | Foto: Arquivo Mario Quintana / Acervo IMS / CP

O ACERVO

Porto Alegre tem uma rua Mario Quintana. Tem um bairro Mario Quintana. Tem a Casa de Cultura Mario Quintana. Mas não conta com o acervo de Mario Quintana. Desde 2009, o material está no Rio de Janeiro, no Instituto Moreira Salles (IMS). Na origem da mudança, estaria um protesto nada velado dos familiares responsáveis, tanto pelo acervo de Quintana, como de Erico Veríssimo, pelas demissões inesperadas por parte da universidade de duas profissionais que cuidavam da coleção. No que diz respeito ao material de Quintana (e o mesmo vale para Erico), é ouro em seu estado mais puro. São mais de mil documentos de produção intelectual, cerca de 400 fotos, 2 mil correspondências e mais de 2,7 mil recortes de jornal que o próprio poeta guardava sobre os mais variados assuntos. “Não eram apenas sobre ele, mas também sobre coisas que ele achava interessante. O que uma pessoa seleciona para guardar diz muito sobre quem é esse autor, esse intelectual. Esse acervo permite uma aproximação não só ao poeta, mas também à pessoa”, avalia Rachel Valença, do IMS.

Aqui cabe a lembrança que o acervo não abriga as obras em si, mas sim a produção e os arquivos que pertenciam aos escritores, como originais, rascunhos, fotos e recortes. “O filé mignon é a produção intelectual. Um pesquisador que se debruçar sobre esse material vai encontrar muitas coisas inéditas e interessantes”, observa Rachel. No caso do acervo de Erico, existem conversas preliminares para que parte do material retorne ao Rio Grande do Sul, mas até o momento o mesmo não ocorre com Quintana. A coordenadora do acervo de literatura do IMS revela que existem discussões regulares acerca do lugar onde os arquivos de autores gaúchos devem permanecer. “Isso suscitou uma discussão sobre como seria importante ter esse material no Sul, afinal a maior parte dos interessados são pessoas daí que têm que se deslocar até aqui ou algo do tipo. Por outro lado, defendemos a permanência aqui, já que são autores nascidos no Rio Grande do Sul, mas que ganharam projeção nacional e internacional”, pondera.

"O que uma pessoa seleciona para guardar diz muito sobre quem é esse autor, esse intelectual. Esse acervo permite uma aproximação não só ao poeta, mas também à pessoa”, observa Rachel Valença

O material que hoje está no Rio de Janeiro guarda algumas preciosidades. À época coordenadora de Literatura do IMS, Elvia Bezerra trouxe à tona em 2019 um mapa que pode mudar um entendimento que se tinha até então. De acordo com um texto do cronista Paulo Mendes Campos, publicado em 1954 na Revista Manchete, Quintana guardava admiração especial por Manuel Bandeira, mas ambos nunca tiveram a oportunidade de se encontrar pessoalmente. A partir dos estudos do acervo, porém, Elvia lembrou não apenas que o gaúcho morou no Rio entre 1935 e 1936, como também guardara um mapa desenhado à mão do endereço onde Bandeira residia, na Lapa, e, dada a grafia, conclui-se que o desenho foi feito pelo próprio autor pernambucano. Ou seja, imagina-se que um convite formal pelo menos foi feito.

Mario Quintana na CCMQ | Foto: Paulo Nunes / CP Memória

MEMÓRIA VIVA

De nada vale uma obra se não houver na outra ponta alguém para interagir, seja com um livro, um filme, uma exposição, uma dança, o que for. Afinal, arte sem público não é arte. A obra de um poeta, mesmo um do porte de Mario Quintana, precisa circular para se manter viva. Um prédio histórico, por exemplo, demanda manutenção para permanecer em bom estado, mas esse é um processo objetivo. No caso de um texto, um poema, por mais que ele esteja impresso nas páginas de milhares de livros, aquele conteúdo em si é subjetivo. Mas como se faz manutenção em algo subjetivo?

“A experiência poética que seus textos proporcionam toca o inefável, assim como o cotidiano que todos conhecem. Por essas razões, por estar junto da vida do leitor e fazê-lo pensar nas dimensões profundas da existência como quem não quer nada, precisa ser constantemente divulgado, seja nas escolas, em espetáculos, em concursos de poesia recitada, para que sua obra continue circulando e atinja novas gerações”, aponta a professora e pesquisadora Maria da Glória Bordini.

