Ressocialização: atividades promovem educação e saúde para apenadas

Ressocialização: atividades promovem educação e saúde para apenadas

Como parte das ações da Penitenciária Estadual Feminina de Guaíba, apenadas acompanharam palestras sobre como identificar comportamentos e perceber quando se é vítima de violência psicológica nos relacionamentos

Por
Giullia Piaia

Mal o evento “Independência emocional da mulher no enfrentamento da violência psicológica” havia começado e as lágrimas já rolavam soltas nos rostos de algumas das detentas da Penitenciária Estadual Feminina de Guaíba, na Região Metropolitana de Porto Alegre. Uma apresentação artística que comparava a libertação da violência contra a mulher com a transformação da lagarta em borboleta foi o suficiente para suscitar as emoções das mulheres para as quais violência doméstica é um tema sensível e, muitas vezes, vivido na pele. 

Não é de praxe que apenadas tenham acesso às falas de desembargadores, muito menos em mensagens direcionadas para elas. Mas no último dia 28 de setembro, no evento promovido pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), detentas de 16 penitenciárias do Estado puderam ouvir pela Internet conselhos da presidente do TJRS, desembargadora Iris Helena Medeiros Nogueira, diretamente do Palácio da Justiça, em Porto Alegre. “Reescolham, porque a oportunidade de renovação é diária. Reescolham. Acertem. Pensem. Vejam o quanto a vida nos oferece de bem”, estimulou a magistrada.

Das cerca de 320 apenadas que vivem atualmente na penitenciária de Guaíba, dez foram escolhidas para acompanhar as palestras ministradas pelos médicos psiquiatras Rogério Gottert Cardoso e Lisieux Borba Telles e pela juíza designada da Vara da Violência Doméstica de Porto Alegre, Márcia Kern. Durante duas horas de painel, elas aprenderam a identificar comportamentos violentos no dia a dia, refletir como, na prática, se pode detectar esse tipo de crime e a perceber quando se é vítima de violência psicológica nos relacionamentos. Após a transmissão, as detentas discutiram em grupo sobre o que foi aprendido. “É uma lição para a vida. Para mim serviu de exemplo, porque já passei por isso. Foi uma palestra muito boa”, opinou Ana (nome fictício), de 30 anos, que acompanhou a palestra ao lado de suas colegas. “Tenho certeza que todas precisam disso, que é uma visão para a vida delas. É algo que passaram na rua ou que podem passar até aqui dentro, nos relacionamentos aqui dentro. Tem que ter em todas as casas prisionais”, completou.

A violência psicológica contra a mulher passou a ser crime há um ano, com lei própria. Mesmo que já prevista na Lei Maria da Penha, a tipificação busca reforçar que o ato é violador dos direitos humanos das mulheres. Para os infratores é prevista a reclusão, de seis meses a dois anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave. De acordo com a lei, a violência psicológica contra a mulher é tipificada como “qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação”.

Muitas das apenadas de Guaíba cumprem pena por tráfico de drogas e foram vítimas de violência emocional, física ou de qualquer outro tipo ao longo da vida. Foto: Mauro Schaefer

As detentas que assistiram à palestra não foram escolhidas de forma aleatória. Elas são promotoras de saúde dentro do presídio, papel previsto na lei prisional e colocado em prática de forma pioneira no Estado pela penitenciária de Guaíba ainda em 2017. “O trabalho é bem semelhante ao desenvolvido por um agente comunitário de saúde. Fizemos uma seleção, juntamente ao setor de segurança e ao setor técnico. Previmos que elas tivessem no mínimo o primeiro grau completo e selecionamos três promotoras por galeria e mais uma da cozinha administrativa”, explica Neusa da Silva, enfermeira responsável pela unidade e também uma das responsáveis pela implantação do projeto em Guaíba. As apenadas selecionadas passaram por diversas capacitações sobre condições variadas de saúde, como diabetes, hipertensão e saúde mental. 

Foram produzidos formulários, que as promotoras de saúde preenchem com demandas específicas e entregam no setor de saúde da penitenciária. “Quando começou, em 2017, nós detectamos vários casos graves. Gestantes prestes a ganhar bebê, que não sabíamos, afundamento devido a traumatismo craniano, a detenta chegou, tinha dor de cabeça, mas a gente não sabia. A gente não tem acesso lá dentro, então estes casos passavam despercebidos”, relembra Neusa. Hoje, quem faz a avaliação inicial das detentas e repassa as demandas ao setor de saúde são as promotoras de saúde. “Elas têm um momento de conversa com as mulheres, no pátio e no dia a dia. Elas começam a ter uma visão de quem está precisando de algo, de quem tem algum problema de saúde, de alguém que não está se sentindo bem, que está depressiva, que está com dor, suspeita de gravidez. Todas as questões relacionadas à saúde, elas passam para gente”, diz a enfermeira. Uma vez por semana, um profissional da saúde vai a cada uma das galerias para recolher as demandas.

As promotoras de saúde também agem como multiplicadoras, repassando os conteúdos dos treinamentos às demais detentas. Uma vez por mês, elas se reúnem durante uma tarde inteira com o setor de saúde da penitenciária para abordar diferentes assuntos e datas, como setembro amarelo e outubro rosa. “Sempre que a gente consegue, traz um profissional de fora para ministrar um conhecimento também”, frisa Neusa. Assim como após os outros encontros, as promotoras de saúde repassarão os conteúdos aprendidos no evento do TJRS para suas colegas de detenção, esperando que todas possam aplicar os conhecimentos e reconhecer quando se encontrarem em situação de violência psicológica, rompendo com o ciclo. 

