RS registra cerca de três suicídios por dia e a maior taxa do Brasil

RS registra cerca de três suicídios por dia e a maior taxa do Brasil

A campanha Setembro Amarelo retoma os debates sobre o suicídio, um fenômeno que tira milhares de vida a cada ano

Por
Giullia Piaia

A chance de você, brasileiro, conhecer alguém que morreu por suicídio em 2019 é maior do que a de conhecer alguém que morreu por câncer de colo de útero, câncer coloretal ou Aids no mesmo ano. Naquele ano, 13.523 pessoas tiraram a própria vida no país, conforme dados do Ministério da Saúde, o equivalente a uma taxa de 6,65 por 100 mil habitantes – um aumento de mais de 43% em relação a 2010. Se você viver no Rio Grande do Sul, essa estatística mais do que dobra: 13,34 suicídios a cada 100 mil habitantes em 2019, o maior índice entre os estados brasileiros. Foram 1.423 mortes autoinfligidas no ano, cerca de 3 suicídios por dia. A preocupação com esses dados é um dos fatores que levou à campanha do Setembro Amarelo, que a cada mês de setembro retoma o debate sobre a prevenção ao suicídio.

A esmagadora maioria das pessoas que tiram – ou tentam tirar – a própria vida sofrem com algum transtorno mental, sendo o mais comum a depressão. Entretanto, o suicídio é um fenômeno complexo, que não tem causa única: ocorre devido a múltiplos fatores. Pode afetar pessoas de diferentes origens, idades, culturas, sexualidades e classes sociais, ainda que alguns grupos sejam mais vulneráveis do que outros. Por conta disso, é extremamente difícil chegar a uma conclusão de porque esse índice é tão mais alto no Estado. “São vários os motivos. Um deles tem a ver com o clima. A gente consegue perceber que o suicídio é mais elevado nos polos. Um distanciamento maior da linha do Equador parece ser um fator de risco. Rússia, Groenlândia, África do Sul, Uruguai e RS têm taxas mais elevadas”, aponta o psiquiatra Leandro Ciulla. A grande população em zonas rurais também traz algumas pistas. Venâncio Aires, distante cerca de 130km de Porto Alegre, tem 40% de sua população de 70 mil habitantes em área rural e a maior taxa de suicídio por 100 mil habitantes do Rio Grande do Sul. Em 2021, de acordo com a Secretaria Municipal de Saúde, ocorreram 18 suicídios e 107 tentativas na cidade, ainda que o último número possa ser subnotificado. A origem dos moradores do município coloca em evidência outro possível fator contribuinte. “Pode ser uma predisposição até em função da nossa origem. Mais europeia, mais alemã, que é um perfil mais exigente, mais duro”, observa Maria Cristina Franck, pesquisadora e perita criminal do Instituto Geral de Perícias (IGP-RS).

A atividade predominantemente fumageira do campo em Venâncio Aires também levanta outra questão: a da relação entre suicídios e agrotóxicos. Organofosforados, muito utilizados na cultura do tabaco, estão entre os inseticidas com maior toxicidade para o ser humano, tendo sido, inclusive, utilizados para fins bélicos durante a Segunda Guerra Mundial. Desde os anos 1980, estudos demonstram uma conexão entre os suicídios e o uso de organofosforados, aliado à baixa adesão de uso de equipamentos de proteção individual (EPIs). Uma pesquisa de 2021 analisou 11 estudos que apontaram uma relação de causa-efeito entre a exposição humana aos agrotóxicos e os prejuízos à saúde mental, como depressão, declínio cognitivo, ansiedade, fadiga e desequilíbrio emocional e concluiu que há uma clara associação entre agrotóxicos e neurotoxicidade.

