Pai e filho multiplicam vitórias

Pai e filho multiplicam vitórias

Desafiando um a um os obstáculos que vão aparecendo pelo caminho, os esgrimistas paralímpicos Fábio e Kevin Damasceno são exemplo para outros atletas com limitações física

Fábio (D), de 39 anos, e Kevin, de 18 anos

Por
Carlos Corrêa

Como de hábito naquele 2002, o dia no trabalho havia sido cansativo entre uma e outra tarefa nos serviços mais pesados de jardinagem. A economia do país dava sinais tímidos de melhora, mas, no geral, a grana andava curta para grande parte da população. Talvez por isso o convite parecia valer a pena, apesar de todos os riscos. Quando naquela noite partiu para um assalto em São Leopoldo, Fábio sabia que tudo podia dar errado. E deu. Principalmente para ele, que no confronto com a polícia, acabou atingido por um tiro na vértebra L1 da coluna. A confirmação veio um punhado de dias e cirurgias depois, mas ele já sabia desde o momento em que havia caído no chão semanas antes: aos 19 anos, pai da pequena Kerolin havia poucos meses, nunca mais iria caminhar.

Dois anos complicados se passaram até que em 2004 veio a notícia que iria animar a família: Cenira, companheira de Fábio, estava esperando outro filho do casal. Os nove meses de gravidez foram vencidos sem maiores percalços. O que em parte justificou a surpresa quando os médicos, logo após o parto, avisaram a família que o bebê havia nascido com meningomielocele, um daqueles termos que a definição é tão assustadora quanto o próprio nome. Trata-se de uma má-formação da medula espinhal, na qual ela se abre e permite a saída das meninges e da medula pela pele. Com dois dias de vida, Kevin, de apenas 2,5 quilos, já havia passado por duas cirurgias delicadas, dali saindo para 27 dias na UTI. O diagnóstico não era animador: a consequência da disfunção seria a paralisia de membros inferiores. Kevin não sentiria nada do joelho para baixo. Poderia vir a caminhar, mas não sem muita dificuldade.

Fábio até hoje não titubeia em se dizer um homem resiliente. A vida, afinal de contas, já apresentou tantos problemas que não há muito tempo para pensar neles. Mas naqueles dias que se sucederam ao nascimento do seu segundo filho, sofreu em silêncio. Não comentava com ninguém, mas pensava o mesmo que imaginava se passar pela cabeça dos outros ali. Teria sua condição de cadeirante sido decisiva para o destino do filho? “Eu era leigo no assunto e achava que podia ser por minha causa”. Não era, como logo os especialistas trataram de esclarecer.

É preciso ter um certo grau de noção dos obstáculos pelos quais Fábio e Kevin passaram todos esses anos para que se tenha a percepção do peso e do simbolismo que significou quando, em 12 de abril deste ano, ambos tomaram os seus lugares e ficaram frente a frente no Centro Paralímpico Brasileiro, em São Paulo. Ali, pai e filho brandiram seus sabres e com movimentos rápidos se enfrentaram para definir quem seria o campeão da Copa 95 anos CBE, uma das competições mais importantes do calendário brasileiro da esgrima em cadeiras de rodas em 2022. Àquela altura, não importava mais o vencedor. O sobrenome Damasceno já estava assegurado no lugar mais alto do pódio representando o Estado e o Grêmio Náutico União (GNU). Mas o caminho até lá foi uma longa e sinuosa estrada.

O começo de uma história que desembocou no topo do ranking nacional

A partir deste final de semana, Fábio e Kevin estarão em São Paulo, no Campeonato Brasileiro de Paraesgrima e no Regional das Américas, torneios relevantes não só para o ranking nacional como para a busca de vaga nos Jogos Paralímpicos de Paris-2024. Nada disso teria sido possível, no entanto, não fosse o papel de Rosa Bonatto em 2006. Integrante do grupo Portadores da Alegria, ela já havia visto Fábio na cadeira de rodas pelas ruas de Esteio algumas vezes. Até que tomou a iniciativa. “Por acaso, passei por ele e tive a ousadia de perguntar por que tinha ficado assim.” A senhora então aproveitou o ensejo para convidá-lo a participar de um passeio que eles fariam a Porto Alegre com outras pessoas com deficiência física. Nem ela, e muito menos ele, sabiam que o evento, que terminaria em um colégio da Capital com uma apresentação da esgrima em cadeira de rodas, feita por representantes da Asasepode (Associação de Servidores da Área de Segurança, Portadores de Deficiência). Talvez não tenha sido amor à primeira vista, mas como é de se imaginar, a história de Fábio mudaria para sempre.