“Cada vez que a gente faz um curso, uma roda de conversa, o choro é recorrente quando se toca em questões de violência emocional, física ou quaisquer dos tipos de violência. Quando começa o assunto, começam também as lágrimas, porque essas mulheres vivenciaram a violência no seu dia a dia é por isso que elas estão aqui”, analisa a diretora da unidade prisional, Isadora Minozzo, que também é bacharel em Psicologia. Ela lembra que, embora as detentas tenham cometido crimes, não necessariamente foram com uso da violência. A maioria delas, em Guaíba, foi condenada por crimes relacionados ao tráfico de drogas. “A gente não sabe se não sofriam nenhum tipo de violência ou de abuso”, destaca, lembrando que inclusive elas podem ter sido violentamente empurradas para o tráfico.

Estudo e trabalho são ferramentas importantes para a ressocialização

Segundo a diretora da penitenciária, quando as apenadas trabalham, estudam ou estão envolvidas em alguma causa, o comportamento delas melhora e as oportunidades de ressocialização também. Foto: Mauro Schaefer

Projetos como o das promotoras de saúde, além de cuidar da saúde entre a população carcerária, incentivam outra causa tão nobre quanto auxiliar no processo de ressocialização das detentas. Segundo a diretora da penitenciária, quando as apenadas estão trabalhando, estudando ou estão envolvidas com alguma causa, o comportamento delas melhora. Isadora entende que este é ciclo virtuoso: “Quanto mais investimento do poder público em ações de tratamento penal, melhor o comportamento e melhor a tratativa com os agentes penitenciários”. Isadora acredita que é um dever das penitenciárias e do Estado oferecer oportunidades para as apenadas que desejam mudar de vida. E é isso que tem tentado fazer desde que assumiu o comando em Guaíba no final do ano passado.

Antes de ser presa, Ana cursava técnico em Enfermagem. Estava no segundo semestre. “Hoje, eu estou aproveitando essa oportunidade da melhor forma que eu posso”, garante, sobre o cargo de promotora de saúde. 

Além do Estado, pela figura da Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe), o Ministério Público (MPRS) também trabalha buscando e incentivando projetos de trabalho e estudo prisional, sempre buscando a ressocialização. “Há dois lados neste objetivo. De um é a atividade que o Estado fornece. Mas, do outro, obviamente, tem que haver a compreensão de que esse trabalho de ressocialização precisa produzir efeito na pessoa presa. Ou seja, não basta só o estado fornecer, é preciso o engajamento da pessoa que está realizando essa atividade de ressocialização”, frisa o promotor de Justiça, Rodrigo da Silva Brandalise, coordenador do Centro de Apoio Operacional Criminal e de Segurança Pública do MPRS. Isadora confirma que a ressocialização também depende muito do agir de cada um, da forma como cada pessoa vive a experiência do cárcere. Algumas podem se revoltar e outras podem refletir sobre suas ações para buscar atuar de forma diferente. 

Na vivência como promotora de saúde, Ana viu renovada sua vontade de trabalhar na área da saúde. “Depois que eu cumprir minha pena, pretendo voltar a fazer meu curso e me candidatar para voltar a trabalhar aqui dentro, para ajudar as penadas como técnica de Enfermagem”, projeta.

Uma das maiores dificuldades na ressocialização de ex-presidiários é a falta de oportunidades após a soltura. “A gente sabe que tem muito preconceito e, então sair e querer recomeçar a vida é uma coisa. Sair e ter oportunidade para recomeçar é outra”, constata Isadora. Mas a ressocialização não trata apenas da reinserção após a soltura e não é apenas o cumprimento das regras na vida fora da cadeia que importa. “Uma detenta que passa a tarde ouvindo uma palestra, aprendendo algo, fazendo alguma atividade, não vai voltar para a cela e brigar. Não vai voltar para a cela e se machucar”, assegura Isadora. 

A diretora da penitenciária aceita propostas de projetos de vários órgãos, para trazer mais possibilidades para apenadas. Foto: Mauro Schaefer

“A gente compreende que há vários efeitos, na medida em que a pessoa vai vendo novas perspectivas. A organização interna também vai sendo facilitada. A questão do trabalho do preso dentro da casa prisional auxilia os agentes penitenciários a terem condições de executar as atividades deles”, observa Brandalise. O projeto Promotoras de Saúde não é a única oportunidade oferecida às detentas. “Nós temos desde aquilo que o estado pode oferecer ele próprio, como trabalho interno e o estudo dentro da própria casa, como, inclusive, a participação do setor privado, seja possibilitando cursos, seja trabalho lá dentro”, exemplifica o promotor de Justiça. Em Guaíba, cerca de 50 detentas estão matriculadas no ensino fundamental, aproximadamente 140 fazem parte da Liga Laboral e trabalham pela remissão das penas (a cada três dias trabalhados, um dia é diminuído da pena), e outro grupo faz trabalhos para uma empresa privada, fabricando bolsas de couro e recebendo 75% do salário mínimo para tal. “A nossa política é uma política de aceitar todas as ajudas propostas. Então, sempre que alguém aparece com uma proposta, como a dessa palestra do Tribunal de Justiça, e diz ‘olha, temos a possibilidade de transmitir para as apenadas’, a gente aceita, porque só se constrói uma mudança se for com muitas mãos”, estimula a diretora da penitenciária. 

“Na medida em que a pessoa que está cumprindo a pena também tenha um retorno para o convívio social, já em outras condições, um novo aprendizado de trabalho, uma nova qualificação educacional, o objetivo justamente para a sociedade é que essa pessoa não volte para atividade criminosa. Uma vez que já houve a condenação, que ela consiga, então, pelas oportunidades que são oferecidas no cumprimento da pena, reconhecer que deve haver a prevalência das regras que todos nós devemos cumprir e não haver com isso a reincidência”, finaliza Brandalise.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895