Registros da Independência: O dia do fico

Registros da Independência: O dia do fico

O rei partiu, o príncipe não

Por
Landro Oviedo

Portugal teve seu território invadido pelas forças napoleônicas em três oportunidades (1807, 1809 e 1810), mas tais incursões resultaram derrotadas por uma aliança do exército luso-britânico. No ano de 1813, finalmente a ameaça das conquistas de Napoleão seria definitivamente afastada em sua derrota final de Waterloo, em 1815.

No final desse mesmo ano, D. João VI decreta que o Brasil fará parte do Reino Unido do Brasil, Portugal e Algarves. Com isso, as cortes portugueses, temendo a perda de sua principal colônia, começam a enviar chamados para o retorno da família real. Isso se acentua com a divisão provocada pela Revolução de 1820, que exigia uma monarquia constitucional e a volta do Brasil ao pacto colonial. Em 26 de abril de 1821, Sua Majestade embarca de volta para Portugal, deixando seu filho D. Pedro em seu lugar. Agora, a cobrança seria sobre ele, uma vez que as desconfianças acerca de sua fidelidade à metrópole só aumentavam. E elas tinham razão de ser, como se veria com o desenrolar dos acontecimentos.

Nessa intensificação da demanda, em dezembro de 1821, D. Pedro recebe ordens de voltar a Portugal sob o pretexto de terminar sua preparação acadêmica. Essa determinação é contrariada pelo entorno do príncipe, que tem como destaque nessa oposição o conselheiro José Bonifácio de Andrada e Silva e sua mulher, Dona Leopoldina, além da mobilização com a coleta de assinaturas em regiões fundamentais como Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo, com foco no pedido para que D. Pedro não voltasse para sua nação de origem. Chegou-se ao incrível número de 8 mil signatários. O documento foi entregue pelo presidente do Senado, José Clemente Pereira, a D. Pedro e foi decisivo para fazer pender a balança a favor dos brasileiros.

Foi com essa efervescência, permeada por muita indignação, que, em 9 de janeiro de 1822, da sacada do Paço Real, diante de uma multidão que esperava ansiosa por sua decisão, que o príncipe regente do Reino do Brasil pronunciou as palavras que entrariam para a posteridade e se tornariam icônicas de uma decisão emblemática para o futuro da nação: “Se é para o bem de todos e felicidade geral da Nação, estou pronto. Digam ao povo que fico”. A cena é retratada na obra de J.B. Debret (imagem acima).

O impetuoso príncipe assumia um compromisso que o levaria a ser a personagem principal da independência do Brasil em poucos meses. Ele, em si mesmo, era o instrumento e o fiador de uma nova era que se prenunciava numa declaração curta, mas de um significado que atravessaria toda a nossa história.

Folheto anônimo, escrito em francês, circulou pelo Rio de Janeiro em 1820 pedindo a permanência de D. João VI e da família real de Bragança no Brasil

O Rei Não Pôde Ficar

O Rei e a Familia Real de Bragança devem, nas atuais circunstâncias, voltar a Portugal ou ficar no Brasil?

Solução da Questão

 

Tal é a questão da alta política que ocupa agora a atenção dos portugueses da Europa e da América e parece dividir a opinião das melhores cabeças.

No entanto, por pouco que se contemple, com espírito desprevenido e despido de todo o interesse pessoal, esta questão, a mais importante talvez que tem sido agitada depois da fundação da Monarquia, parece-nos que não se pode senão chegar a esta solução: que a Família de Bragança não deve deixar o Brasil.

Para seguir a discussão em todos seus aspectos e refutar vitoriosamente todas as objeções, parece-nos suficiente provar a verdade das seis proposições seguintes:

1. Que Portugal no seu estado atual não pode absolutamente prescindir do Brasil, enquanto que o Brasil, ao contrário, não tira a menor vantagem da sua união com Portugal.

2. Que a partida da Família Real para a Europa seria o prelúdio da Independência do Brasil, resultado inevitável de um passo tão impolítico.

3. Que Sua Majestade pode conservar toda a sua autoridade real no Brasil e aí fundar um império florescente, de peso muito grande na balança política do mundo.

4. Que o ímpeto revolucionário dos portugueses da Europa será consideravelmente amortecido pela determinação do Rei de não deixar o Brasil, ao passo que não conheceria limites se Sua Majestade se achasse em Lisboa entre e à mercê dos rebeldes.