O espaço entre o nascimento de Kevin e a descoberta da esgrima foi um período complicado. A vida toda havia trabalhado com tarefas que exigiam força, justamente o que perdera. À época, sem o ensino fundamental concluído, faltava qualificação para ser aceito em outras áreas. Quando veio o Kevinho, a gente estava em uma época difícil, já tinha dificuldade financeira e ficou pior. A Kerolin era bebê, nasce o Kevin com essa questão, todo envolvimento com hospital, era médico toda hora. Foram uns três anos nessa luta”, diz Fábio. As dificuldades eram tão evidentes que, a partir do envolvimento com o esporte, a melhora foi facilmente perceptível. “Ele mudou da água para o vinho. Antes, teve um momento em que ficou um pouco depressivo, se achava limitado. Depois, quando passou a conviver com mais pessoas, viu que podia tudo”, lembra Cenira.

Os obstáculos permaneceriam no caminho, mas a empolgação com a nova modalidade seria o combustível para seguir em frente. Animado com as perspectivas, foi a vez de Fábio assumir o papel de Dona Rosa e amealhar novas caras para a esgrima em 2007. Mal imaginava que, ao convencer o amigo Jovane Guissone, traçaria as primeiras linhas do que depois viria a ser uma das mais importantes conquistas para o esporte brasileiro. “De tanto ele insistir, fui fazer um treino. Voltei no dia seguinte. E no outro. E no outro”, conta Jovane, que em 2012 conquistaria nada menos do que a medalha de ouro nos Jogos Paralímpicos de Londres.

A rotina de treinos passou a ser mais intensa. O caminho até Porto Alegre, pelo menos do ponto de vista físico, era um exercício muito mais complexo. Como ainda não havia ônibus adaptado para cadeirantes em Esteio, os dois iam do bairro Primavera até a vizinha Sapucaia do Sul para pegar um ônibus que os levasse até o trem em direção à Capital. Depois, é claro, todo o sentido inverso. “Às vezes a gente tinha que atravessar (de cadeira de rodas) a RS-118. Era um perigo. Esperávamos um caminhão grande parar para segurar o trânsito. Na volta, além de atravessar a RS-118 de noite, ainda havia uma lomba que não tinha como subir sozinho. Então, muitas vezes ficávamos ali até aparecer alguém, um morador de rua que nos ajudasse”, revela Jovane.

A convivência turbinou a amizade. Não demorou também para que um fosse convidado a ser padrinho do filho do outro. Jovane Júnior, o Juninho, é afilhado de Fábio, enquanto Murilo é de Jovane. A evolução também tornou ambos atletas da parceria entre GNU e Asasepode. “Houve um ato infracional da minha parte, levei a pior e, por coisas do destino, hoje eu represento, com muito orgulho uma associação de servidores da área da segurança”, diz Fábio.

Cumplicidade na disputa

Espadas, sabres e floretes nunca foram novidade para Kevin, que conhece os equipamentos do pai desde pequeno. Também sempre foi ciente da única regra que Fábio e Cenira haviam estabelecido dentro de casa: “Pode mexer, mas não apontar, porque é perigoso”. De uma forma ou outra, a esgrima sempre esteve presente na vida do menino, que tem fama de tímido, mas aborda todas as perguntas com tranquilidade, sem fugir de nenhuma. O esporte, como competição, contudo, não entrou tão de imediato na sua rotina. Nem teria como.

Kevin demorou a caminhar. Só foi ensaiar os primeiros passos por volta dos 4 ou 5 anos. Como não sente nada do joelho para baixo, o andar é arrastado, uma vez que não tem o movimento dos pés. Por isso consegue percorrer apenas distâncias mais curtas. “Vou ao supermercado de bicicleta e depois coloco as sacolas no guidão. A partir de uns 3 quilômetros, já começo a cansar”, explica. Para a surpresa de ninguém, quando mais novo era vítima de cochichos (nem tão) escondidos e apelidos maldosos no colégio. Percebeu cedo que sua luta seria mais difícil que a dos colegas. Com o tempo, aprendeu a virar a chave. “Teve uma época que estava triste de ir para a escola, chorava de tristeza. Até pouco tempo ainda rolava isso, os apelidos. Até que você para de dar bola. Sei que não sou diferente de ninguém. Você percebe que enquanto estão te xingando, você está evoluindo na vida”, conta.

