Rua do Arvoredo: os crimes que viraram lenda urbana em Porto Alegre

Rua do Arvoredo: os crimes que viraram lenda urbana em Porto Alegre

Passados 160 anos dos crimes da rua do Arvoredo, todo um imaginário segue vivo na Capital, com uma trama que acrescenta elementos de ficção à realidade e que ainda hoje instiga a cultura e a população local

Alberi de Souza (E), dono de um açougue na rua Fernando Machado, e Marco Antônio Ramires Fonseca se divertem recontando trechos da lenda

Por
Rodrigo Thiel

Sexta-feira, dia 15 de abril de 1864. Por volta das 17h, Januário Martins Ramos da Silva, dono de uma taberna (uma espécie de armazém, à época) entrou em uma casa na rua do Arvoredo, atualmente rua Coronel Fernando Machado, no Centro de Porto Alegre. Ele nunca mais saiu vivo de lá. Poucas horas depois, um menino de 12 anos, José Ignácio de Souza Ávila, que trabalhava como caixeiro de Januário, e o cachorro do dono da taberna, tiveram o mesmo destino na fatídica casa, que ficava nos fundos do Palácio Piratini.

No local, outro corpo, já em avançado estado de decomposição, também foi encontrado. O proprietário da casa, José Ramos, e sua então companheira, a húngara Catharina Palse, pareciam ter cometido o crime perfeito, mas crimes perfeitos não deixam suspeitos. Eles deixaram. E o resto virou uma das maiores – se não a maior – lendas de Porto Alegre. Passados 160 anos dos crimes da rua do Arvoredo, todo o imaginário segue vivo na Capital, com toda sua trama de surrealismo, mistérios e os fatos que aconteceram. Apesar disso, os porto-alegrenses – e todos os gaúchos – parecem já ter escolhido “a sua versão”.

A lenda da rua do Arvoredo: canibalismo e sedução

Cerca de 100 metros de onde ocorreram os crimes, na mesma rua Coronel Fernando Machado, Alberi de Souza possui uma casa de carnes há mais de 50 anos. Como todo bom açougueiro, um de seus itens à venda é a linguiça, fato que atiça a curiosidade de quem conhece o mito relacionado à trama dos crimes da rua do Arvoredo. Entretanto, ele garante que o item vem pronto de fábrica, justamente para evitar qualquer tipo de suspeita com relação ao crime que ocorreu na rua.

“A gente conhece a lenda e o pessoal brinca com isso. Vem gente de fora visitar a rua e passa aqui com a família para conhecer”, falou o açougueiro. Questionado sobre a procura de clientes por linguiça, ele ressalta: “O pessoal compra bastante, pois sabe que é industrializado, produto de marca com procedência. Se fosse sem rótulo, todo mundo ia ficar espiado, principalmente por ser na rua do Arvoredo”, brincou Alberi.

O canibalismo, através do consumo de carne humana utilizada para fabricar o alimento processado, é o detalhe mais sórdido desta lenda. Todo o mito que envolve os crimes da rua do Arvoredo também tem como elementos a população da Capital como suposta cúmplice do consumo da carne, um calabouço e a atração que seria feita por uma bela mulher: a húngara Catharina Palse. A trama ficou famosa no final do século passado, com a publicação de livros e romances sobre o tema.

A principal versão da lenda aponta que José Ramos, que era cortador de carne, era parceiro de negócios de um alemão chamado Carlos Klausner, que tinha um açougue na rua da Ponte, atual rua Riachuelo. No período, muitas pessoas estavam desaparecidas e, conforme o mito, elas foram assassinadas pela dupla para servirem de matéria-prima para a produção da linguiça que era comercializada por Klausner em seu açougue.

Entretanto, depois de participar de muitas mortes e comercializar carne humana, o açougueiro teria desistido de seguir com os crimes e decidiu sair de Porto Alegre. Neste momento, José Ramos, decidido em não deixar os negócios de lado, matou Klausner para ficar com o açougue. Meses depois, o mesmo modus operandi foi utilizado para assumir a administração da taberna de Januário, mas Ramos e sua companheira foram presos dias depois.

