Para lembrar Porto Alegre

Para lembrar Porto Alegre

Recontar a história de lugares e levar o leitor a redescobrir espaços de Porto Alegre por uma lente diferente: a memória

Por
Brenda Fernández

Recontar a história de lugares e levar o leitor a redescobrir espaços de Porto Alegre por uma lente diferente: a memória. A série do Correio do Povo "Redescobrir a cidade" convida a um olhar especial para prédios, ruas, praças e esquinas. Para dar início e celebrar o aniversário da capital gaúcha, que completa 251 anos neste domingo, a série traz duas histórias. A primeira recorda o prédio clássico onde funcionou o cinema Astor, no bairro Floresta. Para lembrar esta história, contamos com as memórias de pessoas que ocuparam as filas extensas do cinema entre os anos 60 e 90. A Escadaria 24 de Maio, no Centro, também consta neste especial de lançamento da série. A travessa colorida de 170 degraus que hoje é ponto turístico da região guarda relações amistosas, arte e muita dedicação com o cuidado do espaço público. Além da reportagem, a série tem galeria de imagens, vídeo e podcast dos bastidores, que podem ser conferidos no site do Correio do Povo.

Astor, cinema de calçada que por décadas foi ponto de lazer de sua região

A ampla fachada edificada em uma das esquinas mais movimentadas do bairro Floresta destoa visualmente dos arredores. O projeto arquitetônico com detalhes clássicos e barrocos remete a um passado que projetou Hollywood em Porto Alegre, um local que por décadas foi o ponto de lazer da região, um dos principais cinemas de calçada de Porto Alegre: o antigo cinema Astor.

As extensas filas desenhadas pela calçada estreita da Benjamin Constant, contornando a esquina da Cristóvão Colombo, ficaram na memória de frequentadores e comerciantes do entorno. Exatos 30 anos atrás, o Astor encerrava as atividades após uma série de ajustes e modernizações para fazer frente ao mercado de VHS, a TV por assinatura e aos cinemas de shopping. 

Para chegar à estrutura conservada e tombada como de interesse social e cultural, o caminho foi longo e de abandono. Os cartazes foram retirados e as sessões encerradas em 1993. O Astor não era um caso isolado. No mesmo período, outros cinemas de rua entregavam salas e prédios na cidade.

Nesta época, ao menos 20 cinemas de rua mantinham programação em diversos bairros da Capital, conforme levantamento que consta no livro “The End: Cinemas de Calçada em Porto Alegre (1990-2005)", do jornalista e pesquisador Cristiano Zanella. O ano de 1993 despontava não só com o fechamento do Astor, mas também de outros três cinemas. No ano seguinte, mais oito cerravam suas portas. Atualmente, a cidade conta apenas com o Capitólio, Cine Bancários e as salas de cinema da Casa de Cultura Mário Quintana, todas na região central. 

A saída do Astor de cena não ganhou espaço nos jornais. Em 28 de novembro de 1993, ele apenas deixou de integrar a programação de cinema, que já englobava os de shopping centers, veiculada nos jornais da época. Após a última exibição, a comunidade viu a estrutura definhar por 28 anos. Neste período, por trás de uma fachada longe de ser considerada conservada, funcionou um estacionamento privado. Os tapumes colocados para proteger a estrutura rapidamente ganharam cartazes e escritos, ampliando a cena de abandono e descaso. Apenas em 2021, a imponente estrutura ganhou novos donos e uma repaginada, abrigando até hoje um hotel. O entra e sai de veículos em busca de conforto e turismo na cidade. 

O bairro Floresta também integra – ainda que timidamente – uma área chamada de 4º Distrito, um conglomerado de bares e casas noturnas. O projeto, assinado pelo governo municipal, é o de que a região seja conhecida como o encontro boêmio de novos empreendimentos. Por ordem legislativa, alguns destes lugares ainda mantêm as características arquitetônicas. Uma delas é o também antigo cinema Presidente, a poucos metros de distância do Astor, no mesmo quarteirão. 

Instalado entre os dois antigos cines, o restaurante Pampulhinha presenciou desde 1971 a movimentação cultural no bairro. Filha do proprietário, Cristiana Pinheiro tinha 17 anos na época e lembra das filas para comprar ingresso. Ela mesma foi algumas vezes, já que ficava próximo ao comércio da família. “Acho que vi o filme E.T., quando foi lançado. Eu adorava! Era bonito! Tinha uma parte que vendia balas, chocolates e pipoca. Como agora (nos cinemas atuais), só que era uma coisa antiga. Parecia aquelas coisas de filmes”, lembra com nostalgia. 