Kevin consegue caminhar, mas foi em cima de uma cadeira de rodas que viu melhorar sua confiança e autoestima. O que desde os 7 anos era uma atividade lúdica e de lazer enquanto acompanhava o pai nos treinos, tornou-se um objetivo de vida nos últimos dois anos. “É o meu amor. Quero me dedicar cada vez mais para um dia poder viver apenas do esporte.” A competição em São Paulo nestes próximos dias pode ser importante neste sentido. Caso volte de lá com bons resultados, pode ver o seu Bolsa Atleta passar dos atuais R$ 925 para R$ 1.850 mensais. Se o cruzamento não colocar ambos do mesmo lado da tabela, é bem provável que a final do sabre, na categoria A, seja mais uma vez entre Damasceno pai e Damasceno filho.

O duelo ocorrido em abril foi a primeira vez em que ambos disputaram uma final de campeonato. Quando Fábio sentou em sua cadeira, já tinha ciência de que toda a torcida estava contra ele. Até os amigos. Até em casa. “Minha mãe já avisou, coração de mãe torce sempre para o filho”, observa Kevin. Na verdade, Cenira esperava ter um pouco mais de tempo para lidar com esse tipo de situação. “Fiquei bem nervosa. Sabia que uma hora iria chegar, só que achei muito rápido, achei que iria demorar mais uns anos para alcançar esse nível, de fazer uma final com o pai dele”, explica ela.

Por tudo que vinha apresentando na competição, o favoritismo era de Kevin, que havia derrotado sem dó os adversários até ali. No entanto, quando soou o sinal que indica o início do jogo, Kevin congelou. “Foi muito estranho, porque eu estava ganhando, mas ao mesmo tempo torcendo que ele fosse bem. Ele deu uma travada, estava bem com os outros e, quando chegou na final comigo, travou”, lembra Fábio. O pai então fez valer um ensinamento que já estava claro na casa dos Damasceno em se tratando de esgrima: não tem arrego. Venceu a luta e conquistou o título. “Eu jamais deixaria ele vencer só porque é meu filho, tem que ser por mérito. Se eu facilitar, vou prejudicar a carreira dele”, explica. Na volta para casa, Cenira tratou logo de tirar o peso do resultado e do desempenho de Kevin. “Eu lembrei ele que não tinha nada demais. Que ele tá cansado de treinar e jogar contra o pai, não era um estranho, não precisa se pressionar”, revela a mãe.

A revanche não tardaria muito. Em agosto, na segunda edição da mesma Copa 95 anos CBE, os caminhos de pai e filho novamente se cruzariam na decisão, desta vez com vitória de Kevin, algo comemorado por todos, principalmente por Fábio. “Em nenhum momento eu arreguei. Ele foi superior a mim. Mas minha derrota teve um sabor de vitória, né? A minha vitória é a vitória dele. E a vitória dele é a minha vitória.”


Nos enfrentamentos entre Fábio e Kevin, a regra é tentar fazer o melhor e não dar arrego um para o outro | Foto: GUILHERME ALMEIDA


A tatuagem feita por Fábio como lembrança de sua participação nos Jogos Paralímpicos do Rio de Janeiro-2016 | Foto: GUILHERME ALMEIDA

Trabalho em busca dos Jogos Paralímpicos

Para além da diferença de 21 anos (Fábio tem 39, Kevin, 18), as características de jogo de pai e filho são muito distintas, em grande parte pela adaptação que cada um tem às próprias limitações físicas. Fábio, por óbvio, tem a seu favor a experiência. Apesar da dificuldade em guardar fotos e registros das conquistas, tem um cartel invejável de títulos e competições. Por meio do esporte, conheceu países como Itália, França, Polônia e Hungria. Em seu ápice, participou dos Jogos Paralímpicos do Rio de Janeiro-2016. Não saiu de lá com medalha, mas com o orgulho renovado. “Acho que fiquei em penúltimo. O nível é muito forte na minha categoria. Foi uma das coisas que me deixou mais feliz. Estava entre os 12 atletas que estavam lá. Só estar lá para mim era uma vitória, eu estava entre os melhores.” Aos anos acumulados em treinos e torneios, soma-se outro fator. “Taticamente, ele é disparado o melhor do Brasil. É um cara superinteligente. Tu falas as coisas e ele pega muito rápido, tem uma leitura de jogo muito boa”, afirma Eduardo Nunes, técnico da esgrima convencional e paralímpica do GNU, que já esteve em três edições de Jogos Paralímpicos (Londres-2012, Rio-2016 e Tóquio-2020). O problema é que Fábio trava uma luta renhida com um inimigo quase invisível há quatro anos, que o impede de se dedicar com mais afinco aos treinamentos.