O escritor Tailor Diniz, que recentemente lançou o livro “Os Canibais da Rua do Arvoredo”, uma sátira moderna do caso, aponta que alguns detalhes da lenda trazem elementos plausíveis. “No processo, são três mortos e um cachorro, mas existiam outras pessoas desaparecidas na mesma época. Além disso, se consumia muita linguiça em Porto Alegre e o Klausner era um dos principais fornecedores para a população. Como ele era amigo do José Ramos, bastava um fio de pólvora para criar esse raciocínio da lenda, para fazer essa ligação entre eles”, contou.

Diniz também falou sobre a importância desta lenda para a história de Porto Alegre. “Eu acho verossímil essa versão, o que é bem diferente de acreditar na história. Mas essa lenda tem uma consistência. Para o bem de Porto Alegre, é bom que seja verdadeira essa história, que tudo isso tenha acontecido mesmo, pois essa lenda não acaba mais”, completou o escritor.

No Centro de Porto Alegre, a hoje rua Fernando Machado chamava-se Rua do Arvoredo e foi onde ocorreram os assassinatos de ao menos três pessoas | Foto: Fabiano do Amaral

Mutilação e ocultação: um serial killer à moda gaúcha

“Cumpre-me levar ao conhecimento de vossa excelência quanto ocorreu nesta capital por ocasião da prisão e interrogatório de José Ramos e seus cúmplices no assassinato de Januário Martins Ramos da Silva e seu caixeiro. Tendo desaparecido na sexta-feira, 15, o taberneiro Januário e seu caixeiro, mandei chamar o Subdelegado de Polícia do 2º Distrito, e o incumbi de proceder as necessárias averiguações. Ontem pela manhã me dirigi a casa de sua residência, na Rua do Arvoredo, onde se conseguiu descobrir enterradas em um poço do quintal, os cadáveres de Januário e de seu caixeiro, ambos horrivelmente mutilados, e, no porão da casa, porção de ossos humanos, completando outro cadáver, já quase seco. O povo, que desde pela manhã me acompanhava nas pesquisas, continuava estacionado em frente a esta repartição com vozerias, pedindo em gritos que se lhe entregasse os presos para sobre eles fazer, por suas mãos, justiça. Não julgando bastantes as praças disponíveis do Corpo Policial para conduzir os presos à cadeia, requisitei 20 praças do 3º Batalhão de Infantaria, que foram cercadas e ameaçadas pela multidão, maior de 200 pessoas. Vendo que ainda era pouca essa força, o Tenente Coronel Comandante do Batalhão e da Guarnição, a meu pedido, mandou comparecer mais 30 praças. Nessa diligência foram feridas algumas pessoas. O povo acompanhou a força apedrejando-a continuamente, e travando conflito com as praças de polícia. Os presos foram finalmente recolhidos a Cadeia à meia-noite.”

O relato acima faz parte de uma correspondência encaminhada em 19 de abril de 1864 pelo Chefe de Polícia do RS, Dario Rafael Callado, ao vice-presidente da província (correspondente ao vice-governador), Patrício Correia da Câmara. Além de dar detalhes de como os corpos foram encontrados dentro da casa, a carta também demonstra o forte apelo popular sobre o caso à época. Nela, o chefe de polícia contou das dificuldades de conseguir levar os presos da então Casa de Câmara e Cadeia, que ficava na praça da Matriz onde hoje é o Palácio do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, até a cadeia, chamada de Casa de Correção, que ficava ao lado de onde hoje é a Usina do Gasômetro.

Esta correspondência faz parte de uma série de documentos, entre depoimentos, autópsias, cartas e inquéritos, relacionados aos processos judiciais dos crimes da rua do Arvoredo. Parte destes documentos já estavam no RS, mas o restante foi localizado no início do século XXI no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro. A capital carioca era, na época, a capital do Brasil. Além disso, era lá que funcionava o Tribunal da Relação responsável por julgar os crimes cometidos no RS até a criação do TJRS, uma década depois das mortes.