Do outro lado da rua, está o bar e restaurante de Ivo José Locatelli. As inúmeras mesas e bancada recebiam as famílias e jovens que iam ao cinema e paravam ali para fazer um lanche. Ele lembra com saudade da vida que tinha naquela avenida há 30 anos e diz que a região nunca mais viveu nada parecido. “Eram filas todos os dias. Elas ocupavam toda a calçada e dobravam na rua Olinda. O movimento agitava a rua. Mas depois foi indo, morrendo, parando, e ficou aquele lugar abandonado.”

Quem acompanhou a ascensão dos cinemas de perto ou apenas sentou em uma das 707 "modernas" poltronas, mais de uma vez, lembra com nostalgia de uma época em que tudo parecia mais mágico e, por isso, mais fácil.

Do lado de fora: o hall e a magia da bomboniere

Foto: Roberto Santos / CP Memória

Os cinemas de calçadas estavam longe de representar só um espaço de lazer. Para Fabiano Grendene, que nasceu e até hoje reside próximo ao antigo cinema, o Astor era uma extensão de casa e, por isso, marcou experiências sociais e pessoais. Uma delas foi a transição entre a infância e a juventude ao fim da década de 80. Ao passo que via na programação que o cinema de aventura e fantasia abria também espaço para longas-metragens mais reflexivos e contestadores, identificava seus interesse pela sétima arte expandir.

“A bilheteria ficava na calçada. Eu chegava, comprava ingresso, passava por uma porta grande e ficava esperando no saguão”, relembra o agora pesquisador e coordenador de cinema da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. No espaço que separava o público do telão ficava uma das magias do Astor: a bomboniere, nome hoje pouco usado.

Próximo à porta de entrada para a sala de cinema, uma espécie de relógio marcava o tempo faltante para o término da sessão anterior. Enquanto a hora não chegava, já portando o ingresso, Fabiano e os amigos se distraíam com guloseimas adquiridas na bomboniere. Na época, a Coca-Cola também era uma febre nestes lugares. 

A última vez que Fabiano esteve no Astor foi para assistir a uma sessão de “The Doors” (1991), longa sobre a ascensão do vocalista Jim Morrison e a banda de rock norte-americana. Neste dia, já se sabia que um dos cinemas mais queridos da cidade fecharia as portas. “Eu tinha entre 16 e 17 anos. Fui ver o filme com minha mãe. Eu lembro que o cinema também impulsionava assuntos sobre comportamento na família”, conta o docente. 

Um marcador que funcionava como uma espécie de “relógio” sinalizava quando a sala estava pronta para projetar a próxima sessão. A sensação de estar dentro daquele espaço ocupa hoje grande parte da memória do porto-alegrense. “A sensação física que tenho era de um lugar muito confortável. O espaço te abraçava. A experiência era completa, não tinha essa coisa de escolher a poltrona, por exemplo”, lembra com uma nostalgia visível nas palavras e nos olhos. Fabiano cita ainda que, diferente das salas atuais, a posição das cadeiras obedecia a uma organização vertical, que dava mais profundidade. Lembra ainda que a qualidade de som que ecoava dos longas “E.T. O Extraterrestre” e “Indiana Jones e os Caçadores da Arca Perdida”.

A última sessão

Quando soube pelo jornal que o Astor ia encerrar as atividades, Danilo Fantinel não teve dúvidas: veria a última sessão. Mesmo jovem já sabia o que o fechar de portas do cinema do seu bairro significava. “Eu estava lá na última noite. Me lembro que eu comecei a sessão sozinho e logo depois chegou um casal. Depois algumas pessoas foram aparecendo. Era pouca gente.” O esvaziamento da sala mostrava a mudança radical na procura pelo cinema de rua frente a diversas novidades da época: o cinema de shopping e a popularização do VHS e da televisão por assinatura.

Para o jornalista, a sensação daquela noite foi de nostalgia e tristeza. “A gente sabe que o cinema reunia bastante público. Mas no fechamento era pouquíssima gente, como aconteceu no fechamento de outras salas. Quem estava lá era para prestar essa homenagem ao prédio, a sala e, claro, ao pessoal que fazia acontecer o cinema: projecionista e o pessoal da bilheteria”, conta Fantinel.

