Produção de queijo ganha força em solo gaúcho

Produção de queijo ganha força em solo gaúcho

Consumo modificado a partir da pandemia, possibilidade de agregar valor à cadeia leiteira e melhorar a remuneração do produtor, além do aproveitamento do soro, são razões que vêm impulsionando o segmento

Por
Nereida Vergara

A Pesquisa de Orçamentos Familiares feita periodicamente pelo Instituto Brasileiro de Economia e Estatística (IBGE) indica que 10% dos laticínios consumidos pelos brasileiros corresponde aos queijos. O mais consumido é o queijo muçarela, principalmente em regiões como Sudeste e Sul, com alta influência da colonização italiana. Mais recentemente, entretanto, o olhar do brasileiro tem se ampliado para os queijos especiais e até mesmo para um paladar gourmet deste alimento. O consumo per capta nacional ainda está distante daquilo que a indústria considera ideal, mas tem espaço para o crescimento. Em média, conforme a Associação Brasileira das Indústrias de Queijo (Abiq), o cidadão brasileiro consome de 5 quilos a 5,5 quilos de queijo por ano. Este volume é bem menor do que o apurado em países do Mercosul, como a Argentina, onde chega a 12 quilos, e o Uruguai, onde está entre 7 e 8 quilos.

O diretor de comunicação externa da Lactalis do Brasil, Guilherme Portella, avalia que que o paladar nacional começa a despertar para os queijos de alta qualidade e especiais. O grupo é líder na captação de leite no Brasil, com 19 unidades produtivas em oito estados, incluindo o Rio Grande do Sul. A marca principal da Lactalis no Brasil é a francesa Président, tanto nos queijos commodities (muçarela e prato), como em produtos especiais como o camembert, o brie e o holandês maasdam. “Estamos trabalhando para ambientar o brasileiro com novos paladares, porque aqui o queijo mais preferido é o muçarela, ao contrário dos países da Europa, onde o olhar é mais aberto para outros tipos”, comenta Portella. 

O executivo, que também, é presidente do Sindicato dos Laticínios e Derivados do Rio Grande do Sul (Sindilat), explica que a estratégia para esta “ambientação” está no porcionamento dos queijos diferenciados para serem comercializados nas grandes redes de varejo. “O porcionamento tem permitido ao consumidor o acesso a queijos que em peça inteira são muito caros. São os chamados tamanhos mágicos, em que o consumidor pode adquirir fatias de bons queijos, como o emental, por exemplo, a partir de R$ 15,00”, observa.

No Rio Grande do Sul, particularmente, a produção de queijo acordou o interesse da indústria. A Cooperativa Languiru mantém projeto de estudo para a instalação de uma queijaria ao longo dos exercícios de 2022 e 2023, anexa à unidade industrial de processamento de leite, em Teutônia. O investimento será de mais de R$ 30 milhões, com capacidade inicial de processamento de 200 mil litros/dia, dando origem a queijos tradicionais (muçarela, prato, colonial, requeijão e queijo coalho). A Dália inaugurou no mês de junho, no município de Arroio do Meio, sua unidade de produção de queijos, na qual pode processar até 12 toneladas/dia do alimento, a partir do recebimento de 120 litros de leite.

O secretário executivo do Sindilat, Darlan Palharini, reconhece que o interesse pela produção de queijos no Rio Grande do Sul aumentou não apenas na forma de pequenas médias queijarias, atividade muito arraigada à cultura gaúcha, mas no interesse de empresas e cooperativas com potencial para produção do alimento em escala. Tradicionalmente, diz o dirigente, a industrialização do leite produzido no Estado esteve voltada para o leite UHT e o leite em pó, ficando a produção de queijo concentrada nas agroindústrias de menor parte.

Segundo Palharini, este perfil vem mudando nos últimos 10 anos e, especialmente, nos últimos dois anos, em que se viveu a pandemia. Entre as razões enumeradas pelo secretário executivo para este movimento estão o melhor conhecimento do mercado dos queijos, as vantagens competitivas da atividade e a possibilidade de valorização do produtor. No que diz respeito ao mercado, Palharini indica que ele é promissor tanto nacional quanto internacionalmente. "Desde os queijos fatiados, como o muçarela, até os especiais, há consumo para absorver a produção dentro do Estado, na venda para o restante do Brasil e para os países nossos vizinhos, Argentina e Uruguai, onde o consumo é maior", analisa.