5. Que a melhor posição do Rei diante dos fazedores de constituições, sem dúvida é esta mesma em que a Providência o pôs, afastado do foco de sedição e senhor da parte sem comparação, a mais importante e mais florescente do Império Português.

6. Enfim que, em todos os casos possíveis, Sua Majestade estará sempre em tempo de dar o passo que hoje se lhe poderia propor.

Desenvolvamos estas diversas proposições.

A primeira é de uma evidência tão palpável, que quase se poderia prescindir de demonstração. Efetivamente, todas as necessidades do Brasil consistem absolutamente em artigos fabricados na Europa, e é, precisamente de fábricas que Portugal tem falta. No Brasil, é verdade consome-se muito vinho de Portugal; mas a razão disso é devida a que os direitos de entrada que carregam os vinhos da Espanha e da França os excluem dos mercados brasileiros; de modo que o único artigo considerável de exportação, que Portugal produz, seria de consumo muito pequeno, apesar da conformidade de costumes e de gostos dos habitantes, se não fosse protegido contra a, concorrência, estrangeira, por medidas fiscais. Aplique-se esta observação sobre comércio do vinho ao do sal (e este aplicação é muito justa), e ver-se-á que o mal maior, que resultaria aos brasileiros, de uma ruptura com Portugal, seria o de pagar o vinho e o sal, dois artigos de primeira necessidade, pela metade preços que são vendidos atualmente.

Os homens de que os brasileiros têm verdadeiramente necessidade são ingleses, alemães, holandeses, franceses, suecos, italianos etc.; porque os países que habitam, além de produzirem em abundância os poucos gêneros e matérias primas que aqui faltam, estão cheios de uma infinidade de fábricas que manufaturam todos os objetos imagináveis, não só com perfeição, mas também muito baratos. O comércio dos americanos, alemães, suecos e franceses é, sobretudo, precioso para o Brasil, tendo em vista que estas nações que não possuem colônias, não consomem nada menos do que uma quantidade muito considerável de gêneros coloniais, que desejam em troca de produtos de seu solo ou de sua indústria; mas em caso de uma separação entre os dois Reinos, que poderia enviar Portugal ao Brasil, para comprar estes produtos coloniais que se tornaram indispensáveis aos seus habitantes? Seriam espécies metálicas? Mas como Portugal não tem, nem minas de ouro nem de prata, ficaria logo desprovido. Enviaria objetos manufaturados? Não tem indústria. Trigo, farinha? Não colhe, talvez, o suficiente para a metade do seu próprio consumo. Ferragens, quinquilharia? Mas até agora tem sido obrigado a buscá-los no exterior e a pagá-los com o ouro do Brasil, Que poderia, pois, importar do Brasil? Quase nada. Porque os vinhos, sais e outros pequenos artigos, que ali tem podido vender com algum lucro, até o presente, não lhe dariam senão prejuízo, se os estrangeiros não estivessem sujeitos, relativamente a estes gêneros, aos mesmos direitos que ele próprio (Portugal) paga.

Os portugueses da Europa, dotados de senso ou de boa-fé, deduzem sem dificuldades a verdade de tudo isso; mas não deixam de sustentar que o Brasil não pode mais prescindir de Portugal. Perguntai-lhes porque, e eles vos responderão muito seriamente que a população branca do Brasil é preguiçosa, valetudinária,; que tem necessidade de ser refeita e, por assim dizer, retemperada de tempos em tempos por novos reforços de colonos vindos da Europa, e que esta é a mais preciosa importação de Portugal. Porém admitindo esta asserção como tão verdadeira quanto ela nos parece duvidosa, perguntazemos de nossa parte se não seria extremamente fácil a Sua Majestade animar, por leis sábias e regulamentos particulares, a emigracão de europeus para o Brasil, e se colonos alemães, suíços, ingleses, irlandeses, dinamarqueses, suecos e franceses não seriam preciosos no que diz respeito à indústria e ao trabalho. Além disso, segundo nosso ponto de vista, um dos resultados menos duvidosos da separação dos dois Reinos seria o aumento da emigração dos portugueses para o Brasil; porque se tem notado sempre que o desejo de se expatriar dos povos, está na razão direta do mal-estar e da miséria que sofrem.

Esta objeção cai, pois, inteiramente por si mesma, e cremos que, se há alguma coisa demonstrada no mundo, ela é que o Brasil pode passar perfeitamente sem Portugal; contudo, este não é nada sem o Brasil.