Tamanho o impacto na época, Fantinel consegue descrever até hoje os detalhes da sala de cinema. “Era enorme! Apesar da redução do número de poltronas, era gigante.” O corte no número de cadeiras a que ele se refere ocorreu na obra de modernização do local, onde reduziu mais de 300 lugares. Ele segue descrevendo: “A sala tinha um declive que ajudava muito na visualização do filme, para as pessoas não ficarem muito próximas, com a cabeça atrapalhando. Diferente do que são as salas de cinema hoje.”

As sensações que o velho Astor provocava foram uma espécie de farol para Fantinel, que hoje trabalha com crítica e docência na área de cinema. “Tenho uma formação de cinema dentro da sala de cinema”, conta orgulhoso ao enumerar os filmes que assistiu projetado numa das maiores telas que já viu. Nas primeiras vezes, com 10 anos, acompanhado dos pais e tios em sessões à tarde. Nos últimos anos de funcionamento do cinema, no entanto, ele ganhou gosto por frequentar sessões à noite, com amigos. 

A sensação de ‘O Exterminador do Futuro 2’ no Astor

A última vez que Lauro Marcelo Roth Arreguy viu o cinema Astor transbordar de pessoas, com filas extensas na rua, foi quando “O Exterminador do Futuro 2” (1991) chegou na programação. “Acho que o ano era 92 porque os filmes demoravam para estrear em Porto Alegre. A fila era enorme pra chegar à bilheteria, que era uma janelinha bem pequena. Só consegui assistir na segunda semana de exibição”, conta o músico e empresário. Sua iniciação no mundo da sétima arte, no entanto, foi ainda mais cedo, comprando ingresso para ver “Os Trapalhões” na companhia de sua mãe e seu irmão. “Depois, com 10-12 anos, comecei a frequentar sessões mais noturnas, seis horas da tarde. Íamos de grupo de amigos ver ‘A Hora do Espanto’ e ‘A Mosca’.”

Uma das recordações que guarda com mais carinho é da primeira vez que viu a divulgação do longa de terror “A Hora do Espanto” na vitrine do cinema. Hoje conta rindo, mas em 1986 o sentimento era de medo ao ver o enorme cartaz estampado na janela do Astor. “Era um cartaz de uma vampira com os dentes enormes e atrás tinha uma casa na penumbra. Eu passava na frente, até de carro, e virava a cara porque tinha muito medo. Era horripilante.” Só que esta história teve uma reviravolta. Anos depois, Lauro não só assistiu ao filme como se apaixonou pela história de vampiro. Hoje o cartaz está emoldurado na sua casa.

Uma experiência cinematográfica comunitária 

Quando chegavam à bilheteria do Astor já estavam em seis ou sete pessoas. A concentração do grupo de amigos do jornalista Danilo Fantinel, no entanto, nem sempre tinha ponto definido. Era mais simples: os amigos saiam do bairro Higienópolis e iam se buscando em casa, a começar com os que moravam mais longe até o que estava localizado mais próximo do cinema. “Foi realmente uma experiência cinematográfica comunitária. E era muito legal porque a gente saía da sala de cinema e voltava para casa conversando sobre o filme”, lembra o jornalista. Diferente do que acontece hoje. “Você sai da sala de cinema com uma emoção e entra em um ambiente completamente diferente, que não compactua, não dialoga em nada com aquilo que a gente estava sentindo”, compara. “No cinema de calçada, você sai da sala direto para o ar livre. Pode pensar melhor sobre o filme caminhando na rua.” 

Com a ascensão dos cinemas de rua e a rápida multiplicação de salas pela cidade, era possível dizer: é o cinema do meu bairro. Em alguns casos, como é o do bairro Floresta, dois cinemas, um do lado do outro. Só que essa afirmação de pertencimento não era apenas geográfica. 

“Tínhamos a sensação de que as salas eram nossas. Parece que como elas estavam no nosso bairro, rua, em que a gente passava a todo momento, em que vivemos, em que crescemos, era nosso ambiente de origem. Parece que o cinema era mais nosso do que hoje em dia”, relaciona com os cinemas situados dentro de shopping.