Essa busca pela circulação é encarada como um dos maiores desafios para quem estabelece como meta a presença constante - ou o mais próximo disso - de autores em discussões e temas atuais. “A nossa inquietação nesse sentido é estar em constante preocupação com a extroversão do acervo. Temos documentos, livros, mas isso é pouco. É preciso que tenhamos compromisso com a extroversão dessa obra”, explica Rachel Valença. Neste sentido, Quintana foi um dos escolhidos para fazer parte de um projeto chamado “IMS Convida”, realizado durante a pandemia da Covid-19, em que o instituto convidou jovens atores para lerem em vídeo poemas de autores. O poeta gaúcho também foi um dos escolhidos como personagem da coleção “Cadernos da Literatura Brasileira”, 27 livros produzidos pelo IMS desde 1996, sempre centrado em um autor ou autora - Quintana teve sua edição em 2009. “Temos esse desafio de tornar as pessoas que estão aqui no acervo não apenas um nome. Criamos o projeto IMS no Vestibular, sobre essas leituras para o Enem, estamos trazendo especialistas para falarem sobre a carreira dos escritores e manterem vivas essas obras. Lamentamos muito não poder fazer mais”, afirma a coordenadora de literatura do instituto.

Em Porto Alegre, o espaço cultural que leva o nome do poeta e que por anos foi o hotel em que ele morava, a Casa de Cultura Mario Quintana (CCMQ), dedica com alguma constância uma programação voltada a ele, com a missão de preservar o patrimônio público representado pela obra e trajetória pessoal do poeta. Além de possuir um acervo com manuscritos, fotos e demais materiais referentes ao trabalho e a vida do poeta, no ano passado, por exemplo, o espaço promoveu em julho a “Semana de Aniversário do Poeta Mario Quintana”. O evento contou com visitas agendadas, mediação teatralizada para o público, conversas com especialistas e um sarau. Também em 2023 foi apresentada uma nova exposição de longa duração sobre o autor, sua obra e sua relação com o espaço, antes Hotel Majestic e hoje CCMQ.

"(O autor) precisa ser constantemente divulgado, seja nas escolas, em espetáculos, em concursos de poesia recitada, para que sua obra continue circulando e atinja novas gerações”, lembra Maria da Glória Bordini

Nos últimos 10 anos, a Secretaria do Estado da Cultura (SEDAC) também organizou diversas programações em homenagem ao aniversário do poeta, com mediações temáticas, palestras e sarau de poesia. Em 2022, a Casa de Cultura Mario Quintana e o Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul promoveram o projeto “Contém POA”, com a proposta de estabelecer diálogos, transversalidades e intertextualidades entre a poesia de Quintana e o acervo do Macrs, com evocações à identidade de Porto Alegre, integrando com comemorações dos 250 anos da cidade. No mesmo ano, houve, também, ações educativas voltadas ao trabalho quintanar de tradução, como a “Tradução: Mário Quintana e em Busca do Tempo Perdido”, com reflexões sobre o trabalho de tradução de Quintana, que dedicou-se aos primeiros quatro volumes da obra de Marcel Proust "Em busca do Tempo Perdido" (1914). “O Instituto Estadual do Livro já desempenhou importante papel nesse processo, tomara que persista. A Secretaria Municipal de Cultura é outro bom exemplo, tem atuado bastante na valorização do livro e da leitura. As feiras também são estimulantes”, lembra Sérgio Faraco.

Para além de ações culturais, contudo, há uma noção bastante clara no meio literário de que as autoridades precisam investir com mais força em projetos pedagógicos, de forma que principalmente os mais jovens cresçam habituados com nossos autores. O problema é que essa ainda é uma meta longe de ser alcançada. “Em um Estado sem comprometimento com o livro como o Rio Grande do Sul, é um milagre que um poeta como o Quintana ainda seja lido. Um poeta da importância dele deveria ser mais lido. Mas somos um estado sem política de livros, que não provê suas bibliotecas. Isso no nível estadual, municipal então, nem se fala”, critica Ivan Pinheiro Machado. “As autoridades culturais do estado e do município poderiam dedicar maior atenção ao poeta, incentivando eventos de difusão, buscando promotores culturais que saibam trabalhar com poesia junto às escolas e ao público”, defende Maria da Glória.