Paulo Roberto Staudt Moreira, pesquisador e professor da Universidade Federal de Pelotas (Ufpel) e da Universidade Federal do Rio Grande (Furg), atuou por cerca de 20 anos no Arquivo Histórico do RS. No local, ele foi um dos responsáveis por transcrever todos os documentos dos processos relacionados com os crimes. Moreira aponta que alguns detalhes que tornaram a história uma das maiores lendas de Porto Alegre não possuem registros oficiais. Entre eles, estão o consumo de carne humana a partir de linguiças e a suposta sedução de Catharina Palse, companheira de José Ramos, para atrair as vítimas até a casa.

“É uma ficcionalização que a cidade incorporou. Só que em termos de documentação que existe, a gente sabe que foram cometidos três crimes. O primeiro foi o do Carlos Klausner, que era o dono de um açougue que o José Ramos trabalhou. Ele (Ramos) se apresenta com várias profissões, uma delas era informante de polícia. E uma das coisas que ele disse que fazia era ser cortador de carne. Ele não dizia que era açougueiro. Acontece que ele mata o Klausner e ninguém se importa. Ele desapareceu e, misteriosamente, não teve investigação, tanto que ele é enterrado no porão e fica lá apodrecendo”, apontou.

Acredita-se que morte de Klausner ocorreu em 1863, em função do avançado estado de decomposição do corpo. Os crimes subsequentes foram cometidos meses depois, em abril de 1864. Moreira conta que Januário era o proprietário de uma taberna na então rua da Igreja, atualmente rua Duque de Caxias, na esquina com a rua Vigário José Inácio. A segunda vítima não era natural do RS, mas sim da Bahia.

Já a terceira era um adolescente, o menino José Ignácio de Souza Ávila, que trabalhava de caixeiro de Januário. Segundo o pesquisador, esta era uma função normalmente ocupada por pessoas jovens que estavam se preparando para entrar no ramo do comércio, na época. Moreira conta que a série de crimes que ocorreu naquele dia se inicia quando José Ramos vai até a taberna e convida Januário para ir até a sua casa na rua do Arvoredo. “Só que o José Ramos comete um erro, que inclusive está na documentação policial: ele é visto andando na rua com o Januário. Além disso, no outro dia, a taberna não abre e isso gera uma certa celeuma na população. Aquela falta de interesse que teve com o Klausner não acontece com o caso do Januário.”

A transcrição dos documentos ainda permite entender detalhes de como os corpos foram encontrados. O auto de exumação e busca das vítimas foi apontado pelo escrivão João Henrique Froes no dia 18 de abril de 1864 e relata a visita do chefe de polícia à casa onde elas foram achadas. Na ação, dois condenados à prisão foram convocados e utilizados para vasculhar, escavar e retirar os restos dos corpos do local.

“Após a remoção de alguma terra, apareceram ossos das extremidades inferiores e da bacia do corpo humano. Prosseguindo o trabalho de escavação no fundo de uma cova com três palmos de comprimento e dois de largura, foi descoberto o resto de um cadáver humano ainda envolto em roupa, porém em avançado estado de putrefação. Prosseguindo a investigação em diversos lugares da casa, no quintal, em um poço coberto de lixo e ramos verdes, foram descobertos dois cadáveres, um de adulto e outro de menor, partidos em pedaços, estando as cabeças separadas dos troncos, estes mutilados e separados das extremidades. Ambos os cadáveres pareciam enterrados de pouco, pois que a putrefação estava em começo. Dentro do mesmo poço, foi encontrado morto um pequeno cão de pelo preto com uma malha branca da garganta até o ventre”, relatou o auto de exumação e busca.

No auto, ainda é relatada a apreensão de objetos de dentro da casa, como dois machados e itens que pertenciam às vítimas. Os retalhos dos corpos foram encaminhados para a Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, onde familiares foram convocados para reconhecer a identidade das vítimas. Lá, também foram realizados os exames de corpo de delito, que apontaram grandes golpes feitos por instrumentos cortantes e contundentes, possivelmente um machado, como a causa das mortes.

A versão dos acusados

Outros documentos transcritos trazem detalhes dos depoimentos de José Ramos e Catharina Palse. Além deles, outro homem foi preso e uma mulher escravizada foi levada junto como testemunha. O homem era um alemão chamado Henrique Reimann, apelidado de corcunda, e a mulher era Senhorinha. Ela não pertencia ao casal, mas sim a um vizinho. Por não ter onde ficar na casa do seu então proprietário, ela morava na casa de José e Catharina em troca de ajuda nos afazeres domésticos.