Fabiano Grendene lembra quando o fechamento dos cinemas começou a ser notícia nos jornais. “Chegou um momento em que a gente começou a ter uma espécie de discurso sobre a violência, mercado do HVS, de cinema em shoppings. Temos muitas vezes uma adesão da falsa novidade, que representaria o futuro”, destaca o professor de cinema. “A gente tem essa ideia de que o bairro morre um pouco quando o cinema acaba. Ficamos um pouco órfão”, resume ele.

Mesmo com as salas de rua hoje existentes, a relação entre o lugar e a cidade se transformou. Hoje são espaços frequentados por pessoas de diversos bairros, que sabem da importância de seguir ocupando aquelas poltronas. Um público que sabe que a magia ainda acontece. 

Nos degraus da 24 de Maio

Foto: Mauro Schaefer 

Na extensão dos degraus coloridos, o tempo parece passar mais devagar. A atmosfera destoa do entorno, convida o transeunte a andar com mais tranquilidade, reparar nas cores, nas plantas e, se tiver sorte, parar para uma conversa. Na escadaria 24 de Maio, o gato dorme sossegado na janela, a vizinha acompanha, do segundo andar do casario, o sobe e desce dos pedestres, uma aula de flamenco escapa do tablado da escola de dança e toma o espaço público.

O trecho de 170 degraus que conecta as ruas do bairro histórico André da Rocha e Duque de Caxias, em Porto Alegre, ganha uma atenção especial de quem mora nos prédios antigos à margem da elevação. Com a ajuda de uma série de ações de intervenção da prefeitura e da comunidade, a estrutura passou a ser lembrada como um ponto turístico da cidade.

A escadaria da 24 de Maio já teve vários nomes desde o início do século 18. Dos que constam nos registros municipais estão “Beco da Fonte”, “Beco do Juca da Olaria”, “Beco do Jacques”, “Rua Bento Gonçalves” e, por fim, em 1936, “Rua Vinte e Quatro de Maio”, em homenagem à batalha de Tuyuty. Mas tem quem até hoje conheça a viela pelo nome popular de “Beco da Fonte”.

A escadaria em si foi construída em 1942 durante a gestão do então prefeito José Loureiro da Silva. A estrutura era bem diferente da conhecida hoje. Quem subia pela André da Rocha, passava por baixo de uma marquise. O espaço começou a ganhar novos ares a partir do ano 2000, com a demolição da marquise e a instalação de corrimãos e a ampliação de jardins. Os degraus foram encurtados para a colocação de pedras nas laterais, a fim de afastar o trânsito de pedestres das janelas baixas dos prédios. Hoje parte dessas pedras não são visíveis, já que moradores aterraram para a colocação de plantas.

Ava Marlete, a menina dos olhos da escadaria

A aposentada Eva Marlete Gonçalves Campos é uma das moradoras que hoje dedica grande parte do seu tempo à escadaria, que considera parte de seu lar há mais de 40 anos. De memória intacta aos detalhes, ela remonta por meio de fotografias reveladas, e memórias datadas, as primeiras movimentações que deram mais vida àqueles degraus. “A rua era uma escadaria cinza. A iluminação era muito precária. O lixo nem se fala, era um terrorismo. E como sou uma pessoa que acredito que sempre podemos fazer transformações em qualquer situação da vida, aqui não foi diferente. Naquele momento, conversei com várias pessoas e a primeira ideia foi montar uma associação”, conta a moradora. A Associação dos Amigos da Vinte e Quatro de Maio e Adjacências (Amivi), fundada em 1997, funciona até hoje e é lembrada em uma placa fixada no pé da escadaria: “Reforma da Escadaria, uma conquista da sua Amivi”, de janeiro de 2007.

Marlete se considera uma “agitadora” local. E não é para menos. Foi também ela quem tomou a frente e reuniu vizinhos e conhecidos para criar uma feira de exposição para comércio e troca de produtos aos sábados. Começou com pedras, minerais e gemas. Depois de um tempo, ao perceber que o projeto ia deixando de ser de interesse dos envolvidos, ela entrou em ação novamente. Sem deixar com que os frequentadores percebessem um espaço livre, ela resolveu doar livros nos degraus da escadaria. E assim é até hoje. Todos os sábados, a moradora acorda cedo e espalha mesas brancas de plástico com títulos nacionais e internacionais para quem queira.