A segunda proposição nos parece de igual evidência. Uma região tão vasta e tão rica, como o Brasil, que há 13 anos se considera centro do Império Português, que há 13 anos goza da presença da Família Real e da vantagem de possuir em seu seio a sede do Governo; que sente todas as superioridades sobre Portugal, tanto pela sua imensa extensão como por suas riquezas e população somente branca, que conhece toda a importância de sua magnifica posição no Globo, não pode absolutamente contentar-se com uma parte qualquer que seja no Governo, ainda que fosse mais considerável do que aquela concedida pela Espanha às suas colônias; e isto pela razão muito simples de que esta parte no Governo é sempre perfeitamente ilusória, quando aqueles a quem é concedida estão a duas mil léguas de distância do ponto onde se tratam os negócios públicos. Se a este poderoso motivo de descontentamento se acrescentar a ação dos partidos, a influência irresistível das regiões circunvizinhas, que todas estão com as armas na mão para conquistar a sua independência, as maquinações dos governos constituídos da América para atrair e propagar o espírito republicano, que reina sempre mais ou menos nos países de escravos, como se a vista da extrema sujeição arrastasse o homem para a extrema liberdade; se, enfim, se levar em conta a discordância de caráter e de opiniões, que por mais de uma vez se tem manifestado entre portugueses e brasileiros, e que um acontecimento, como o que nos ocupa, mão pode deixar de fazer degenerar em antipatia nacional, convir-se-á, a memos que se fechem os olhos à evidência, que é impossível que

um Império como o Brasil fique por muito tempo colônia, em qualquer condição que possa ser, de uma província como Portugal.

    A terceira proposição deve ser tratada com alguma, atenção. A fermentação dos espíritos, tão geral na Europa, a inclinação irresistível dos povos para uma nova ordem de coisas, para novas modificações da organização social, em uma palavra, a sede das revoluções que devora os habitantes do antigo mundo civilizado, não tem, apesar do que se possa dizer, achado até hoje um verdadeiro acesso ao Brasil. Há um bom número de cabeças exaltadas e de corações corrompidos, mas a massa ainda está sã. Todavia, não temos dificuldade em confessar que ela manifesta descontentamento, que ela, então as inquietações do mal-estar; porém, é tanto mais fácil ao Governo de Sua Majestade fazer desaparecer as causas dele, quando este desencantamento não ataca as bases do edifício social, mas recai inteiramente sobre vícios de pura administração. Por outro lado, seria um modo bem falso de julgar o estado da opinião pública do Brasil, tomar por termo de comparação as cidades principais deste Reino. É necessário, neste caso, não perder de vista que estas cidades encerram um grande número de europeus, todos partidários, mais ou menos decididos, de Revoluções e que insuflam, tanto quanto lhes é possível, este espírito, aproveitando-se, para isso, das faltas e erros em que deve cair frequentemente uma administração mal organizada. Sua Majestade pode, portanto, sufocar facilmente estes germes de sedição, tomando principalmente medidas vigorosas contra 08 facciosos: depois, corrigindo os abusos e fazendo entrar na forma e marcha do seu Governo, todas as modificações agradáveis ao DEVO, que não forem incompatíveis com a dignidade da Coroa, dignidade que não se encontra em toda a sua pureza, senão onde o poder real existe em toda à sua plenitude.

Esta marcha tão simples não pode deixar de conduzir ao fim, que é assentar a dominação da Família de Bragança sobre uma base solidíssima.

Ora, uma vez que atingir este escopo tão desejável, quando uma Administração ativa e ilustrada favorecer o desenvolvimento natural das riquezas de toda a espécie, que O Brasil encerra em seu seio, a que grau de poder e de prosperidade não será elevado este magnífico Império? Pode achar-se sobre o ganho uma região mais bem situada para o comércio e que lhe dê, ao mesmo tempo, um tão grande número de frutos preciosos e ricos produtos?