Já o alemão havia ficado hospedado na casa por alguns dias, mas deixou o local dias antes das mortes de Januário e José Inácio. Mesmo preso inicialmente, ele foi liberado das acusações por provar que estava hospedado em um hotel na rua da Praia – atual rua dos Andradas – na noite em que o crime aconteceu. Conforme os documentos transcritos, seu alvará de soltura foi expedido no dia 12 de maio de 1864. Catharina foi a primeira a prestar depoimento ao chefe de polícia da província e, logo de cara, já comunica a ele sobre a autoria dos homicídios.

O escritor Tailor Diniz e seu livro ‘Os Canibais da Rua do Arvoredo’ | Foto: Mauro Schaefer

“Perguntada o que foram fazer lá (na casa) essas pessoas, ela respondeu que o homem foi convidado por José Ramos para jantar. Às 16h30min, ela foi dar água às galinhas e, quando voltou, achou caído no chão o homem da venda (taberna) e José Ramos o agarrou e arrastou para o porão. Seriam 18h quando (Ramos) saiu e voltou às 19h30min trazendo um menino e sentaram-se juntos na sala. Às 20h, foi falar com Senhorinha e, quando voltou para a sala, encontrou José Ramos na varanda arrastando o menino já morto”, relatou a transcrição.

Catharina ainda contou que fazia sete meses que ela havia se mudado para a casa. Questionada sobre o terceiro cadáver encontrado na casa, ela respondeu que não sabia da existência do corpo, pois a casa estava limpa quando se mudou para lá. O próximo a depor foi José Ramos, que negou as acusações e falou não saber como os corpos foram aparecer no quintal da sua casa, pois não estava no local. Segundo o seu depoimento, as únicas pessoas que estavam na casa eram Catharina e o “alemão corcunda”.

Paulo Roberto Staudt Moreira, que realizou pesquisas sobre ocaso e escreveu ‘Odiosos Homicídios - O Processo 5.616 e os Crimes da Rua do Arvoredo’. | Foto: Mauro Schaefer

No mesmo interrogatório, a polícia também perguntou sobre a relação de José Ramos e Carlos Klausner, indicando que, mesmo em estado avançado de decomposição, já havia indícios de quem seria. Ramos respondeu que conhecia Klausner, de quem ele havia comprado o açougue em setembro de 1863, mas que o açougueiro (que era alemão) havia voltado para a colônia junto com outro alemão chamado Frederico. Ao final do depoimento, quando foi informado a ele que Catharina o havia indicado como autor dos crimes, José Ramos falou que era tudo mentira.

A escrava Senhorinha também prestou depoimento para a polícia. Em seu relato, ela conta que viu Januário e o menino dentro de casa e que Catharina havia fechado algumas portas da residência para que ela não pudesse sair de seus aposentos. A escrava também relatou ter visto Catharina lavando a escada que desce para o quintal e mais alguns objetos que estavam com marca de sangue. Questionada dois dias depois sobre isso, a húngara confirmou ter limpado o sangue da casa a mando de José Ramos.

Um primeiro júri ocorreu em agosto de 1864. Nele, os jurados decidiram que José Ramos cometeu os homicídios, mas que estes não foram premeditados. Além disso, o júri decidiu que Catharina Palse ajudou o companheiro a cometer os crimes. Ele foi condenado à morte. Ela foi condenada a 13 anos e quatro meses de prisão. José Ramos ainda pediu um novo julgamento, algo que era permitido em lei à época para pessoas condenadas à morte.

O novo júri do acusado iniciou no dia 30 de abril de 1865 e terminou em 1º de maio de 1865. No segundo julgamento, os jurados chegaram à conclusão de que o réu cometeu os homicídios e, ao contrário do primeiro júri, entenderam que os crimes foram premeditados. José Ramos foi novamente condenado à morte e, em novembro do mesmo ano, o processo foi enviado ao Tribunal da Relação do Rio de Janeiro.