A taxa elevada em solo gaúcho chama a atenção dos pesquisadores e muitos estudos analisam o perfil dos suicídios, que são considerados um problema de saúde pública. Maria Cristina publicou seis artigos sobre o tema. Em um deles, a partir de registros periciais e boletins de ocorrência, foi possível fazer um estudo descritivo e transversal e determinar o perfil epidemiológico e geográfico das vítimas de 2017 a 2019. “Nesse momento do registro o policial, o profissional que está ali fazendo esse procedimento, não tem uma padronização. Então, em muitas ocorrências, não tinham informações de possíveis causas. Em outras, o registro apresentava mais detalhes, ‘segundo um familiar essa pessoa estava passando por um problema financeiro, ela tinha problemas de relacionamento, ela estava com depressão’”, clarifica Maria Cristina. Ou seja, a possível causa, nos estudos da pesquisadora, fica limitada aos casos onde foi feito este registro pelo policial ou perito.

Isso, contudo, não impediu que a perita observasse diversas tendências nos casos analisados. Dos 4.017 suicídios registrados no período, 79,8% das vítimas eram homens. Essa é uma tendência mundial, os suicídios entre pessoas do sexo masculino costumam ser muito mais altos do que entre mulheres, aumentando as taxas gerais. Os idosos (60 anos ou mais) também apresentam maior taxa que as outras faixas etárias: 26,2 a cada 100 mil habitantes. “Os idosos, em geral, tinham muitos problemas de saúde, muitos registros de depressão”, analisa Maria Cristina. “Um aspecto que me surpreendeu, a análise transversal mostrou que a ausência parental, ou seja, a falta do nome, principalmente do pai, na certidão de nascimento, tinha uma relação estatística com casos de jovens entre 15 e 29 anos”, comenta. Dentro da faixa etária dos jovens, pardos, negros e indígenas também apresentam taxas mais elevadas, apesar de, no total, mais de 90% das vítimas serem brancas. Pela análise de correspondência múltipla realizada pela pesquisadora, houve indícios de correlação entre as variáveis idade e problemas em relacionamento, assim como entre alcoolismo e problemas de saúde. Distúrbios psiquiátricos, tentativas prévias de suicídio e o fato de avisar alguém sobre sua intenção suicida mostraram-se mais relacionadas ao sexo feminino.

Não há integração entre os sistemas da polícia e do IGP. Os dados das pesquisas foram buscados e tabulados manualmente por Maria Cristina. “Foi um trabalho muito desgastante fisicamente e emocionalmente também, porque é um tema pesado”, confessa. A falta de mais informações impede que seja traçado um perfil mais exato das vítimas, sendo mais difícil promover ações de prevenção para pessoas com as mesmas características. “Ações de conscientização dos profissionais de segurança pública deveriam ser promovidas no sentido de qualificar as informações relacionadas a esse tipo de óbito”, escreveu a pesquisadora. “A implantação de um instrumento de autópsia psicológica, já testado na região metropolitana de Porto Alegre, poderia auxiliar no enfrentamento desse problema junto aos familiares e amigos das vítimas”, diz ela.

Especialistas apontam que o suicídio é uma questão bastante complexa e que envolve uma série de fatores, que podem incluir desde idade, sexualidade e classe social, até mesmo a aspectos como a localização geográfica. Foto: Ricardo Giusti

Preocupação além do Brasil

Longe de ser um fenômeno brasileiro, o suicídio é uma das principais causas de morte em todo o mundo. De acordo com relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2019, mais de 703 mil pessoas morreram desta – número superior ao de mortes por guerras e homicídios –, o equivalente a 1 em cada 100 mortes. Entre jovens de 15 a 29 anos, foi a quarta causa de morte depois de acidentes no trânsito, tuberculose e violência interpessoal. Alguns países e regiões são mais afetados pelo problema do que outros. Na África, Europa e Sudeste Asiático as taxas são maiores do que a média global (9 por 100 mil) em 2019. A mais baixa taxa de suicídio está na região do Mediterrâneo Oriental (6,4 por 100 mil).