Em setembro de 2018, o pai de Kevin era um dos 12 atletas da delegação brasileira que foi disputar o Regional das Américas em Saskatoon, no Canadá. Companheiro de quarto, Jovane alertou o colega que era preciso cuidado na hora de sair da banheira do hotel, já que, pelo modo como estava adaptada, poderia resultar em algum machucado. Apesar de toda a atenção, Fábio acabou sofrendo um pequeno corte na região da nádega. O problema é que esse tipo de lesão representa risco muito grande para pessoas sem mobilidade na região da cintura para baixo. Sem sensibilidade, não sentem dor ou incômodo, e podem não perceber que o ferimento transformou-se em escara, lesão que surge como consequência de uma grande pressão aplicada na pele. No caso de Fábio, por se localizar na região dos glúteos, a situação fica mais complexa, já que o tratamento ideal seria permanecer um longo tempo em repouso de bruços. O que por si só inviabilizaria tanto sua rotina de treinos quanto vir a Porto Alegre para trazer Kevin no GNU. Na prática, os últimos quatro anos têm sido de administração de danos para o atleta, que diminui o ritmo dos exercícios quando possível para aumentar na véspera das competições, sabedor de que nas semanas seguintes, a lesão vai novamente aumentar. “O recomendável mesmo era abandonar o esporte, mas não tem como. Não consigo treinar nem 50% do que deveria, mas faz parte. Dou tudo nas competições e depois vemos como fica.”

Mesmo descontado, Fábio mantém-se entre os maiores nomes do Brasil na categoria A, tanto que é o único nome a figurar no Top 3 do ranking nacional nas três armas: é líder no sabre, vice no florete e terceiro na espada. A presença de Kevin na relação confirma sua condição de uma das grandes apostas para o futuro da esgrima de cadeira de rodas brasileira. O garoto é vice no sabre, terceiro no florete e oitavo na espada. Se não conta com o fator experiência, tem a seu favor outra característica. “Ele é muito rápido. Vejo ele jogando com a velocidade que os caras jogam lá fora. Precisa só ficar maduro fisicamente, as ferramentas ele tem”, avalia Nunes. “Ele é novo ainda, a hora que botar na cabeça que é melhor que os outros, não perde para mais ninguém”, prevê um entusiasmado Jovane. O próprio Kevin, contudo, trata de calibrar a expectativa. “Sou novo, tenho que evoluir muito ainda em termos de experiência, de competição. Trabalhar mais a concentração e a técnica. Se Deus me abençoar com uma vaga em Paris-2024, vou ficar muito feliz, claro. Mas acho que preparado mesmo, vou estar é na seguinte”, afirma, referindo-se aos Jogos de Los Angeles-2028.

Fica a dúvida se, caso o filho repita o seu feito e conquista um lugar nos Jogos Paralímpicos, Fábio assistirá às disputas. Sim, porque até pouco tempo, o nervosismo nestas horas era tamanho que o atleta preferia olhar para outro lado enquanto o jogo acontecia. Nos treinos, por sua vez, um lado mais observador tem outra justificativa. “Procuro não me meter no sentido de dizer o que ele tem que fazer. Ele tem os treinadores e eu confio muito no trabalho do Edu e do (Alexandre) Teixeira”, explica Fábio. Curiosamente, quando pai e filho se enfrentam, quem fica em silêncio são os treinadores. “Quando eles se cruzam, deixamos eles se virarem. Sempre que tiverem dois atletas do clube se enfrentando, a gente olha de fora e depois do jogo comenta alguma coisa, passa alguma análise”, situa Nunes.

O título paralímpico é uma meta traçada por Kevin para o futuro. Antes (e depois), há outro objetivo muito maior, que aprendeu com o seu maior parceiro dentro e fora das pistas de esgrima: nunca ficar invisível esperando a iniciativa dos outros para resolver seus problemas. “Me espelho muito no meu pai, sempre foi uma pessoa guerreira. Tento ser assim e botar na cabeça que nada é impossível para quem tem algum tipo de limitação física.” E o lugar mais alto do pódio, fica com quem? “Se chego a uma final com ele, já estou feliz. Porque minha vitória vai ser sempre a vitória dele. E a dele vai ser a minha.”


Além da diferença de idade de 21 anos (Fábio tem 39, Kevin, 18), as características de jogo de pai e filho também são muito distintas, em grande parte pela adaptação que cada um tem às próprias limitações físicas | Fotos: RICARDO GIUSTI

Sutilezas da modalidade

Como toda modalidade paralímpica, a esgrima é dividida em categorias de acordo com as lesões e/ou nível de mobilidade dos atletas. Assim, a categoria A contempla atletas com mobilidade no tronco (caso de Fábio), com limitação de movimentos (caso de Kevin) ou amputados. Na categoria B, estão atletas com menor mobilidade no tronco e equilíbrio (caso de Jovane). Por fim, a categoria C traz atletas com tetraplagia, com comprometimento do movimento do tronco, mãos e braços. Esta última, aliás, não faz parte do programa dos Jogos Paralímpicos.

