Papéis do século 18 guardam a história do RS

Papéis do século 18 guardam a história do RS

Documentos servem como fonte primária de pesquisa para o conhecimento da atuação de pessoas ou instituições

Por
Rodrigo Thiel

Em uma prateleira próxima à janela do mezanino do primeiro prédio do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, há um conjunto de livros com registros do século 18. Em um deles, datado de 17 de junho de 1763, está o documento mais antigo deste espaço: a carta de liberdade da escrava Inácia Maria do Espírito Santo.

Poucas quadras dali, no Arquivo Histórico do RS, em um dos corredores com estantes deslizáveis, está um dos mais antigos registros do Estado, de 9 de dezembro de 1737. Trata-se do documento que relata a fundação do Forte Jesus, Maria e José de Rio Grande, que remonta ao ponto de partida da fundação da mais antiga cidade do Estado e, por consequência, do início da ocupação organizada no RS. Com uso de luvas, as responsáveis técnicas manuseiam cuidadosamente estes registros. Toda esta prudência reflete a importância dos arquivos em nossa sociedade. Afinal, estas páginas e mais páginas de informações centenárias não são simples pedaços de papel marcados com tinta. Elas são fragmentos daquilo que há de mais autêntico na sociedade do RS: a própria história. 

A importância destes espaços é alvo de pesquisa dos professores de Arquivologia da Universidade Federal do RS (Ufrgs). O coordenador do curso, Jorge Eduardo Enriquez Vivar, cita que os arquivos são um registro único da atuação de pessoas ou instituições, pública ou privada, em um contexto histórico, político, social, cultural e econômico. “Eles são fonte primária da construção da memória da sociedade ao serem preservados como patrimônio documental. Sua importância está marcada pela representação única, transmitida através do tempo, às presentes e futuras gerações, contribuindo para o conhecimento do passado, a consolidação dos direitos humanos e a concretização de uma melhor e mais qualificada democracia.”

Em uma das visitas do Correio do Povo aos arquivos históricos, o pesquisador Pedro Paulo Pons, do Instituto Histórico e Geográfico do RS, manuseava documentos antigos que retratam as origens do Centro do Porto Alegre, uma de suas pautas de pesquisa. “Estes itens são essenciais para se entender melhor o passado. E a boa conservação deles facilita as nossas pesquisas.”

Como visitar ou acessar o acervo de alguns dos arquivos gaúchos

 Arquivo Público do RS

  • Localizado na rua Riachuelo, 1031, possui mais de 22 milhões de documentos administrativos e históricos. Alguns estão digitalizados e disponíveis para consulta. Para pesquisa do acervo, o atendimento é de segunda a sexta-feira, das 8h30min às 12h e das 13h às 17, mediante agendamento pelo e-mail saladepesquisa@planejamento.rs.gov.br ou pelo telefone (51) 3288-1375. Para solicitações de cópias de certidões ou escrituras, o atendimento é pelo e-mail teleapers@planejamento.rs.gov.br ou pelo telefone (51) 3288-1300. Visitas guiadas presenciais são realizados nas segundas às 14h, nas quartas às 10h e nas sextas às 14h, mediante agendamento no www.apers.rs.gov.br/visita-guiada-presencial. 

 Arquivo Histórico do RS

  • O espaço fica na Praça da Alfândega, no Memorial do Rio Grande do Sul. Possui cerca de 10 milhões de documentos físicos que remontam à fundação e aos principais acontecimentos da história do Estado. Alguns arquivos estão transcritos e outros estão sendo digitalizados. A pesquisa no local é pública, gratuita e irrestrita. A visitação ocorre de terça a sexta, das 13h às 17h, mediante agendamento pelo e-mail agendamento-ahrs@sedac.rs.gov.br.

 Arquivo Municipal de Porto Alegre

  • Também chamado de Coordenação de Gestão Documental, fica na rua Sete de Setembro, 1123, no Centro. O local conta com cerca de 1,5 milhão de documentos administrativos e históricos de Porto Alegre, como plantas de prédios tradicionais da cidade. A digitalização é feita através de demanda solicitada. O espaço funciona de segunda a sexta-feira, das 9h às 17h, e o agendamento pode ser feito pelo e-mail smapcgd@portoalegre.rs.gov.br ou telefone (51) 3289-1188.