Mario Quintana registrado por Dulce Helfer | Foto: Dulce Helfer / Divulgação / CP

AUSÊNCIA NO VESTIBULAR

Prática disseminada entre universidades brasileiras a partir dos anos 1990, as leituras obrigatórias foram adotadas para o vestibular da Ufrgs pela primeira vez em 1999, com a recomendação de obras específicas de cinco autores: Luís de Camões, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Erico Verissimo e João Cabral de Melo Neto. De lá para cá, mais de 25 anos depois, de acordo com um levantamento feito pelo Correio do Povo, há um autor bastante conhecido dos gaúchos que nunca esteve entre as indicações para a prova mais disputada do Estado: Mario Quintana.

Não que o escritor não conste nas leituras de outras universidades. No ano passado, por exemplo, dois poemas de Quintana - “Poeminho do contra” e “Estou sentado sobre a minha mala” - constavam da relação divulgada pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste). Bem antes, em 2009, “Apontamentos de história sobrenatural” fazia parte da lista da Universidade Federal do Rio Grande (Furg). Na Ufrgs, no entanto, 26 anos depois, nada.

A ausência do poeta nas provas da universidade, porém, não é vista necessariamente como um sinal de desrespeito. Ainda que exista quem, como Rachel Valença, encare a notícia com surpresa, de forma geral a análise é de que não é a simples inclusão na lista de leituras que mudaria a forma como o poeta é visto. “O dever da universidade é difundir os autores atendendo ao princípio democrático da diversidade e ao princípio da relevância cultural. Quintana nunca integrou a lista de leituras obrigatórias da Ufrgs? É possível que o vejam como menor em relação a poetas como João Cabral ou Drummond. Mas já incluíram Vinícius... Ou talvez precisem considerar poetas das chamadas minorias. Mas lembrem que houve grita quando só mulheres apareceram na lista. Não sei se estar nessa lista de fato modifica o âmbito das leituras dos jovens”, lembra a professora e pesquisadora Maria da Glória Bordini.

Em uma linha parecida, Ivan Pinheiro Machado acredita que a leitura, principalmente de um público jovem, não pode ser imposta, sob pena de ter o efeito contrário. “Não adianta colocarem só para fazerem uma decoreba e depois esquecerem. Quando começarem a obrigar, deixa de ser pop e vira um saco. Ele é consumido por prazer”, afirma o editor da L&PM.

Mario Quintana | Foto: Carlos Rodrigues / CP Memória

HÁ COMO FURAR A BOLHA?

Uma das (piores) características da era das redes sociais é o consumo de informações restrito às chamadas “bolhas”, nas quais as pessoas sequer ficam sabendo o que acontece fora dali, tão reduzidas são as fontes de informação do seu círculo. As consequências são negativas em todas as áreas possíveis e imagináveis, mas no que diz respeito ao universo literário, ou mesmo artístico, a questão é: como furar a bolha e fazer com que um autor como Mario Quintana (e vale o mesmo para outros poetas e escritores) chegue a públicos que o ignoram por completo e se mostram resistentes a qualquer ação que venha de fora?

“A poesia de Quintana, ou de qualquer outro poeta, dificilmente vai furar essas bolhas se não houver estímulo à leitura em todas as etapas educacionais”, avalia o escritor Sergio Faraco. Para a professora e pesquisadora Maria da Glória Bordini, há um outro fator a ser levado em conta, principalmente quando estamos falando de um público mais jovem. “Diria que as novas gerações que vieram a conhecê-lo desde os anos 1970 agora envelheceram e nem sempre transmitiram aos filhos seu amor por seus versos. Atualmente a poesia mais atraente para os jovens é a dos slams, pela estrutura de desafio e pela gestualidade”, aponta, referindo-se ao gênero que tem como característica versos declamados em público, muitas vezes inspirado pelo rap.

"Atualmente a poesia mais atraente para os jovens é a dos slams, pela estrutura de desafio e pela gestualidade”, aponta Maria da Glória Bordini

Mas há sim espaço para acreditar em um futuro melhor. Rachel Valença, do IMS, revela que há interesse por parte dos mais novos na poesia, e não apenas pelo viés acadêmico. “Por mais estranho que pareça, existe nas novas gerações um grande interesse por poesia, não só por produzir, mas também por conhecer. Pelo público que nos procura, há uma faixa muito grande de jovens. Fico feliz que esse interesse se renova”, celebra. A partir daí a questão passa a ser como lidar com a realidade deste público. E o primeiro ponto talvez seja jogar o jogo sem preconceitos. “Procuramos atingir esse público. A nossa coordenadoria de literatura está no Instagram, por exemplo. É preciso falar com um público que não vai a uma livraria comprar um livro, mas que lê, que consome. Não podemos ter preconceitos com as novas mídias. É o que há para o momento”, completa.

