Sem dividir a casa

Sem dividir a casa

Pesquisa do IBGE aponta que houve crescimento no número de domicílios com apenas um morador

Por
Felipe Samuel

Morar sozinho é uma tendência no Brasil. É o que revela uma pesquisa divulgada em julho pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que aponta que o número de domicílios com apenas um morador passou de 7,5 milhões, em 2012, para 10,7 milhões em 2021, o que representa um crescimento no período de nove anos de 43,7%. Conforme dados da série histórica da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua: Características Gerais dos Moradores, o Rio Grande do Sul também registrou aumento do número de pessoas que moram sozinhas – principalmente de mulheres.


Regina Gonçalves Abreu, de 42 anos, vê aspectos positivos em morar sozinha, como aliberdade de poder decidir as atividade do dia a dia e a independência proporcionada pela vida de solteira. Foto: Mauro Schaefer

Conforme o IBGE, o crescimento dos solitários tem relação com o envelhecimento da população. Em Porto Alegre, de um total de 619 mil domicílios, 168 mil eram ocupados por um único morador – as chamadas unidades domésticas unipessoais. Desses 168 mil unipessoais, 57,1% eram ocupados por mulheres em 2021, o que corresponde a 96 mil domicílios. Segundo a PNAD Contínua, esses números colocam Porto Alegre com a maior proporção de mulheres morando sozinhas em relação aos homens entre as capitais brasileiras. Para o analista Walter Paulo de Sousa Rodrigues, do IBGE, os dados confirmam uma característica do Estado, que historicamente tem a maior proporção de pessoas vivendo sozinhas.

De acordo com Rodrigues, o Censo de 2010 já apontava Porto Alegre como a capital com o maior percentual de pessoas morando sozinhas. “O Censo em princípio vai em todos os domicílios, não podemos comparar o Censo com a PNAD, que é uma pesquisa por amostra, mas esse é um fenômeno anterior à PNAD Contínua já era uma característica do Rio Grande do Sul”, observa, acrescentando que à época o município com maior proporção de pessoas morando sozinhas era Herval, na Região Sul, próximo da fronteira com o Uruguai. “Era um percentual bem grande, maior que o de Porto Alegre”, afirma. Além da Capital, Rodrigues explica que municípios da Região Metropolitana também ocupam as primeiras posições na proporção de pessoas que moram sozinhas.

“Viemos com uma tendência, que talvez agora tenha sido até exacerbada por essa pandemia, de uma mudança na nossa pirâmide etária, tanto do Estado quanto do país. Cada vez mais temos o estreitamento da base, onde estão os mais jovens.” Conforme Rodrigues, essa tendência já vem sendo observada há mais de uma década, com redução inclusive do número absoluto de crianças de zero a 4 anos de idade. E isso é uma tendência do país como um todo. “Ela é maior em regiões e estados que têm uma população mais envelhecida, como no caso do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro”, completa.

Conforme o IBGE, de 2012 até 2021, o percentual de unidades unipessoais em relação ao total de domicílios no Rio Grande do Sul passou de 20,8%, em 2012, para 27,1% em 2021. Segundo o instituto, em 2021, o Rio Grande do Sul tinha um total de 4,3 milhões de domicílios, contra 3,8 milhões em 2012. Nesse período, a proporção de unidades domésticas unipessoais (com apenas um morador) passou de 14,8% para 18,3% do total. Se na Capital a maioria dos domicílios com apenas um morador era ocupado por mulheres, no Estado, esses dados se invertem, com 51,3% das moradias unipessoais ocupadas por homens. Mesmo assim, o RS ainda fica abaixo da média brasileira de 56,6%.

Rodrigues destaca que a população total do Rio Grande do Sul foi estimada em 11,4 milhões em 2021, o que representa um aumento de 4,1% ante 2012, acompanhando uma tendência de envelhecimento da população em todo no país. Em nove anos, o número de pessoas abaixo de 30 anos de idade no país caiu 8,9% (5,4% no conjunto do Brasil). Com isso, pessoas de 30 anos ou mais passaram a representar 60,9% da população do Estado em 2021. Esse percentual era de 55,3% em 2012, no início da série histórica da pesquisa.