 Arquivo Histórico de Porto Alegre

  • Também chamado de Aquivo Histórico Moysés Vellinho, está localizado em um casarão histórico na avenida Bento Gonçalves, 1129, bairro Santo Antônio. O acervo conta com documentos públicos produzidos ou recebidos pelos poderes municipais. O espaço funciona de segunda a sexta-feira, das 9h às 12h e das 14h às 17h. Agendamentos e informações: arquivohistorico@smc.prefpoa.com.br e (51) 3289-8282.

 Arquivo Histórico da Santa Casa

  • Situado no Centro Histórico-Cultural da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, o acervo da casa de saúde mais antiga do RS conta com 18 quilômetros de documentos e outros 1,5 milhão de itens que remontam a atuação da instituição no Estado. Alguns documentos estão digitalizados. Para os documentos físicos, o acesso ocorre mediante agendamento pelo e-mail pesquisa.chc@santacasa.org.br. 

Museu de História da Medicina do RS

  • Localizado na avenida Independência, 270, o acervo conta com cerca de 30 mil itens entre documentos, livros e objetos. O objetivo está na preservação da memória da atuação médica no Rio Grande do Sul. Alguns itens estão passando por um processo de digitalização e, em breve, poderão ser consultados no site da instituição. As visitas presenciais ao acervo são gratuitas e podem ser realizadas de segunda a sexta-feira, das 10h às 18h, mediante agendamento pelo e-mail aamuhm@aamuhm.org.br.

Casa da Memória Unimed Federação/RS

  • O espaço fica na Rua Santa Terezinha, 263, bairro Farroupilha. Possui mais de 10 mil documentos que contam a história do cooperativismo no Estado. Recentemente, o espaço iniciou o processo de digitalização e, em breve, o conteúdo estará disponível online. Há possibilidade de consulta presencial mediante agendamento pelo e-mail memoria@unimedrs.coop.br ou pelo telefone (51) 3395-9599. O espaço funciona de segunda a sexta-feira, das 13h às 18h e nos primeiros e terceiros sábados de cada mês, das 10h às 14h. A entrada é gratuita.

Documentos protegidos nos arquivos contam histórias individuais e coletivas 

Com mais de 22 milhões de documentos, alguns datados da segunda metade do século 18, o acervo do Arquivo Público do Estado do RS (Apers) possui enorme variedade de itens, desde certidões de nascimento e óbito, processos administrativos, ocorrências criminais, escrituras e contratos. 

Em meio a corredores e mais corredores de prateleiras cheias de história, a arquivista e chefe da Divisão de Preservação, Acesso e Difusão do Apers, Carla Segatto, relembra sua felicidade ao encontrar, durante seu trabalho, a certidão de nascimento de Elis Regina, uma de suas artistas favoritas. Entretanto, o item que mais lhe chamou a atenção foi outro. “Um documento que muito me emociona é uma carta de liberdade de uma mulher escravizada que se chamava Felicidade. É algo tão antagônico. Pois a gente vem a este mundo para ser feliz e ela foi privada justamente daquilo que era o mais precioso, que é a liberdade”, recordou.

Este breve relato de Carla ajuda a entender que, em meio a corredores cheios de livros e arquivos, todo documento é um pedaço da história, seja ele um registro de uma figura ilustre como Elis Regina, Júlio de Castilhos, Borges de Medeiros e Leonel Brizola, ou mesmo de pessoas simples. “Se perguntar qual é o mais importante, diremos que, para nós, qualquer documento é importante. Afinal, ele está contando uma história. Cada pedaço de papel é um fragmento”, completou a diretora do Apers, Aerta Grazzioli. 

Construído em 1906, o Arquivo Público foi o primeiro prédio da América Latina a ser erguido com esta finalidade. Em seu projeto, foram previstas características estruturais que garantem a conservação dos documentos em temperatura e umidade, como o teto abobadado e paredes de 1,5 metro de espessura. Além disso, a edificação mantém, desde a sua criação, um sistema de proteção contra incêndio formado por torneiras nas paredes, aliado a uma rede de alarmes para detecção de fumaça, este mais recente. A diretora conta que nunca houve incêndio no local.