‘Porto Alegre já escolheu a sua versão’

Para o pesquisador Paulo Roberto Staudt Moreira, na prática, a ida do processo para o Rio de Janeiro apenas serviu para confirmar o que foi deliberado pelo júri no RS. Além disso, ele cita que muito da ficcionalização criada sobre o tema iniciou na década de 1990, quando romances e livros com viés históricos foram lançados. Sem julgar os trabalhos, ele conta que estas obras trabalhavam praticamente no limite entre história e ficção. “O auto de corpo de delito mostra que os corpos foram mutilados, mas não tem comprovação do canibalismo. A documentação jurídica que temos não nos dá margem pra pensar isso. Existem dúvidas sobre o cadáver do Klausner, pois o corpo de delito não foi feito com muita perícia. O próprio auto fala que o corpo estava desossado. Teve também a revolta da população, que pode indicar algum motivo que a gente não sabe. Como historiador, não posso aventar que houve canibalismo, mas eu acredito que talvez circulasse na cidade uma espécie de imaginário com relação a isso”, pontuou.

Na rua Coronel Fernando Machado, antiga rua do Arvoredo, um café temático utiliza a lenda misteriosa para envolver seus clientes | Foto: Fabiano do Amaral

Já com relação à Catharina, o pesquisador acredita que foi criada uma imagem de uma mulher que atraia as pessoas. Entretanto, os documentos apontam ela como alguém que trabalhava e ajudava a agenciar os negócios do José Ramos. “Ela foi sexualizada, mas isso não existe nos processos. O que os documentos dão a entender, ou seja, permite que isso seja aventado, é de que ela trabalhava como prostituta, pois, em certos momentos, ela diz que saía muito à noite, mas os policiais nem chegam a explorar ou questionar sobre isso.”

Em determinado momento, dias depois da prisão, durante um dos interrogatórios, quando é perguntado sobre uma quantia de dinheiro que ele havia dado para Catharina guardar, José Ramos afirma que ele não era casado com ela e que a companheira “andava procurando a sua vida de noite, e essa profissão lhe rendia às vezes, no mês, de 100 a 130 mil réis”.

O escritor Tailor Diniz e seu livro ‘Os Canibais da Rua do Arvoredo’ | Foto: Fabiano do Amaral

Moreira destaca ainda o período em que ocorreram os crimes, principalmente com o crescimento da importância econômica da Colônia de São Leopoldo e a sua relação com a Capital. “A Capital tinha uma presença grande de alemães. E o casal estava indo bem, pois ambos falavam alemão e serviam de intermediários. Essa é uma possibilidade de pensar no motivo pelo qual eles queriam um estabelecimento comercial, como a taberna. Se tivessem conseguido ter sucesso nos crimes, estrategicamente, eles poderiam se dar muito bem. Parecia muito um casal tentando se virar em uma sociedade muito violenta”, contou.

Apesar de todas as variações na história dos crimes da rua do Arvoredo, o pesquisador entende que a versão que envolve canibalismo não sairá da memória dos gaúchos. “Não adianta nós, historiadores, ficarmos cutucando muito, pois a versão do consumo geral de carne humana vai permanecer. A população gosta muito disso. Porto Alegre já escolheu a sua versão”, reforçou.

Ele aponta que são os ingredientes curiosos que fazem florescer o apego dos gaúchos na lenda. “Tu tens uma mulher que atrai homens, um outro cara que é praticamente um serial killer gourmetizado. A população praticamente se torna cúmplice desse canibalismo. Então acho que Porto Alegre tem um pouco dessa coisa de gostar de imaginar que isso foi verdade. A cidade se constitui um pouco de casos como esses. Eles fazem parte do nosso imaginário”, finalizou.

Um símbolo controverso da vida da capital do Rio Grande do Sul

Se o caso, passados 160 anos, ainda é consumido através de romances, documentários e filmes, é porque ele segue vivo no imaginário popular dos gaúchos. Para o autor Tailor Diniz, parte da cidade assimila bem a história e, principalmente, a lenda. Por outro lado, ele conta que parte da população ainda tem repulsa sobre a possibilidade do consumo de carne humana nos anos 1860. “Tem uma turma que consome isso numa boa, que entende que não se deve esconder a história. Imagina se Londres escondesse o caso do Jack, O Estripador? Eles iam deixar de faturar muito com turista. Essa é uma forma madura de encarar as coisas. Mas ainda há muitos que não convivem bem com a história do canibalismo. Eu acredito que cultivar o imaginário sobre esse caso não é algo que vá macular a imagem de Porto Alegre.”