Basta só abrir os olhos para ver que os portos de Pernambuco, da Bahia e do Rio de Janeiro são dispostos pela natureza para se tornarem os depósitos de comércio da Índia, do Mar do Sul, da Europa, da América, em uma palavra, do mundo inteiro. Sim, nós o declaramos solenemente, o soberano que a Providência chamou para reger esta magnífica porão do globo, deve somente pela força das coisas vir a ser uma dos seus primeiros potentados. É necessário sair da velha rotina européia. Não convém ficar totalmente estranhos aos acontecimentos políticos, que se passam debaixo dos nossos olhos. A América vai pesar na balança das nações com todo o peso do seu imenso e fértil território, da sua população sempre crescente, do vigor, enfim, que acompanha a mocidade dos povos, como a dos indivíduos. Os destinos do mundo inteiro não se regularão mais, para o futuro, em algum recanto da velha Europa. A sorte dos habitantes de todo um combate ou de uma batalha travados, seja entre os rochedos dos Pireneus, seja nas planícies da Alemanha. O campo de batalha, a área onde as nações deverão descer, daqui por diante, para decidir as suas contendas, é o vasto oceano, Efetivamente, os interesses políticos das diversas nações civilizadas estão empenhados e ligados de um modo tão particular, à tendências do espírito do século é de tal modo pronunciada, que é impossível aos olhos do homem acostumado a pensar, que a primeira grande guerra, que deve desolar o mundo, não seja uma guerra marítima. E então, que grande papel não deverá representar o Brasil, tão importante, tão necessário às potências beligerantes para fazer refrescar e reparar suas esquadras! Como serão avidamente procuradas a aliança e amizade do soberano deste vasto Império colocado no centro da civilização e dominando todos os mares! E se o governo do Brasil souber aproveitar estas circunstâncias favoráveis, que extensão e que atividade não poderá ele imprimir à sua marinha e ao seu comércio! Eis aqui o que se quer abandonar, o que se quer perder, para se refugiar nos penhascos de Portugal. Parece-nos, na verdade, ver Luiz XVII e sua família abandonarem a França para fixar a sede do seu governo na Martinica. Mas vamos mais longe. Suponhamos contra toda a espécie de razão, que depois que a Familia de Braganca tiver abandonado o Brasil para voltar a Lisboa, ela, conservará sempre este país fielmente submetido ao seu cetro; o Rei constitucional de Portugal, apenas pela força das coisas, não descerá menos que ao nível de potência européia de terceira ordem, porque Portugal é tão pouco importante por si mesmo e se acha, por outro lado, tão desvantajosamente situado, que para se defender da Espanha deverá forçosamente ficar sempre debaixo da palmatória da Inglaterra.

Eis aqui verdades mais claras do que o dia, Luce Meridiana Clariores, que nada pode abalar, que nenhum sofisma saberia destruir. E note-se bem que admitimos uma suposição inteiramente absurda, a de que o Brasil poderia ficar pacificamente submisso ao Governo transportado para Lisboa e renunciar à sua independência absoluta, depois de ter gozado dela durante treze anos. Ora, ainda com esta suposição, certamente bem gratuita, pensamos que todos os bons entendimentos serão de parecer que a Famíla Real não deve, no seu interesse, bem entendido, deixar o Brasil. Com quanta razão maior não deve ela abster-se deste perigoso passo, quando é, por assim dizer, evidente que, adotando-o, se acharia antes de bem pouco anos, reduzida a Portugal, privada de suas colônias. Quero dizer, a uma província de extensão ordinária, pobre pouco fértil e incapaz de suprir as despesas de uma Corte, pousada sobre um pé digno da majestade do trono.

Não ignoramos que estas preposições parecerão absurdas a muitos portugueses que, não atendendo à diferença dos tempos e dos costumes, não deixarão de gritar que Portugal era reino e tinha uma Corte, muito antes da conquista da Índia, e do descobrimento da América. Certamente isto é incontestável, e se os portugueses de hoie pudessem resumir os costumes e usos, e sobretudo a frugalidade de seus antepassado do tempo do Rei Fernando, ou de seu sucessor, poderiam, renunciando como então, sustentar um exército permanente e um corpo diplomático, ter ma Corte e dispensar gêneros estrangeiros. O entusiasmo da nação suprirá, dirão eles, tudo o que lhe pode faltar. Oh! de boa-fé, é quando as comodidades mais rebuscadas da vida chegam às classes médias da sociedade, é quando o luxo está geralmente tão espalhado que se mostra tanto entre as paredes de uma choupana como de um palácio. É, enfim, quando o gosto das doçuras e dos prazeres da vida contraiu-se na infância, que se pode esperar ver renascer a simplicidade ou, melhor dizendo, a austeridade dos costumes portugueses do século XIII ou XIV? Qual é, “por exemplo, não diremos o fidalgo, mas o negociante opulento de Lisboa ou do Porto, que se contentaria hoje com a mesa do vencedor de Aljubarrota? Não esperemos, do coração do homem, mudanças diametralmente opostas à sua natureza.