Apesar de ainda ser um problema de grande prevalência, nem tudo são más notícias. Entre 2000 e 2019, a taxa global diminuiu em 36%. A OMS orienta os países a melhorarem a prevenção do suicídio e o atendimento há anos, mas, até o momento, apenas 38 países são conhecidos por terem uma estratégia nacional de prevenção. Nas Américas, no mesmo período de 2000 a 2019, houve um aumento de 17%. A redução de um terço das taxas de suicídio global até 2030 faz parte do terceiro Objetivo para o Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU). “Caso o declínio da taxa global continue neste ritmo, o ODS não será cumprido a tempo”, alerta o relatório da OMS.

Conforme a entidade, entre os países, as taxas variam de menos de 2 suicídios por 100 mil habitantes (Barbados, 0,3/100 mil) a mais de 80 (Lesotho, 87,5/100 mil). Em 2019, a taxa atribuída ao Brasil foi de 6,4 por 100 mil. “Cada um destes dados representa uma vida perdida para o suicídio. Cada uma das perdas é demais”, frisa o documento.

Prevenção é dever conjunto

Campanhas de prevenção ao suicídio têm aparecido com mais destaque nos últimos anos, inclusive nas redes sociais, sempre ressaltando que há atendimento permanente para quem busca ajuda. Foto: Alina Souza / CP Memória

Questão de saúde pública, a prevenção do suicídio é um dever em comum a todos. Na busca por enfrentar as altas taxas estaduais, o governo do Rio Grande do Sul instituiu, este ano, o primeiro Plano Estadual de Promoção da Vida e Prevenção do Suicídio. O documento traz um plano de ação para que a Política de Promoção da Vida, aprovada em 2019 pela Secretaria Estadual de Saúde (SES), seja colocada em prática. “Trouxemos também algumas propostas para que os municípios possam desenvolver seus planos de ações, avaliando aquelas ações que eles consideram possíveis e que também acham necessárias de acordo com a realidade de seu território”, estimula Marilise Fraga de Souza, chefe da Divisão de Políticas Transversais da SES.

As ações previstas no plano acontecem em três diferentes níveis: prevenção universal (direcionadas à população em geral); prevenção seletiva (direcionada à população vulnerável); e prevenção específica ou indicada (para a população em risco). Para o primeiro grupo são previstas ações para a sensibilização acerca da temática e a instrumentalização para ação preventiva, a promoção de atividades de esporte, lazer, artísticas, culturais, a promoção de parcerias com entidades para a criação de estratégias de fortalecimento econômico, o estímulo do ensino e da pesquisa sobre o comportamento suicida, o monitoramento das redes sociais para evitar a abordagem incorreta sobre o tema, entre outros vários itens.

No segundo nível, as ações são voltadas a grupos populacionais específicos, como idosos, indígenas, população LGBT+, população negra, pessoas com deficiência, refugiados, população rural, pessoas com transtornos mentais e comportamentais, pessoas em situação de violência, profissões vulneráveis, dentre outros. Para essas populações se busca, além da garantia do acesso aos serviços de saúde, uma maior integração societal, com enfrentamento de desigualdades, preconceitos e discriminação. Para a população em risco, a depender do nível de risco, que vai de alto a leve, as ações são pensadas no sentido de estabelecer uma rede de cuidados e de restrição de acesso aos meios, como armas de fogo, medicamentos e pesticidas. “Por fim, as questões relacionadas às ações de vigilância também são importantes. Qualificar os dados, poder ter um sistema de informações e alimentar este sistema para que a gente tenha os dados mais fidedignos possíveis”, acrescenta Marilise.