Darlan Palharini aponta que, na cadeia produtiva do leite, a fabricação de queijo tem benefícios inegáveis, como a possibilidade de melhor remunerar o produtor (o leite usado com este fim tem de apresentar melhor qualidade, com índices de sólidos e gorduras diferenciados, o que torna o produtor candidato à bonificação) e de aproveitamento de um subproduto de grande valor de mercado: o soro do queijo, apto para diversas aplicações, das bebidas lácteas à alimentação animal.

Queijaria mais antiga do Rio Grande do Sul, a Cooperativa Santa Clara, de Carlos Barbosa, com mais de um século de existência, aposta na tendência de crescimento. O diretor da cooperativa, Alexandre Guerra, lembra que a pandemia do Covid-19 consolidou novos hábitos entre os consumidores. “Ele (o consumidor) habituou-se a cozinhar mais em casa, mas está disposto a pratos fáceis de preparar e práticos”, comenta Guerra, ao exemplificar que pesquisa Kantar/Ibope indicou que o consumidor quer investir cerca de 20 minutos na preparação de uma refeição. O levantamento, diz ainda, demonstra que na pandemia o consumo de sanduíches cresceu 34% e isso acabou tornando-se uma rotina, dando espaço para o consumo de queijos fatiados, salames, temper cheese, requeijão e outros ingredientes.

Qualidade do leite do RS propicia industrialização

A qualificação da produção leiteira gaúcha e o conhecimento gerado para a fabricação de derivados despertou o interesse de laticínios que antes processavam mais os leites UHT e em pó para novas alternativas de ganho

De 12 milhões de litros de leite captados diariamente no Estado, 2 milhões de litros são destinados à produção de queijo. Foto: Cooperativa Santa Clara / Divulgação / CP

A Cooperativa Santa Clara, de Carlos Barbosa, processou entre janeiro e junho deste ano, em torno de 600 toneladas de queijos. De acordo com o diretor da cooperativa, Alexandre Guerra, 31% do leite captado entre os produtores associados são reservados à fabricação de queijos. Guerra explica que 65% da produção da Santa Clara se concentram nos queijos muçarela e prato, os mais consumidos. Mas a cooperativa também investe nos chamados queijos nobre, com períodos de maturação entre três e 12 meses. Nesta linha, produz as variedades de queijo montanhês, parmesão, fontina, gruyère e vaccino romano.

Alexandre Guerra revela que a cooperativa também adotou a estratégia de porcionamento dos queijos especiais, que podem ser encontrados nas grandes redes de varejo. “Percebemos que a venda de queijos em porções caiu no gosto do consumidor, pois permite a ele um menor desembolso, podendo adquirir peças de diferentes tipos, podendo conhecer outros sabores e apurar o paladar”, comenta o diretor. Para os restaurantes e pizzarias, ele recomenda como alternativa mais viável a aquisição de peças inteiras.

Egresso da Santa Clara e hoje supervisor de produção da queijaria recém aberta pela Dália Alimentos, o presidente da Associação Gaúcha de Laticinistas e Latícinios (AGL), Amado Mendez Ambrósio, acredita que o interesse do Rio Grande do Sul em produzir queijos vem caminhando junto com a qualificação da produção do leite gaúcho. Para ele, os grandes laticínios, antes dedicados quase que exclusivamente à produção de Leite UHT e leite pó, começaram a enxergar o mercado de queijo como uma alternativa vantajosa, pelo valor agregado que o produto traz e pela própria expectativa de mercado. “Seguramente a qualificação do leite produzido na região sul e a qualificação das próprias empresas estão por trás deste investimento mais recentes nas queijarias”, analisa.