Passando à nossa quarta proposição, nós a julgamos radicalmente demonstrada, se chegamos a provar a verdade da Primeira, isto é, que Portugal não pode absolutamente passar sem o Brasil. Efetivamente, o temor de uma total separação de Portugal não é senão um poderoso freio para os rebeldes em seus projetos insensatos. É preciso que os intrigantes não somente afetem moderação e o maior devotamento à Casa de Bragança, mas a envolvam em suas ações, sem o que esse entusiasmo artificial, que tem se refletido no povo, depressa se desvaneceria, diante da idéia de uma ruptura completa com as Províncias de Ultramar. Os comerciantes de Lisboa e do Porto têm sacado, diz-se, dinheiro dos cofres do Estado para socorrer às suas necessidades. Desejamos acreditar em tudo isso, mas como teriam ganho esse dinheiro, senão pelo comércio com o Brasil? Ora, pensa se que estes mesmos comerciantes, hoje tão ardentes revolucionários, não sentiriam arrefecer um pouco o seu zelo, se vissem fechar-se, diante dos últimos acontecimentos, o caminho das riquezas que lhes estava tão amplamente aberto no Brasil? Sua Majestade não tem, portanto, mais do que um caminho a seguir, — e é fortalecer a sua autoridade no Brasil, para preservar seus vassalos da Europa dos excessos demagógicos aonde os poderiam arrastar alguns facciosos, tanto mais turbulentos quanto tivessem, sem dúvida, menos a perder. Que diferença, se a Família Real se achasse em Lisboa no centro do contágio, no meio dos facclosos, que não teriam, daqui em diante, mais nada a atender. Quem ousaria, neste caso, fixar limites ao espírito revolucionário, a essência do qual será sempre não reconhecer algum? Não queremos demorar-nos mais tempo sobre esta idéia; abandonamo-la às reflexões dos homens bem intencionados que, por falta de uma reflexão madura, poderiam se colocar entre os que opinam pela volta do Rei a Portugal.

    A quinta proposição se liga à precedente. Efetivamente, qual era a situação do desgraçado Luiz XVI, quando a Assembléia Nacional da França lhe impôs a Constituição de 1791? A mais deplorável, em que alguma vez se encontrou uma testa coroada cativa em seu palácio, cercado de guardas inquietos, despojado de toda a espécie de autoridade, cotidianamente submetido a ultrajes. Foi neste estado que ele viu levantar-se o contrato social, que devia ligá-lo ao povo francês, e que ele foi obrigado a jurar, ainda que um grande número de suas disposições chocasse tanto seu coração como a sua razão. Na Espanha, quando as Cortes isoladas na Ilha de Leão discutiam, artigo por artigo, a famosa Constituição de 1812, quem podia tomar a defesa das mais justas prerrogativas da Coroa, todas usurpadas e destruídas pelo espírito democrático que presidiu à redação deste ato? Era Fernando VII, gemendo no cativeiro, longe de seus vassalos? Era, por acaso, o seu retrato, posto na sala das Cortes e junto do qual se tinha a respeitosa atenção de colocar dois guardas, enquanto se trabalha sem descanso no aniquilamento da autoridade real?  Que vemos em Nápoles, no momento da revolução que acaba de estourar? Um rei velho e enfermo, surpreendido no seu palácio, oprimido por uma multidão de sediciosos, que o obrigam a jurar um pacto social que, muito provavelmente, ele jamais havia lido. Por toda a parte, a força democrática oprime reis desarmados. Mas o quanto estão as coisas em estado bem diferente, a respeito de Portugal! Os rebeldes que o têm posto em desordem, não devem esquecer-se que não é mais do que fração de um vasto império, cuja parte, sem comparação a mais considerável, mais rica e mais poderosa, permaneceu até hoje fiel ao cetro paternal de João VI. Não lhes compete, portanto, impor a lei ao seu Soberano, mas recebê-la dele. Os facciosos não estão em situação de oprimir, ameaçar, forçar a mão, coisas estas que lhes entendem maravilhosamente, mas de tratar e suplicar. E é quando Sua Majestade se acha em semelhante posição, que se poderia aconselhá-lo a abandonar o Brasil, para se por em Lisboa, à discrição dos demagogos!! Eis aqui aberrações do espírito que custam a ser entendidas.