A nível nacional, em 2019, foi instituída, com a Lei nº 13.819, a Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio, a ser implementada pela União, em cooperação com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios. No ano seguinte, foi designado um comitê gestor para a fiscalização da aplicação da lei. Assim como as políticas estaduais, as nacionais também foram implantadas recentemente, buscando mitigar um problema antigo. Se o Estado tem papel fundamental, pode-se dizer o mesmo das famílias. “Mudanças bruscas de comportamento, a pessoa passa a ser de um jeito diferente do que era, pode falar de morte ou postar sobre suicídio, maior isolamento, agressividade, impulsividade, aumento no uso de álcool e drogas, dificuldades para dormir, questões relacionadas a alimentação, falta de prazer nas atividades usuais são alguns dos sinais aos quais os familiares devem estar atentos”, exemplifica a psicóloga Karen Scavacini. Ao perceber essas mudanças comportamentais, é preciso estender a mão. “A primeira coisa é deixar o preconceito de lado. Oferecer uma escuta acolhedora, sem julgamento, sem olho no relógio, sem pressa, querendo muito mais ouvir do que dar conselhos”, ensina. Conselhos, aliás, que não resolverão problemas mentais. É preciso se colocar à disposição da pessoa e, ao perceber risco suicida, incluir profissionais da área da saúde mental no cuidado. “Quando a gente está falando de desejo de suicídio, desejo de morte, e aquilo já é um planejamento, é algo muito complicado para uma pessoa resolver sozinha”, constata.

Mas esse papel tampouco cabe apenas à família. “Ele pode ser feito por qualquer pessoa num dado sentido no momento que ela percebe que a outra não está bem e isso vale para toda a sociedade”, estimula Karen. Ademais, nem sempre a família será capaz de prevenir o problema. “Eu conheci diversas famílias que funcionavam muito bem e ainda assim o suicídio ocorreu”, conta. E em tempos que cada vez mais pessoas vivem sozinhas, sem contato diário com familiares, é importante que iniciativas para prevenção do suicídio estejam presente para diferentes públicos, em ações implementadas tanto pela iniciativa pública quanto privada. Contudo, levantar questões relativas à saúde mental em ambientes laborais, por exemplo, onde demonstrar alguma vulnerabilidade ainda pode ser bastante ameaçador, é um grande desafio. É com isso em mente que o Sesi/RS propõe o programa de formação de Brigada de Emergência Psicossocial, a capacitação de um grupo de trabalhadores para atender situações emergentes de risco psicossocial de seus colegas, de forma pontual e não invasiva. A metodologia é inspirada no guia Primeiros Cuidados Psicológicos elaborado pela OMS.

“Pensamos nos brigadistas de emergência quando tem algum acidente. E a ideia era capacitar um grupo de pessoas leigas, que não necessariamente entendem dessa temática, para que elas estejam prontas, capacitadas, aptas para um primeiro acolhimento em situações que envolvam risco psicossocial”, esclarece Graziela Alberici, psicóloga e especialista em saúde mental no trabalho. Os voluntários aprendem a ajudar pessoas que estejam em crises de ansiedade, ataques de pânico, situações envolvendo o uso de álcool e outras drogas, violência doméstica, luto, entre outros. “A ideia é poder ter nos locais de trabalho um grupo voluntário capacitado para que, quando ocorrer alguma situação, o colega seja atendido prontamente. A pessoa detectou pelo olhar que aquela pessoa não estava bem e, então, pode agir a tempo pode salvar uma vida”, argumenta. Exercícios de respiração, técnicas de tranquilização e escuta são algumas das coisas ensinadas aos brigadistas. A capacitação está disponível para empresas e indústrias, com mais informações disponíveis no site do Sesi. “A gente também consegue capacitar professores e coordenadores pedagógicos para atender alunos em escolas”, acrescenta Graziela.

Após uma percepção e acolhimento inicial de um familiar, amigo, colega ou, até mesmo, do próprio indivíduo é necessário o encaminhamento aos profissionais de saúde que poderão dar seguimento ao tratamento. Comportamentos suicidas, aliados aos transtornos mentais subjacentes, não “passam” por conta própria e pedem intervenção médica. “Existem tratamentos para que a gente consiga evitar o suicídio. Eles envolvem o uso de medicamentos, e são importantes quando a gente fala de depressão grave. Também existem tratamentos biológicos, que envolvem procedimentos”, cita o psiquiatra Ciulla. De acordo com o especialista, em muitos casos em que a pessoa comete suicídio, ela o faz sem haver recebido atendimento psiquiátrico previamente. “Em estudos de autópsia psicológica, a gente vai atrás para ver o que aconteceu com aquela pessoa que cometeu o suicídio. E geralmente, elas já acessaram algum serviço de saúde, mas não chegaram a um psiquiatra, a uma avaliação psicológica mais avançada”, conta o profissional. “Então é importante que médicos de atendimento primário estejam muito atentos a sintomas depressivos. Esse paciente precisa ser encaminhado para uma avaliação médica psiquiátrica ou uma avaliação psicológica”, explica.