Peça Sobre Anjos & Grilos | Foto: Daniel Masutti / Divulgação / CP

PARA ALÉM DA POESIA

Mario Quintana estabeleceu diálogos por meio de outras diversas facetas da arte, como a música e o teatro. Esse uso de diferentes elementos em cena contribuiu para retomar o contato de crianças e adultos com a poesia. Quem testemunhou que unir a poesia com a música forma uma perfeita harmonia é o músico Cláudio Levitan, um dos braços por trás da “Opereta Pé-de-Pilão”, baseada no livro “Pé de Pilão”, de 1968. Na obra, o poeta conta a história do menino que é transformado em um patinho amarelo por uma bruxa e quer tirar um retrato de sapato para reencontrar a avó perdida.

A primeira exibição do musical foi em 2006, nas homenagens do centenário de nascimento do poeta. Cláudio desenhou os personagens e compôs as canções junto com o músico e compositor Nico Nicolaiewsky. Levou, inclusive, as ideias e esboços da história para o próprio Quintana avaliar. O trabalho foi montado em três meses, com a direção de Mário de Valente. “O texto foi adaptado para teatro e foi um sucesso”, recorda, citando que a opereta circulou até 2023, inclusive em São Paulo.

“Descobri que eu poderia falar várias coisas que eu acredito através das palavras dele, que são também questões cruciais nos nossos tempos”, revela Deborah Finocchiaro

No mesmo ano de circulação da Opereta, também estreou a peça “Sobre Anjos & Grilos”, roteirizada e apresentada por Deborah Finocchiaro. O espetáculo unia a fala, o gesto, a poesia, as artes plásticas e a música para interpretar e cantar poemas de Quintana, com a promessa de revelar não apenas o lírico dos poemas, mas sua face pouco conhecida por meio de entrevistas e as suas reflexões que questionam a sociedade. A própria atriz nomeava-se ignorante sobre a obra de Quintana antigamente. Mas, assim que a conheceu, encantou-se e desejou trabalhar em cima dela. Aquilo que ele falava ela também queria dizer. “Descobri que eu poderia falar várias coisas que eu acredito através das palavras dele, que são também questões cruciais nos nossos tempos”.

Deborah também acredita que as diferentes facetas da arte possam auxiliar a levar a poesia de Quintana para mais pessoas e que permaneça viva por mais tempo. “A poesia foi muito afastada das pessoas pela maneira como é apresentada para os jovens e para as crianças”. Ela emenda: “É legal quando a gente consegue dizer um poema e o espectador entende o que está sendo dito”.

Durante 10 anos, a peça percorreu praticamente teatros e festivais de todo o Brasil, com mais de 180 apresentações e 17 prêmios colecionados. Em 2016, porém, o espetáculo foi impedido de circular. Primeiramente, por uma decisão da própria sobrinha do poeta, Elena Quintana. Após a sua morte, a agência Riff, localizada no Rio de Janeiro, passou a ser detentora dos direitos autorais da obra e ainda não permite que Deborah possa executar a peça.

Mario Quintana | Foto: José Ernesto / CP Memória

PRESERVAÇÃO DA OBRA

Uma das maiores preocupações no trabalho de Cláudio Levitan era não mexer no texto de Quintana. “Foram feitas várias adaptações do ‘Pé de Pilão’ porque diziam que as crianças não conseguem entender a história, por ser muito complexa. E eu dizia que essa história as crianças entendem, mas temos que cantar de uma maneira diferente”. Apenas alguns trechos eram adaptados em função de interpretações do mundo moderno. “Tinha algumas questões um pouco equivocadas, no meu ponto de vista, na escrita, e em vez de ser rigoroso na manutenção do texto do Mario eu fiz algumas adaptações, por exemplo, para tirar um caráter que poderia ser racista”, explica Cláudio.