O autor recorda que, logo após lançar seu novo livro, viu pessoas reclamando nas redes sociais e em livrarias de que “ninguém mais aguentava essa história”. Intitulado “Os Canibais da Rua do Arvoredo”, o romance ficcional, ou seja, que usa como base a lenda criada sobre o caso, retrata como ocorreriam os crimes se acontecessem nos dias atuais, em pleno 2024. Diniz conta que a sátira surgiu de uma adaptação de um roteiro de filme, que começará a ser gravado em 2025.

No Centro de Porto Alegre, a hoje rua Fernando Machado chamava-se Rua do Arvoredo e foi onde ocorreram os assassinatos de ao menos três pessoas | Foto: Fabiano do Amaral

“Se na época eles produziam linguiça, agora eles fazem hambúrguer gourmet. A Catharina é uma estudante de medicina que gosta muito de anatomia e o José é um estudante de gastronomia em busca do tempero perfeito. Ambos são veganos e se mudam para uma casa também na rua do Arvoredo, que teria sido construída no mesmo terreno. Lá, eles descobrem no porão todo o material que os antigos usavam. Tem moedor de carne, cutelo, mesa. A partir disso, começam a matar gente e vender a carne para uma hamburgueria que fica na vizinhança. O lugar fica famoso quando uma influencer faz uma live e aumenta a demanda de matéria-prima.”

Ainda na rua do Arvoredo, a atual rua Coronel Fernando Machado, um café utiliza da trama misteriosa para envolver seus clientes. No Café Mal Assombrado POA, o público tem acesso a objetos de época, itens que recordam os crimes e livros que abordam as histórias mais misteriosas da capital gaúcha. Além disso, um prato serve “homenagem” macabra para os crimes: uma cuca com linguiça, em alusão à lenda do canibalismo.

Conforme o proprietário do espaço, o músico André Hernandez Neto, Porto Alegre ainda precisa amadurecer sua relação com o caso. “Na Inglaterra não se discute o rei Arthur, o Robin Hood ou o Jack Estripador. O que importa é fomentar a cultura, o turismo. Então aqui também não importa se o crime existiu ou não. Temos uma história incrível que faz parte da nossa mitologia, mas estamos perdendo de trabalhar isso.”

Hernandez revela ainda que é entusiasta da história desde que era adolescente. Seu apego com a lenda foi inclusive um dos motivos pelo qual o músico investiu no espaço “mal-assombrado”. Ele também é um dos organizadores das caminhadas noturnas realizadas no Centro Histórico para reviver os casos misteriosos ocorridos na capital. “Essa história é um patrimônio de todos nós. Para mim, a transcrição não revela muita coisa. Não saber se houve ou não linguiça de carne humana é mais fantástico ainda, pois deixa no ar, torna a história mais angustiante”, completou.

Ele apontou o receio de que Porto Alegre perca a lenda para outra cidade através de adaptações para a televisão ou cinema. Para ele, uma das primeiras medidas seria voltar a usar o nome rua do Arvoredo ou ao menos criar identificações na atual Fernando Machado. “Tem gente que vem do México, da Irlanda, de várias partes do mundo para conhecer. Falta que o poder público consolide isso e torne um patrimônio imaterial. Tem várias nuances da Capital que estão envolvidas na história. Tem a imigração alemã, tem a gastronomia, tem a Santa Casa, tem o império. Olha quanta riqueza. Quanto mais gente falando dela, melhor para todos nós.”

“Tem gente que vem do México, da Irlanda, de várias partes do mundo para conhecer. Falta que o poder público consolide isso e torne um patrimônio imaterial. Tem várias nuances da Capital que estão envolvidas na história. Tem a imigração alemã, tem a gastronomia, tem a Santa Casa, tem o império. Olha quanta riqueza. Quanto mais gente falando dela, melhor para todos nós."

André Hernandez Neto, músico e proprietário de um café com temática de mistério

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895