Ademais, prevenção também significa mitigar as causas secundárias dos suicídios. “A gente precisa olhar não só a questão da saúde pública, da falta de acesso ao tratamento saúde mental, mas como também as questões sociais relacionados: violência tanto estrutural, como escolar, como mesmo dentro da residência, questões culturais com relação ao homem, por exemplo, que acha que tem que dar conta de tudo sozinho, prover tudo para família”, aponta a psicóloga Karen.

De acordo com os estudos da perita criminal Maria Cristina Franck, dentre os 4.017 suicídios ocorridos no RS entre 2017 e 2019, considerando apenas o que está registrado nas ocorrências policiais, em 11,1% dos casos a vítima avisou alguém da intenção de suicidar-se. Mais de 400 vítimas poderiam ter sido encaminhadas a um serviço de saúde e possivelmente salvas antes de cometerem o ato.

Tema ainda é considerado tabu até mesmo no jornalismo

Afora a questão da prevenção, é preciso também que exista uma preocupação com as causas secundárias dos suicídios como, por exemplo, os cenários de violência, seja dentro de casa, como também no trabalho e na escola. Foto: Alina Souza / CP Memória

Milhares de vidas são perdidas anualmente para o suicídio. A despeito disso, o tema continua sendo um grande tabu. Este estigma dificulta a identificação de indivíduos em risco e a sugestão de um tratamento adequado. O problema é jogado para debaixo do tapete, muitas vezes mesmo por pessoas próximas. “Para que a gente possa prevenir o suicídio, a gente precisa quebrar esse tabu. Eu acho que agora com essa campanha [Setembro Amarelo] está se abrindo uma janela de oportunidade muito grande para tratar sobre o assunto e a gente sabe que quando uma campanha trata sobre o assunto de forma responsável a gente consegue diminuir casos de doenças”, opina Ciulla.

Até mesmo dentro do jornalismo o suicídio é um tabu. Durante muito tempo, o assunto sequer era mencionado pela imprensa. Mas, desde que tratado de forma adequada, ferramentas de comunicação podem ajudar na prevenção. “A gente precisa discutir o tema e falar abertamente sobre ele, isso também vale para a mídia. Temos que tomar alguns cuidados, como não publicar fotos de locais, de métodos, de suicídio em si, falar de suicídio ‘bem-sucedido’, ou dar a entender que a pessoa está melhor após a morte. Também não se deve dar a entender que você está disponível para ajudar se você não estiver”, frisa Karen Scavacini, sobre cuidados que devem ser tomados tanto pela mídia quanto pela população em geral.

“A gente pode falar de vários suicídios, inclusive de famosos. Desde que o foco seja a educação e encaminhar as pessoas para o cuidado necessário. Dependendo de como a gente fala, a gente diminui o número dos casos através do efeito Papageno”, constata a psicóloga. O efeito Papageno acontece quando a divulgação de informações adequadas para a prevenção do suicídio leva a diminuição de comportamentos suicidas, sendo o oposto do efeito Werther, que trata de picos de emulações de suicídios após casos amplamente divulgados – um dos medos que levam o tema a ser pouco discutido na mídia e na sociedade.