O prédio original fica escondido atrás dos outros dois anexos construídos anos depois. Sua arquitetura histórica fez com que o Apers fosse chamado de “palácio de papel” em um trabalho acadêmico recente, tanto pela sua beleza física como pela sua riqueza em documentação. Segundo Aerta, o número de documentos é tão grande que, se fossem colocados um na sequência do outro, em linha reta, seria possível atravessar o país, do Oiapoque ao Chuí.

Por possuir um grande número de registros notariais, o Apers realizou um projeto de mapeamento e digitalização de todas as cartas de liberdade de escravos. Este acervo está disponível no site da instituição. Conforme a diretora, é um dos temas mais consultados pelos usuários e pesquisadores no Arquivo Público.

Além deste tipo de documento, Aerta cita que as certidões de nascimentos e casamento de imigrantes também representam boa parte da procura dos usuários, utilizados para montagem de árvore genealógica e pedidos de dupla cidadania. “Há um interesse grande nisso. As pessoas querem saber sua própria história e sua própria origem”, complementou Carla.

Apesar da grande quantidade, todos itens passam por processo de catalogação e indexação em um sistema que facilita a localização dos documentos no arquivo, por prédio e por estante. A diretora Aerta ainda destaca que o Arquivo Público é o órgão que gerencia todo o sistema de arquivos do RS. “Por isso, somos o órgão que faz planos de classificação, tabelas de temporalidade e elabora as políticas. Inclusive estamos por lançar um novo plano e tabelas de todas as funções do Estado”, finalizou a diretora.

Perto dali, na Praça da Alfândega, o Arquivo Histórico do RS (AHRS) possui outros 10 milhões de documentos em papel. Eles são oriundos do Poder Público e de doação de coleções particulares. Conforme a historiadora e diretora do AHRS, Ananda Fernandes, os itens preservam a identidade do RS e o espaço funciona como um “gestor de memórias do Estado”, possuindo apenas documentação considerada como permanente. “Aqui temos as atividades do Poder Executivo, principalmente a documentação dos presidentes da província e dos governadores em correspondências com o governo federal da época e também em contato com os municípios”.

Além do documento que cita a fundação do Forte Jesus, Maria e José de Rio Grande, a diretora destaca a Coleção Alfredo Varela, que relata a Revolução Farroupilha, como outros dos itens mais importantes do acervo. Entre eles, está uma das cópias da Carta de Porongos, documento polêmico que fala sobre o Massacre de Porongos, como ficou conhecido o ataque aos Lanceiros Negros durante a guerra.

O AHRS possui estantes deslizantes que facilitam o armazenamento dos documentos. Além disso, as caixas onde são guardados os itens estão sendo trocadas por materiais novos e especiais. Entretanto, não há uma climatização no espaço.

Ananda conta que todo o Memorial do RS, prédio onde está o AHRS, foi contemplado em um projeto do PAC o que permitirá que o espaço receba ar-condicionado para a conservação dos documentos. Segundo ela, não ter climatização causa danos aos materiais. “Como os arquivos não ficam armazenados na temperatura correta, ao longo do tempo, isso vai deteriorando o papel e pode ainda trazer insetos”, relatou.

Conforme Ananda, o diferencial do Arquivo Histórico está em receber materiais de coleções particulares. “Antigamente, quem doava documentação para cá eram figuras políticas, como os governadores. Hoje a gente recebe de pessoas, de segmentos sociais, entidades, movimentos que consideram que a sua história também pode ser relevante.”
A Prefeitura de Porto Alegre também possui dois arquivos, sendo um deles histórico. No Arquivo Municipal estão armazenados mais de 1,5 milhão de documentos. Já no Arquivo Histórico de Porto Alegre Moysés Vellinho estão outros 1,3 milhão de itens. “Estamos preservando memórias, seja para o cumprimento de deveres da administração municipal como para a sociedade em geral”, ressalta a coordenadora de Gestão Documental do Arquivo Municipal, Camila Couto.

A maioria dos documentos do acervo são de processos administrativos, inclusive os itens da época da Intendência Municipal, datados de 1892. Segundo a diretora, um dos arquivos mais procurados é o projeto do prédio histórico da Tumelero, no Centro Histórico. “Temos a planta original do projeto, que é da década de 1920. É um dos documentos mais solicitados como fonte de pesquisa para acadêmicos do curso de Arquitetura em função do arquiteto que o projetou.”