O artista acredita que as crianças entendem a peça mais do que os adultos. “Eu atribuo a isso às tais palavras escalafobéticas que as crianças gostam e os adultos se atrapalham”. Parte do texto diz, por exemplo, que “fazia tanto barulho que o pato sentiu engulho”. “Os adultos quando ouvem a palavra engulho, tentam decifrar, e, ao parar para pensar nessa palavra, já perderam dois três versos e a história foi adiante. Têm várias palavras que trancam os adultos.” O músico lembra com orgulho de ter assistido às crianças recitarem a poesia de Quintana de cor. “Porque esse poema não é um poema simples, é super rico, inteligente, com uma métrica perfeita da língua portuguesa, com palavras muito interessantes que aumentam o repertório e vocabulário das crianças”. Para Cláudio, a força da poesia de Mario Quintana transcende as gerações: ”Ele não é um poeta de época, é um poeta de assuntos eternos”.

"Quintana atende uma demanda das pessoas, ele fala de coisas das pessoas de uma maneira divertida e leve, a poesia dele é cotidiana, ela é uma não é uma poesia para se exibir é uma poesia para vivenciar”, lembra Cláudio Levitan

Uma importante maneira de preservar as poesias, defende o músico, é por meio da música. No caso do poema “Pé de Pilão”, ele argumenta que o formato de canção faz com que crianças – e também adultos – consigam gravar de maneira mais fácil, pelo formato que permite encontrar as palavras no ritmo: “A poesia é uma arte muito profunda e ela por si só se sustenta. A canção complementa e os outros formatos de arte também ajudam”. Cláudio defende a necessidade de preservação da memória de Quintana através das suas próprias poesias. “Ele atende uma demanda das pessoas, ele fala de coisas das pessoas de uma maneira divertida e leve, a poesia dele é cotidiana, ela é uma não é uma poesia para se exibir é uma poesia para vivenciar”.

Nas palavras de Deborah Finocchiaro, Quintana é pouco aproveitado, se levada em conta sua obra. Para ela, isso se deve à precariedade do sistema educacional, que “afasta ao invés de aproximar”, e defende uma revolução na educação. “Ele tem que ser muito mais conhecido, é uma obra que tem que entrar com tudo dentro das escolas das universidades”. Nas palavras da artista, a poesia é um instrumento de reconhecimento do próprio mundo do escritor, do mundo dos outros e talvez dos outros mundos. “Uma poesia dele diz ‘para mim, ser poeta significa ser gente’, e ser gente no meu caso significa ser eu mesmo, é uma afirmação do meu eu. Para mim, ele é um dos autores que mais revela essa profundidade humana. Ele é um tradutor do ser humano com toda sua poesia”, completa.

Mario Quintana e Dulce Helfer | Foto: Arquivo Pessoal / Divulgação / CP

AMIZADE ETERNIZADA

As maiores memórias do escritor alegretense estão vivas no pequeno círculo de amigos com quem ele estabeleceu laços. Dulce Helfer é uma dessas pessoas: a jornalista tornou-se a fotógrafa oficial de Quintana e com quem ele mais conviveu na sua última década de vida, o acompanhando em diversos momentos e revelando a intimidade através das lentes. Eles se conheceram em 1985, por meio de uma pauta para o veículo na qual ela trabalhava na época. Eram 50 anos a separar os dois – ela tinha 30; ele, 80 –, mas ambos tiveram uma conexão que o próprio poeta dizia ser “de outras vidas”. “A gente se identificou muito sobre vários aspectos da vida”, conta Dulce. Nesse primeiro encontro, ele logo perguntou: "quando tu vens me visitar para um café?".

À época, o poeta vivia no Hotel Royal, na rua Marechal Floriano. Logo depois, mudou-se para o Porto Alegre Residence Hotel, na André da Rocha, onde residiu nos últimos dez anos de vida. A aproximação permitiu diversos encontros, religiosamente regados a café preto, mousse de chocolate e conversas. Nesses encontros, Quintana lia seus poemas para Dulce, alguns em primeira mão. Ela, inclusive, ainda guarda vários originais, com a letra cursiva reconhecível de longe. Além das dedicatórias que o escritor fazia nos poemas, os amigos trocavam bilhetes carinhosos, ainda guardados. Um deles, ela lembra todas as palavras de cor: “Meu amor é da cor do arco-íris, não tens ideia o que acontece dentro de mim a me sorrires. Até parece um caso de pura magia”.