Foi ao perceber a falta de diálogo e informações sobre suicídio no Brasil que Karen teve a ideia de abrir um instituto dedicado a isso. “Fiz um mestrado em promoção de saúde mental na Suécia e fiquei completamente chocada com os números de suicídios, que eu nem conhecia, mesmo sendo psicóloga. Eu não tinha tido nenhuma aula de prevenção ao suicídio na faculdade, como ainda é realidade na maioria das faculdades de psicologia no Brasil”, relata a especialista. Depois dos estudos no exterior, ao voltar para cá, Karen fundou o Instituto Vita Alere. “A ideia foi justamente montar um instituto para poder trabalhar prevenção em diversas frentes de trabalho”, elucida.

O instituto oferece uma série de materiais e cursos de capacitação online e gratuitos, além de grupos de apoio e atendimento individual para pessoas com familiares com comportamentos suicidas e orientações sobre prevenção para famílias, empresas e escolas. “A gente tem bastante campanha de prevenção nas redes sociais, que têm como objetivo falar mais sobre o assunto e ajudar as pessoas a reconhecerem que alguém precisa de ajuda ou se elas mesmas precisam de ajuda”, respalda Karen. As campanhas indicam onde há serviços disponíveis para quem precisa de ajuda, locais onde falar de forma segura sobre suicídio, como conversar com jovens. Algumas delas são, inclusive, voltadas especificamente para jovens, como a campanha #EuEstou, em diversas redes sociais, o Festival Amarelo, que usa a arte e a poesia para falar de saúde mental durante o mês de setembro. O Vita Alere também é bastante ativo no TikTok, rede social majoritariamente usada por jovens, chegando a ser premiado no TikTok Awards do ano passado, na categoria “Agente de Transformação”, por conta do engajamento promovido durante a campanha do Setembro Amarelo na plataforma. “Temos também a colcha da memória viva, onde a gente recebe fotos de familiares de pessoas que faleceram, a gente imprime no tecido e costura esse tecido como uma colcha de retalhos, para mostrar que por trás dos números tem história e que ninguém está sozinho”, destaca.

O luto dos "sobreviventes"

Pessoas enlutadas pelo suicídio são chamadas de “sobreviventes”. Karen Scavacini trouxe para o Brasil a ideia de "posvenção do suicídio". O termo se refere aos cuidados realizados para os sobreviventes. “Ele está sempre ligado ao luto. Para cada morte por suicídio, até 125 pessoas podem ser impactadas”, aponta a psicóloga.

O luto dos sobreviventes pode ser mais intenso e duradouro do que de outros enlutados. “Há culpa, o estigma, a busca incessante do porquê. Ele pode inclusive ter um risco maior de suicídio. É claro que eu não estou falando que dói mais ou menos que outros tipos de morte. Mas ele tem características que são muito específicas por conta de toda a visão que as pessoas têm ainda, todo estigma”, esclarece Karen. Uma das formas mais comuns para pessoas enlutadas pelo suicídio são os grupos de apoio.

“Não somos onipotentes, de achar que a gente pode prevenir todos os suicídios, porque ele pode ser prevenível, mas ele não é previsível”, defende Karen. “Tem pessoas que não vão dar sinal ou alguns sinais que são tão difíceis de serem entendidos que eles só fazem sentido depois da morte, então é importante que as pessoas conheçam os sinais, mas também entendam que nem sempre isso vai ser observado”, salienta.

Ajuda permanente

Caso a pessoa ache que precisa ajuda em relação ao tema, pode buscar acolhimento para superar o momento difícil. O foco das campanhas é ressaltar que o indivíduo não está sozinho e esse sentimento não irá durar para sempre. Se não se sentir confortável para falar sobre o que sente com alguém conhecido, o Centro de Valorização da Vida (CVV) presta serviço voluntário e gratuito de apoio emocional e prevenção do suicídio para todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo e anonimato. O CVV funciona 24 horas por dia (inclusive aos feriados), pelo telefone 188, e também atende por e-mail, chat e pessoalmente. As Unidades Básicas de Saúde também prestam atendimento, assim como o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), no telefone 192, e os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) do Estado.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895