    A sexta proposição deriva-se, naturalmente, da situação política atual da Europa, E tal que os mais desenfreados facciosos são obrigados a protestar vigorosamente a sua sincera adesão às dinastias legítimas. É por esta marcha hábil que tiram da grande confederação européia o direito aparente de se imiscuir no que chamam seus negócios domésticos, isto é, de suspender seu surto revolucionário. Os facciosos de Nápoles têm oferecido, neste gênero, um modelo perfeito, que os de Portugal não deixarão de seguir. É pois um vão fantasma, o medo que se quer incutir, da ereção de outra família sobre o trono de Portugal.. Os revolucionários não somente não podem deixar a Família de Bragança, mas até mesmo estamos persuadidos de que não o querem. Não porque acreditemos na sua adesão afetuosa ao monarca legítimo, virtude incompatível com o caráter de revolucionário radical, mas porque eles sabem muito bem que a mesa do povo está imbuída deste respeito de tradição para a família reinante, e, de outra parte, não têm interesse algum em ofender um sentimento tão geral. Efetivamente, que importa aos constitucionais a Família que há de ocupar o trono, quando as suas instituições aniquilam o poder real e fazem dos monarcas outras tantas máquinas de assinar, próprias somente para mover a administração? Não se pode, pois, temer racionalmente uma mudança de dinastia em Portugal, a qual, por outro lado, encontraria a desaprovação das grandes potências européias. Além disso, também não se pode temer uma união de Portugal à Espanha, porque tal união acharia sempre um obstáculo invencível na antipatia nacional que prevaleceria sobre todos os entusiasmos do momento e impediria que não se efetuasse uma verdadeira incorporação entre os dois povos. Por outra parte, esta união à Espanha ofenderia certamente a grande confederação européia, ainda mais que uma mudança de dinastia. Deixemos, pois de imaginar que os revolucionários sejam demasiado loucos para pensar nisso seriamente.

Em consequência, cremos firmemente que, no estado atual das coisas, o Rei nada pode perder em contemporizar com os seus vassalos de Portugal, esperando os acontecimentos e as resoluções do Congresso de Troppau. Tudo o que neste momento deve ocupar Sua Majestade, e ocupá-lo seriamente, é certificar a sua autoridade no Brasil, e pô-la ao abrigo dos ataques dos revolucionários, quer da Europa, quer da América.

Acabamos de demonstrar sucintamente, mas segundo nosso modo de ver, de modo satisfatório, a verdade das seis proposições que formam a base deste escrito. Não damos, seguramente, aos nossos raciocínios toda a extensão de que eles seriam suscetíveis, mas dissemos, contudo, o bastante para convencer os homens sensatos e de boa fé, que a questão — Se o Rei deve voltar a Portugal. — não pode ser resolvida senão pela negativa. Isto é tanto da nossa íntima convicção, que julgamos sinceramente que, se Sua Majestade se encontrasse em Lisboa, no tempo da insurreição do Porto, teria agido muito sabiamente, no momento em que o triunfo dos facciosos se tivesse verificado, embarcando para o Brasil e vindo fixar nele a sede do seu Governo. Julgue-se, depois disso, se podemos unir-nos ao voto daqueles que, nas circunstâncias atuais, aconselham o seu regresso para Portugal.

Toda a Europa ficou vibrando de admiração quando o Rei, entre o mar e a necessidade de submeter sua política ao capricho do opressor da nações, embarcou na sua esquadra, abandonou o antigo berço da Monarquia Portuguesa, a terra que o tinha visto nascer, os túmulos de seus antepassados e veio fundar no meio da América meridional este Império do Brasil, a que tão altos destinos esperam. Que diria agora, esta mesma Europa, vendo Sua Majestade, depois de uma residência de treze anos nesta magnífica região, abandoná-la quando a tempestada revolucionária troveja ao redor dela e está escondida em  seu seio. Quando a presença do seu monarca, nela, é mais necessária do que nunca? Não tememos afirmar que murmúrios reprovadores sucederiam ao concerto de louvores que até hoje se tem ouvido.

Eis aqui nossa sincera opinião sobre a matéria que nos ocupa, Julgamos que ela merece alguma consideração, primeiramente porque conhecemos Portugal há longo tempo e sabemos apreciar seus verdadeiros interesses; e depois, porque não tendo nascido nem no Brasil nem em Portugal, o nosso juízo sobre esta questão importante não pode ser falsificado por algum prejuízo, seja local, seja de educação.

1820

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895