Remando até a República Tcheca

Remando até a República Tcheca

Atletas gaúchas do GPA, de Porto Alegre, arrecadam recursos para disputar o mundial

Isadora Greve, de 26 anos, e Luana Fagundes, de 27 anos, treinam diariamente no Guaíba, exatamente entre a antiga e a nova ponte

Por
JOÃO PAULO FONTOURA

O Brasil há poucos meses havia saído do regime escravocrata. Os porto-alegrenses sequer imaginavam ver o nascimento de Grêmio e Inter décadas depois. No distante ano de 1888 era fundado na capital o Clube de Regatas Guaíba-Porto Alegre, o GPA. Atravessando três séculos, o clube de remo mais antigo do Brasil está prestes a viver um momento inédito graças a duas crias da casa. Isadora Greve e Luana Fagundes estão classificadas para o mundial de remo da República Tcheca, em setembro. Sem investimentos, elas arrecadam recursos para custear a viagem.

O parque náutico de Porto Alegre, ponto privilegiado para apreciar o pôr do sol que é cartão postal da cidade, desde 2020 tem uma outra paisagem no horizonte de seus frequentadores. Em especial para as jovens Isadora, 26 anos e Luana, 27. A raia onde elas treinam diariamente fica exatamente entre a antiga e a nova ponte do Guaíba, construção recente que trocou a moldura do cenário dos treinos. 

As duas consideram o local o melhor do Brasil para treinar. Não tem marolas, a água doce não estraga os barcos como faz a salgada, sem contar, é claro, a vista privilegiada e silenciosa, longe do barulho da vida urbana ali perto.

Amigas de longa data, Isadora e Luana têm uma estrutura bem distante da ideal para praticarem o esporte. Elas se viram e não reclamam. Ao contrário. Mostram uma força de vontade escondida na sutileza do barco deslizando na água. Ainda pequenas, iniciaram por motivos diferentes a prática do remo. Isadora, ainda adolescente foi incentivada por uma tia e desde então se apaixonou por remar. Luana ingressou no projeto social do GPA, começou a remar por prazer e, além de treinar no clube, passou a trabalhar como secretária ali também.

O ano passado foi um marco para elas. Luana terminava a faculdade de Biomedicina, enquanto a amiga, a residência. No período de declínio da pandemia voltaram a treinar juntas. “Só que o negócio foi ficando sério. Não sabemos brincar”, relembra Luana. Sob orientação do treinador João Carlos Gonçalves, passaram a se cobrar mais. “Elas são muito empenhadas e focadas. O nível do treino agora é outro. São dois meses de treinos duros. Esse é o caminho, tirar elas da zona de conforto. Claro, se sofre mais”, observa Joãozinho, como é conhecido o professor, praticante do remo desde os 15 anos de idade.


Isadora e Luana estão classificadas para o mundial de remo da República Tcheca | Foto: ALINA SOUZA

Competições são as miniférias

O coque para prender o cabelo comprido, a sandália personalizada ou os óculos escuros são pequenas permissões da vaidade feminina na labuta iniciada muito antes de retirar da garagem e colocar, com cuidado, o barco na água. Feita de carbono, a embarcação tem 12 metros de cumprimento e pesa cerca de 15 quilos. Esse exercício é o menor dos esforços. É consenso que a maior dificuldade é realmente sair da cama e se vestir.

“A gente acorda umas 5h, 5h30min para estar aqui às 6h. Treinamos em jejum ou no máximo com um suplemento”, revela Isadora, enfermeira emergencista de formação. “A gente chega que nem um zumbi. Às vezes tomamos um café preto pra dar uma ressuscitada”, completa Luana aos risos. O primeiro treino do dia termina por volta das 8h30min. O complemento é feito na bicicleta ou no ergômetro da academia. Nem sempre é na água, depende das condições do clima. Aos finais de semana, mesmo com plantão no hospital, Isadora não abre mão dos treinos. Vida social praticamente não existe, embora sempre surja uma brecha para tomar uma cervejinha e encontrar os amigos.

Isadora e Luana não veem a hora de chegar o mundial. Mas não somente pelo desafio e sim por uma perspectiva que elas descrevem com descontração. “Quando vamos para a competição são as nossas miniférias porque não trabalhamos depois de treinar. A gente, treina, dorme e descansa. É uma maravilha”, explica Luana, que diariamente ainda retorna ao clube no final da tarde para complementar o treinamento depois da tarde dedicada ao laboratório onde trabalha também.


O cálculo é de R$ 55 mil para arcar com as despesas da dupla e do treinador em solo europeu. Elas estão recolhendo doações pelo site https://www.vakinha.com.br/3013872  | Foto: ALINA SOUZA

Mobilização, vaquinha e feijoada para chegar até a Europa

O cálculo é de R$ 55 mil para arcar com as despesas da dupla e do treinador, levando em conta as passagens, hospedagem, alimentação e aluguel do barco em solo europeu. Sem esse montante, terá sido em vão o esforço para garantir vaga no mundial no próximo mês. Escondidas do técnico, elas se inscreveram com menos de 30 dias de antecedência para o Campeonato Brasileiro, em São Paulo. Convencida a chefia, precisavam mostrar serviço.

Isadora e Luana foram campeãs da prova do “2 Sem Peso Leve” (sem timoneiro), no início do ano. “É o barco mais técnico. Cada uma com um remo. Eu com o da esquerda e ela no da direita. Cada uma tem que controlar a remada para controlar a altura do barco”, explica Isadora. No remo ainda existem as provas com oito, quatro, dois e apenas um praticante por barco.

Em julho, no Rio de Janeiro, as gurias ratificaram a marca na categoria leve (até 57 kg, cada, na dupla). Precisavam conseguir 85% do melhor tempo do mundo como referência. Nas duas corridas, Luana e Isadora percorreram os 2 mil metros em 7min45s, atingindo 94% do índice, as habilitando para o Mundial.

Enquanto vivem a expectativa por colocar o nome do tradicional clube de Porto Alegre no mapa-múndi do remo, as jovens mantêm a realidade das dificuldades diárias. Sem tempo para quase nada, contam com a ajuda das marmitas das mães para dar conta da alimentação. Famílias aliás, que arregaçam as mangas para ajudar a viabilizar o sonho. No último sábado, na sede do clube, elas promoveram uma feijoada para arrecadar recursos, somar ao valor da vaquinha e manter acesa a esperança de competir além mar. Por conta do calendário, a Confederação Brasileira de Remo optou por investir em outra competição.

Segundo a CBR, para a categoria Sênior, casos de Isadora e Luana, o objetivo prioritário na temporada 2022 é a participação da equipe nos Jogos Sul-Americanos, no Paraguai, que acontecem 12 dias depois do Mundial de Remo. Devido a essa proximidade de datas, optou-se pela não participação da Seleção Brasileira no Mundial 2022. O barco “2 Sem Peso Leve” é uma categoria não-olímpica. A CBR será responsável pela inscrição das atletas no evento e fornecerá o uniforme completo para a equipe.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895