O dirigente confirma que dos cerca de 12 milhões de litros de leite que o Estado capta por dia, pouco mais de 2 milhões de litros são destinados à produção de queijo, sendo que apenas 10% deste volume é convertido em queijo. O restante, é o soro, que passou a ser um subproduto de luxo na produção. Antes considerado efluente, de difícil descarte, e que gerava custo, o soro passou a ter muitas aplicações na indústrias em decorrência da presença em sua composição de proteínas nobres, entre as quais a lactoalbumina e a lactoglobulina. “Elas são diferentes alternativas para a industrialização e para a exportação. Hoje, temos do soro um aproveitamento que não se tinha antes e, por isso, uma rentabilidade adicional”, ressalta. Conforme Mendez, de cada litro de leite usado na produção de queijo (pago pela indústria ao produtor entre R$ 2,90 e R$ 3,40) resultam entre 800 ml a 900 ml de soro, cujo litro vale entre R$ 0.22 e R$ 0,25. Quanto ao consumo, o especialista uruguaio acredita que ele tende a aumentar, mas está sujeito ao determinante do poder aquisitivo. “É um produto cuja venda cresce junto com a disponibilidade de recursos da população de cada lugar”, completa.

A curiosa história do queijo no Brasil

  • O historiador João Castanho Dias, no livro “Uma longa e deliciosa viagem”, aponta que a origem do queijo no Brasil remonta a 1532, quando a expedição colonizadora de Martin Afonso de Souza, primeiro donatário do país, chegou trazendo navios com vacas e cabras leiteiras.
  • Segundo Castanho Dias, presume-se que o local mais provável onde teve início a fabricação de queijos no Brasil foi na primeira granja leiteira, composta por 12 vacas africanas vindas do Cabo Verde, pertencente a jesuítas de Salvador, Bahia. Esta informação está em uma carta do Padre Manuel da Nóbrega ao Padre Provincial de Portugal.
  • O primeiro livro publicado no Brasil sobre a produção de queijos é de autoria do frei José Mariano da Conceição Veloso, datado de 1801, com o título com o título “Fazendeiro do Brasil”. Trata-se de uma enciclopédia com 10 volumes, onde parte do primeiro volume, com o título de Leiteria, aborda queijos e manteiga. Já nesta época, o frei narrava a importância da limpeza das instalações, da construção da leiteria longe das estrumeiras, da ordenha correta das vacas, da feitura do coalho.

Foto: Cooperativa Santa Clara / Divulgação / CP

  • No Rio Grande do Sul, aponta o historiador, os queijos foram trazidos provavelmente pelos açorianos que chegaram ao Estado em 1750. “A indústria queijeira...no sul teria mais chances de existir a partir de 1752 quando sessenta casais de ilhéus lusitanos se fixaram de acordo com a política de Portugal... Os ilhéus trataram de amanhar o solo plantando lavouras, criando gado e possivelmente fazendo queijo para o consumo familiar e comércio”.
  • A primeira queijaria gaúcha, terceira do Brasil, foi fundada em 1904, no Castelo Pedras Altas, em Pelotas. Em 1912, criava-se a Latteria Santa Chiara (foto), posteriormente transformada em Cooperativa Santa Clara, primeira do ramo a fabricar queijos no país e hoje o laticínio mais antigo do Brasil em funcionamento.

Pequenos laticínios movimentam economia local

Ofício mais intenso entre os pequenos e médios produtores, fabricar queijo em agroindústrias do interior do Rio Grande do Sul tem um papel social, de fomento à economia urbuna e de parceria com os tambos familiares

Queijo colonial ao vinho é medalha de ouro em concurso de Araxá. Foto: Marcelo Somacal/divulgação/cp

Dos cerca de 12 milhões de litros de leite que o Rio Grande do Sul produz todos os dias, em torno de 2 milhões de litros são destinados à produção de queijos. No Estado, são fabricadas 250 toneladas de queijos por dia, 60% das quais em laticínios de médio e pequeno porte. Tradicionalmente, são estas agroindústrias que têm no queijo e outros derivados seus produtos principais, uma vez que não conseguem volume e nem capacidade de investimento para industrializar leite UTH ou leite em pó. 

O presidente da Associação das Pequenas e Médias Indústrias de Laticínios do Rio Grande do Sul (Apil), Humberto Doering Brustolin, afirma que a entidade congrega 35 laticínios que concentram esta produção. Segundo ele, as indústrias de médio porte, com litragem maior, atuam nos queijos commodity (muçarela e prato), e as pequenas em queijos especiais, que demandam mais mão de obra e menos matéria-prima.