“Mesmo naqueles estados que vinham com uma população mais jovem, com uma pirâmide mais alargada na base, a gente também tem esse movimento, talvez não na mesma velocidade, mas a gente tem. Então essa é uma característica em geral da população brasileira, a gente vai, com o tempo, estreitando a base onde estão os mais jovens, alargando o meio e alargando também as últimas faixas da pirâmide etária, onde nós temos as pessoas mais idosas”, compara.

Conforme Rodrigues, os dados da PNAD Contínua revelam que, nas primeiras faixas etárias, o sexo masculino tem maior quantidade de pessoas, principalmente dos recém-nascidos até os mais jovens. “Mas tu vais olhar lá no topo da pirâmide, onde estão as demais idades, vai perceber que tem um número bem maior de mulheres do que de homens, porque a mortalidade masculina é maior. A expectativa de vida feminina é maior. Os homens começam em maior quantidade nas menores idades e depois têm quantidade menor do que as mulheres”, explica.

‘Enquanto a gente tem saúde, fazer atividade é o que dá vigor para as pessoas'


Com disposição juvenil, Sônia afirma que não perde o sono, mas antes de dormir já planeja as tarefas do dia seguinte. E, mesmo com a rotina pesada de trabalho durante a semana, ela encontra tempo para se divertir com as amigas e viajar. Foto: Guilherme Almeida

Se engana quem pensa que viver sem a companhia de outra pessoa é sinônimo de solidão. É o caso de Sônia Lopes Soares, 73 anos, que mora sozinha desde 2003, quando a mãe, Ida, faleceu. Síndica do condomínio que reside, localizado no bairro Farrapos, ela dedica a maior parte do tempo ao trabalho. E a tarefa de tomar conta do prédio – que tem 254 apartamentos – exige fôlego e disciplina. “Meus compromissos são o meu trabalho e pagar as minhas contas, o resto é secundário”, afirma. No inverno, mesmo com as baixas temperaturas, Sônia costuma acordar cedo.

“Esse ano está muito frio e chuvoso. Então levanto às 7h, tomo banho e, em seguida, o café. Arrumo minha casa e vou trabalhar na rua. Vai ser assim enquanto eu tiver saúde”, garante. Ocupar o tempo parece ser a fórmula ideal para evitar cair na tristeza ou solidão. “Não me sinto só, pois tenho muitas atividades, mas tem pessoas que se desesperam. Eu digo para o pessoal achar uma atividade para exercer, fazer alguma coisa. As pessoas sem atividade precisam se envolver com alguma coisa, fazer um trabalho voluntário, passear na orla ou olhar as vitrines das lojas”, ensina.

Com disposição juvenil, Sônia afirma que não perde o sono, mas, antes de dormir, já vai planejando as tarefas do dia seguinte. No início de agosto, ela programava visitar uma feira internacional de construção no Centro de Eventos da Fiergs, na Capital. “Gosto de mudanças, estou sempre vendo alguma coisa. Hoje vou a uma feira de construção para ver as novas tecnologias e verificar o que posso aproveitar daquilo. Visito todo tipo de feira, porque a cabeça sempre tem que evoluir”, recomenda. “Enquanto a gente tem saúde, fazer atividade é o que dá vigor para as pessoas”, completa.

Mesmo com a rotina pesada durante a semana, ela encontra tempo para se divertir com as amigas e viajar. “Gosto muito de festa, sou bastante entrosada com as amizades. Também participo de um grupo de orações”, destaca. Após a perda da mãe, Sônia se deparou com mais um desafio, em 2018, quando foi diagnosticada com câncer de mama. Mesmo com o impacto da notícia, ela encarou a doença com serenidade. “Fiz quimioterapia e radioterapia, mas estava sempre trabalhando”, ressalta. Solteira e sem filhos, ela contou com a ajuda de amigas, que a acompanharam durante as oito sessões de quimioterapia. “Fiquei acamada no dia que fiz a cirurgia, mas no outro dia já estava trabalhando”, afirma.

Mudança brusca na rotina


Ana Carolina Stobbe, de 20 anos, saiu de Passo Fundo, na região do Planalto, onde morava com o pais, para cursar as faculdades de jornalismo e de história em Porto Alegre, onde vive sozinha. Foto: Ricardo Giusti

A mudança para outra cidade pode representar novos desafios de vida. É o que aconteceu com Ana Carolina Stobbe, 20, que deixou Passo Fundo, na região do Planalto, para cursar as faculdades de jornalismo e história em Porto Alegre. Para quem sempre morou com os pais, a troca de cidade significou uma mudança brusca na rotina. “Não era apenas morar sozinha, era morar sozinha em outra cidade. São quatro horas de viagem até Passo Fundo. Me sentia bastante sozinha”, recorda. Com auxílio de uma psicóloga e a companhia inseparável de Kitty, uma gata persa de 10 anos, ela conseguiu superar as dificuldades e amadurecer.