Mesmo com estas divisões, o nível de mobilidade dentro de cada categoria ainda difere muito, o que causa, em tese, certo desequilíbrio em determinadas situações. Na A, por exemplo, podem jogar um atleta que teve o pé amputado contra outro sem nenhum movimento de membros inferiores. Este último tem contra si o fato de não ter como tomar impulso para determinados movimentos, ao contrário do primeiro. No papel, a solução seria aumentar o número de categorias, tornando-as menos amplas. Na prática, entretanto, como a quantidade de atletas no país ainda é relativamente pequena, a provável consequência seria a falta de esgrimistas para dar conta das novas divisões.

As características de cada categoria também impactam na rotina de treinos. Como são três armas (sabre, espada e florete) com suas especificidades, os trabalhos já são dirigidos ao natural. Mas há uma outra camada, de acordo com as limitações de cada atleta. “Vai se treinar as mesmas coisas, mas de formas diferente. A um atleta da categoria A, posso pedir para atacar e voltar rápido. Um cara da B não adianta pedir isso, o tronco dele não vai permitir. Mesmo dentro da A, não posso cobrar essa volta do Fábio. Já o Kevin tem uma mobilidade de tronco que não é a dos outros, ele consegue quase deitar em paralelo à cadeira”, explica o técnico Eduardo Nunes.


O cenário da esgrima de cadeira de rodas vem melhorando no país, que hoje aparece quatro vezes no top 10 do ranking mundial | Foto: RICARDO GIUSTI

Estrutura proporciona competitividade no esporte

Porto Alegre foi sede, em 2005, do primeiro torneio de esgrima de cadeira de rodas do país. Ainda sem caráter oficial à época, a competição saiu do papel na base da cara e da coragem de treinadores como Eduardo Nunes e Alexandre Teixeira, ambos do Grêmio Náutico União (GNU). Com verba perto do zero, a primeira medida foi negociar com o Shopping Total a disponibilização de espaço para os jogos. Vencido o primeiro obstáculo, o passo seguinte foi conversar com as lojas da praça de alimentação para que contribuíssem com a comida dos atletas. A negociação nem foi tão complicada, uma vez que menos de dez atletas participaram daquela disputa pioneira.

Quase 20 anos depois, o cenário da esgrima de cadeira de rodas no país avançou. Em termos de Top 10, o Brasil hoje figura quatro vezes no ranking mundial. Sozinho, Jovane Guissone, que treina em Porto Alegre, mas está ligado à Associação dos Deficientes Físicos do Paraná (ADFP), aparece duas vezes: é o 2º na Espada e 7º no Florete, ambos na categoria B. Por equipes, no feminino, o Brasil é 6º no Sabre e, no masculino, 9º na Espada. As competições nacionais ainda não reúnem mais do que dez clubes, mas o crescimento do número de atletas é visível. Os investimentos também mudaram de patamar, impulsionados pela medalha de ouro paralímpica de Jovane em Londres-2012. “No começo, o orçamento era baixo. Tinha provas no exterior que o dinheiro só dava para mandar um atleta. Até por isso fiquei feliz quando conquistei a medalha, porque sabia que isso traria mais investimentos para a esgrima paralímpica”, diz ele.

Houve também maior profissionalização. Em Porto Alegre, o que por muito tempo foi uma parceria informal da confederação com o GNU, que cedia espaço e material, passou a ser oficial em 2014, com aporte de verba. Já no ano seguinte, vieram os primeiros resultados, quando, na sede Moinhos de Vento, o clube inaugurou não apenas um amplo espaço para a esgrima convencional, como também dedicou boa parte para a esgrima de cadeira de rodas.

A melhora na estrutura tem proporcionado chance de disputa no cenário mundial. Mas, ainda assim, a prioridade não está na busca de resultados. “Nosso principal objetivo é a melhoria da qualidade de vida do deficiente. Que ele consiga realizar seus objetivos, trabalhar a questão da independência. Eu realmente não conheço uma outra maneira melhor de reabilitar uma pessoa, tanto física quanto psicologicamente, do que através do esporte", afirma Nunes, lembrando que os benefícios não são restritos aos atletas com algum tipo de limitação física. “Quem trabalha com o esporte paralímpico realmente aprende a não reclamar da vida. A gente vê que não tem problema nenhum, reclama de barriga cheia.”

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895