Doering acredita que o aumento do interesse na produção de queijo atende às regras do mercado no caso de laticínios, mas vê o movimento das grandes empresas neste sentido como um entendimento das oportunidades que o produto oferece. O dirigente destaca a importância das pequenas queijarias, na parceria que fazem com a agricultura familiar para a captação do leite e naquilo que contribuem para a economia dos municípios onde atuam. "São empresas genuinamente gaúchas, que fomentam o comércio local e geram empregos e renda", defende.

O presidente da Apil também destaca a relevância da atualização nos custos do produtor para fixar o preço de referência do leite, hoje por volta de R$ 3,00 o litro. Para Doering, a melhor remuneração do produtor é fundamental para a sobrevivência da cadeia leiteira, que vem lidando com o abandono do homem do campo à atividade. "Se não houver produtor interessado em produzir leite, não haverá o que industrializar e o consumidor vai sentir a falta dos alimentos", pondera.

Um dos exemplos de agroindústria que representa o papel citado por Doering, é a Queijaria Somacal, localizada na Vila Caravaggio, em Farroupilha. Inaugurada há 15 anos, a queijaria tem parceria com sete famílias que lhe entregam diariamente 3 mil litros de leite, os quais garantem a produção diária de 300 quilos de queijo. 

Marcelo Somacal, proprietário do laticínio, diz que dá preferência aos produtores que alimentem o gado leiteiro com mais pastagens do que com suplementação. Um veterinário do estabelecimento acompanha as famílias no manejo dos animais, para assegurar um leite de alta qualidade, apto a produzir queijos de elevado padrão. O leite mais rico em sólidos e gorduras entregue pelos parceiros a Somacal é utilizado na produção de queijos especiais, como o colonial, os queijos temperados, o queijo coalho. O soro do queijo o produtor usa em produtos como as ricotas e ricotas temperadas, destinando o restante para o mercado de nutrição animais.

A família Somocal já teve o próprio tambo, mas há alguns anos decidiu se especializar na produção dos queijos. Estudo e experiência foram compensados neste ano com a premiação de dois queijos da marca na Expoqueijo 2022, em Araxá, no Triângulo Mineiro. O queijo colonial ao vinho ganhou a medalha de ouro no Araxá International Cheese Awards, na categoria queijos aromatizados de massa cozida jovem. O queijo parmesão ficou com a medalha de bronze, na categoria queijo de leite de vaca pasteurizado de casca lisa madurado. “São produtos de grande valor agregado, que têm dado destaque para o nosso trabalho”, encerra.

Proteína de alto valor

Antes descartado como resíduo da produção de queijos, hoje, o soro que resulta deste processo de fabricação é um produto precioso para os laticínios e outros ramos da indústria alimentícia, podendo ser usado como emulsificante, espumante e geleificante. Ele corresponde a 80 ou 90% do volume de leite usado para fazer o queijo, ou seja, de 10 litros de leite, dois são queijo e o restante é o soro, com a vantagem de carregar consigo 55% dos nutrientes do leite. De acordo com a Associação Brasileira das Indústria de Queijo (Abiq), o teor desses nutrientes se deve à presença de carboidratos como a lactose, proteínas e minerais como cálcio, sódio, fósforo e potássio. 

Melhor remuneração dos produtores é apontada por associação de pequenos laticinios como fundamental para a manutenção das atividades do setor. Foto: Marcelo Somacal / Divulgação / CP

As proteínas do soro já foram reconhecidas por análises da Organização Mundial de Saúde (OMS). São fonte dos oito aminoácidos essenciais que o corpo humano não é capaz de produzir e dos três aminoácidos de cadeia ramificada (valina, leucina e isoleucina). Além disso, as proteínas do soro possuem propriedades relacionadas às funções fisiológicas, podendo apresentar aplicações na indústria farmacêutica. No ano passado, o Brasil exportou 20,2 mil toneladas de soro de leite, conforme dados da Secretaria de Comércio Exterior (Secex) do Ministério da Economia. A estimativa da Abiq é de que a indústria de lácteos nacional produza por ano pelo menos 9 milhões de toneladas de soro.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895