“Eu pensei: eu não vou deixar de fazer algo que chame a atenção para este lado da rua. Olhei para uns livros que tinha aqui e tive a ideia de doar, expor, colocar em mesas. E, olha, foi uma beleza”, conta orgulhosa, dizendo que a proposta dos livros sempre vem acompanhada de uma boa conversa. “Quando as pessoas entram aqui, elas têm vontade de falar”, diz. Sabendo disso, Marlete faz questão de tomar seu chimarrão na frente de casa e colocar em prática um conselho que recebeu de uma professora quando jovem: “Quer aprender algo? Fala com as pessoas. Melhor coisa se todo mundo soubesse disso”.

Um ponto de resistência que liga o passado ao futuro

Instalar a sede de sua companhia de dança flamenca La Negra na Escadaria 24 de Maio é para Ana Cristina Medeiros da Silva um caso “predestinado”. “Quando vim não conhecia direito a escadaria. Me apaixonei!”, conta a dançarina e coreógrafa.

Além de ser um ponto de cultura no Centro Histórico, a escola de dança espalha arte para fora das quatro paredes, com aulas e intervenções ao ar livre. “Eventualmente temos eventos na escadaria e participamos com nosso grupo profissional”, conta Ana Cristina. Um movimento contrário também ocorre. Ao fim do dia, por volta das 18h, conta a professora, pedestres que passam pelos degraus acabam chegando à porta da escola para espiar de onde vem o som das castanholas. O convite para assistir às aulas é oferecido.

Mesmo tendo um curto período como moradora da escadaria, é visível o entrosamento de Ana Cristina com o local. Na frente da escola, sob um sol escaldante de início de tarde, que beirava os 35 graus, a professora nomeava os vizinhos mais antigos e exaltava a relação amistosa com todos.

As lajotas com frases e desenhos coladas nos degraus também são motivo de orgulho para a dançarina e coreógrafa. Segundo Ana Cristina, elas ajudaram a colocar o lugar como um ponto turístico, sendo um espaço para tirar fotografias e até para gravação de comerciais. Mesmo com a manutenção frequente, feita pela artista Clarissa Nunes, que idealizou a intervenção, alguns degraus apresentam lajotas faltantes. A dançarina então deixa uma ideia para a próxima colagem: “Uma lajota com os dizeres ‘Flamenco: a arte de servir, desfrutar, libertar e humanizar’.”

A cidade no traço da artista 

“Às vezes o abacate ficava tão grande que caía e quebrava minha telha. Sabe o que a gente fazia? Comia o abacate! Sem briga.” / “A música impediu que eu fosse para o crime.” / “A gente via muitos assaltos. Prensavam as pessoas contra a parede."

Essas são algumas das frases gravadas nos azulejos coloridos dos degraus da escadaria. Elas foram selecionadas pela escuta sensível da artista plástica Clarissa Motta Nunes nas conversas com os moradores da 24 de Maio. “Foi um canal para dar voz para eles e, de certa forma, para quem passa por ali”, conta ela. Além dos depoimentos, os mais de 3 mil pequenos quadrados colados no concreto carregam frases de escritores renomados e desenhos autorais da artista gaúcha.

A colagem ocorreu em 2011, fruto de um projeto artístico em que a Clarissa foi selecionada. O momento contou com uma festa de inauguração, com roda de samba e uma placa descerrada em homenagem à artista. A intervenção inicialmente era para durar poucos meses, mas uma mobilização da Associação dos Amigos da Vinte e Quatro de Maio e Adjacências (Amivi) junto à gestão municipal da época resultou na permanência da obra.

A artista conta que a violência urbana foi muito citada nos depoimentos que ouviu durante o projeto de pesquisa, há mais de 10 anos. “Tinha muito assalto ali, tanto que eu relatei isso também. As pessoas falavam coisas boas do lugar porque viveram desde a infância, mas também falaram do perigo.” A revitalização do trecho, que ganhou mais iluminação, inibiu a sensação de perigo, contam os moradores. Mas ainda há relatos de assaltos e temor de andar pelo local à noite.

De lá pra cá, a intervenção ganhou algumas manutenções. Mas mesmo assim, alguns dos desenhos foram sofrendo alterações por conta do desgaste natural do tempo. Em alguns degraus, faltam lajotas, que moradores não sabem se caíram ou foram retiradas. O maior desejo de Clarissa é que alguma empresa adotasse o local, nem que seja em uma ação específica, para investir na manutenção inteira do trabalho e da estrutura do local e, assim, manter a Escadaria 24 de Maio colorida por mais tempo.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895