“Ele era uma pessoa muito espirituosa. Tinha um humor, e muitas vezes podia ser um humor ácido, mas era uma pessoa espirituosa o tempo todo, e a obra dele vinha realmente de dentro dele”, recorda Dulce Helfer

Notívago, Quintana não tinha horário para dormir, e chamava a amiga para visitá-lo até 1h da madrugada. E ela ia. Um dia, inclusive, levou ninguém menos que Caetano Veloso para conhecer o poeta, que pediu a Dulce que trouxesse “um grande músico”, pois ele praticamente não escutava música – nem gostava, na verdade. Ele era como “o poeta João que não gosta de música”, que Caetano cantou em “Outro Retrato”.

Para Dulce, a oportunidade de ser autora da maioria das fotos de Quintana disponíveis na internet foi uma maneira de eternizá-lo. “Fotógrafo tem a mesma função do poeta: eternizar o momento que passa”, já dizia o próprio Quintana. Com a máquina fotográfica sendo uma extensão de si mesma, Dulce registrava sem saber como as fotografias poderiam ser eternizadas. Para ela, Quintana precisa ser lembrado por suas reflexões, que versavam desde o cotidiano até a vida e a morte. “Ele era uma pessoa muito espirituosa. Tinha um humor, e muitas vezes podia ser um humor ácido, mas era uma pessoa espirituosa o tempo todo, e a obra dele vinha realmente de dentro dele”, diz.

Mario Quintana e Caetano Veloso, registrados por Dulce Helfer | Foto: Dulce Helfer / Divulgação / CP

E SE?

A trajetória da poesia de Mario Quintana se confunde com a história da própria Capital. Seus poemas falam da cidade e bairros e ruas levam seu nome. O que Quintana diria de lugares que pertencem ao imaginário porto-alegrense mas que ele não pôde conhecer? Convidamos cinco poetas e escritores – , Celso Gutfreind, José Eduardo Degrazia, Ricardo Silvestrin, Ronald Augusto e Rossyr Berny –, para elaborar um poema falando sobre esses pontos conhecidos e também desconhecidos por Quintana.

Mario Quintana Visitado, de Celso Gutfreind

"Eu era interno-bolsista
do hospital HPS.
Vieste com dor no nariz
para que eu te atendesse

Vinha da narina aberta
sangue, e de ti histórias;
eu ouvia como um velho
teu entusiasmo de jovem.

Mas súbito a realidade
é que estancou no recinto,
e teu espanto encantado

foi mais veloz que a verdade;
disseste: nossa, que linda
é a palavra epistaxe!"

Publicado em “Poemas no Ônibus”, da Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre, 2006.

Mapa, de Ronald Augusto

"semanas de sol semanas de calor
a água é sequestrada das torneiras
o pessoal não se apequena, fechadas
todas as saídas da vila, tranqueira
tambores turbilhonam no sem fim
de uma noite de sexta-feira, um ventinho
arrepia o córrego sujo junto à escola
o mais velho de todos o pai de todos
bastante mato por tudo, o duan nunca
deixa de aparecer, o falero também
de repente uma rua de chão duro
no meio do caminho da nossa vida”.

Mario Quintana mora na Orla, de Rossyr Berny

“Pelas ruas de Porto Alegre
onde Quintana andou
semeou uma cidade melhor
Cresceram paraísos imprevistos
por onde ele jamais passará?

Passarão passarinhos, moças bonitas
e o Mario passeará pela Orla do Guaíba
Por também ser paraíso
confundirá com os céus onde mora

E na paisagem escolhida
volta a morar em Porto Alegre"

O Hóspede, de Ricardo Silvestrin

"O hóspede sabe que nada é seu:
um quarto, uma janela,
a rua que se perde onde o chão vira céu.
Ele entendeu que tudo está de passagem
e não adianta arame, areia, cimento,
casa de madeira, de palha, de vento.
Não lhe peçam assinatura
de proprietário no papel.
O hóspede tem outra escritura, a dos seus versos.
O universo é o seu hotel.”

Poema publicado no seu livro “Palavra Mágica”

Momento com Quintana, de José Eduardo Degrazia

"Mario sopra no centro
de uma nuvem de chuva
uma canção noturna
que em nosso peito mora.
A poesia não demora
a se fazer presente,
vem da mesma semente
que o poeta colheu.
Caminhando na tarde
de Porto Alegre, poetas,
em busca de uma musa
que nos acolha, náufragos.
Porto Alegre era barco
navegando no tempo,
Quintana, timoneiro,
levava-nos ao porto."

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895