São três andares de prateleiras com documentos que passam por constantes verificações de temperatura e umidade, além de dedetização de insetos. Apesar disso, há preocupação com relação a goteiras que atingem parte do último andar. 

Camila conta que, desde 2020, a preferência no acesso ao documento é pela Internet, através da digitalização por demanda. Cerca de 10% do acervo foi digitalizado, sendo a maioria através de scanners e alguns com auxílio de recurso fotográfico para não danificar o documento original.

Memórias da área da saúde no Rio Grande do Sul 

O acervo de documentos históricos não se resume apenas aos itens administrativos advindos do poder público. A área da saúde é uma que possui um cuidado especial, em função das vastas coleções de prontuários, projetos e atas que estão em arquivos históricos. Uma destas, com registros mais antigos, é a da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre.

De acordo com a coordenadora do Arquivo Histórico da Santa Casa, Véra Barroso, o acervo possui mais de 18 quilômetros de documentos e outros 1,5 milhão de itens em manuscritos, plantas, imagens, matérias e entrevistas. “A trajetória da Santa Casa se confunde com a história de Porto Alegre e do Estado. Suas histórias são indissociáveis. O objetivo do arquivo é incentivar a produção do conhecimento científico e cultural pela academia ou pela sociedade”, citou Véra.

De acordo com a coordenadora, entre os itens mais singulares do acervo estão os documentos de abandono de crianças na Roda dos Expostos da Santa Casa, entre 1838 e 1940, além de registros de óbitos de escravos e pessoas livres sepultadas em áreas separadas no cemitério da instituição. A preservação deste vasto acervo é realizada através do controle diário dos índices de umidade e temperatura, somado ao uso de ar-condicionado e desumidificadores de ambiente.

Poucos metros dali, o Museu de História da Medicina do Rio Grande do Sul (MUHM) guarda uma coleção de 15 mil documentos, 6 mil objetos e 7 mil livros com o objetivo de preservar a memória médica no Estado. O espaço foi idealizado pelo Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers), que segue como o principal mantenedor do MUHM.
Segundo a historiadora e museóloga Ângela Beatriz Pomatti, o acervo conta com catálogos médicos do século 19, livros de internação, relatórios e manuscritos que detalham o dia a dia da medicina. Entre os objetos históricos, há também um Pulmão de Aço, utilizado no tratamento da poliomielite, antes do controle da doença no país através da vacinação.

Os arquivos históricos do MUHM passam por uma rotina de cuidados com temperatura, umidade, iluminação e higienização. Alguns dos documentos mais antigos e raros estão passando pelo processo de digitalização. Outro destaque está na digitalização tridimensional de alguns objetos do museu através de um scanner planetário. Em breve, este acervo estará disponível para consulta no site da instituição.

Já no bairro Farroupilha, a Casa da Memória da Unimed Federação/RS guarda mais de 10 mil documentos, entre atas, planilhas e fotografias, para salvaguardar a memória do cooperativismo e, em especial, a história do Sistema Unimed no Brasil e no Rio Grande do Sul. De acordo com responsável pelo espaço, o jornalista e advogado Salus Loch, um dos itens mais singulares do acervo é a ata de constituição da Unimed no Estado, datada de 5 de outubro de 1971.

Ele conta que parte do material já está digitalizado e, em breve, estará disponível para consulta online. O acervo físico está acondicionado em envelopes de papel neutro e em caixas especiais, armazenadas em armário deslizante em uma sala com temperatura controlada por ar-condicionado e desumidificador. A Casa da Memória, que é presidida por Nilson Luiz May, o presidente da Unimed Federação/RS, fica em um casarão histórico e conta com espaço para exposição e museu.

Arquivo Nacional

  • Além de todos os arquivos já citados nesta matéria, há a plataforma do Arquivo Nacional que ajuda pesquisadores e a comunidade em geral a entender o tipo do acervo disponível e entrar em contato para agendar visitas ou solicitar documentos digitalizados de instituições em todo o Brasil. No Rio Grande do Sul, são 88 arquivos cadastrados na plataforma, que pode ser conferida em https://l.ead.me/beUTXu

Fotos: Mauro Schaefer

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895