“A minha gatinha ajudou bastante na minha adaptação, mas eu sentia falta de ter gente em casa, de chegar e ter a janta pronta. Senti bastante quando me mudei”, admite. Após um período de adaptação, Ana percebeu o lado positivo de morar sozinha e ter autonomia para decidir o que fazer. “Com o tempo, a gente ganha maturidade para administrar o próprio dinheiro, organizar a rotina e fazer as atividades de casa. É algo que vai mudando a forma de ver o mundo”, reconhece. Mesmo sem ninguém para dividir as tarefas diárias no apartamento localizado no bairro Menino Deus, Ana não se queixa. “Se eu quiser deixar de lavar a louça, eu posso. Esse é um ponto positivo”, afirma.

Ela afirma que o suporte dos pais, Andrea e Julio, foi importante para superar momentos mais difíceis, uma vez que não tem parentes ou conhecidos na cidade. “Quando cheguei a Porto Alegre, não sabia fritar um ovo”, lembra. A rotina de quem cursa duas faculdades e faz estágio exige dedicação redobrada. “Para os colegas que moram em Porto Alegre e vão para a aula é mais tranquilo, mas quem mora sozinho e chega em casa às 22h tem uma carga de trabalho muito maior”, explica. Lidar com as tarefas domésticas também foi uma forma de amadurecimento. “É preciso preparo emocional para dar conta de tudo e se organizar para manter tudo em ordem”.

Durante três dias da semana, ela tem aulas pela manhã e à noite. Além disso, faz estágio em formato híbrido. “Em outros dois dias saio de casa de manhã cedo e só volto à noite”, salienta, destacando que conta com a ajuda dos pais para custear a mensalidade da faculdade. “Pago as contas de luz, Internet, transporte e outras contas da casa”, observa.

‘Ninguém me incomoda e faço o que quero’

Para a servidora pública Regina Gonçalves Abreu, 42, morar sozinha tem aspectos positivos. Ela reside na Capital desde março de 2020, após atuar quatro anos em Palmas, no Tocantins. “Gosto bastante, porque ninguém me incomoda e faço o que quero. Se quero arrumar as coisas, arrumo. Se não quiser, não arrumo. Não tem ninguém para reclamar, tenho liberdade”, afirma. O apartamento onde mora, no bairro Humaitá, muitas vezes é o local escolhido para confraternizações. “Posso receber os amigos em casa para um churrasco, que às vezes dura o dia inteiro”, afirma.

Entre as vantagens de morar sozinha, Regina destaca a independência proporcionada pela vida de solteira. E, nos momentos de folga, sobram opções de lazer. “No fim de semana, saio com os amigos ou faço uma corrida na orla do Guaíba. Se não quero sair, fico em casa e assisto a um filme”, afirma. A ideia de dividir o apartamento com outra companhia seria “apenas para somar, nunca para diminuir”. Por enquanto, ela tem a companhia dos gatos Nino e Lilli, que acolheu das ruas da cidade. Em julho, por conta das viagens a trabalho pelo interior do Estado e Santa Catarina, ela recorreu ao auxílio de uma pessoa para tomar conta dos felinos.

Na ausência de Regina, que cumpria roteiro durante três semanas por Pelotas, Passo Fundo, Esteio e Florianópolis, uma babá tomou conta dos gatos. “Ela vem e cuida dos gatinhos. E também tenho câmeras instaladas em casa para acompanhar a situação deles, mas sempre deixo água, comida e areia para eles se virarem sozinhos”, explica.

Conforme Regina, morar sozinha tem outras vantagens. “Posso chegar em casa a hora que quiser sem incomodar ninguém”, afirma. Natural de Goiânia, ela também aproveita os momentos de folga no trabalho para visitar os pais Adolfo e Irany, que moram em Goiás.

Apesar de garantir que leva uma “vida boa”, Regina também reconhece os aspectos negativos de morar sozinha. “Preciso fazer comida todo dia e deixar pronta a marmita para levar para o trabalho. E também tenho que lavar a roupa. Se não fizer, fica tudo sujo”, observa.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895