Tribunal de Justiça do RS completa 150 anos

Tribunal de Justiça do RS completa 150 anos

Inicialmente chamado de Tribunal da Relação, o Poder Judiciário gaúcho passou por inúmeras mudanças, tanto de nome como de endereço, e até uma unificação, antes de se tornar o atual TJRS

José Carlos Teixeira Giorgis é responsável pelo Memorial do Judiciário, no Palácio da Justiça.

Por
Rodrigo Thiel

“Ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1874, 42º da Independência e do Império do Brasil, aos 3 dias do mês de fevereiro do dito ano, nesta muito leal e valorosa Cidade de Porto Alegre, Capital da Província do Rio Grande do Sul, em a rua Duque de Caxias e casa nº 225 alugada pelo Estado para as sessões e conferências do Tribunal da Relação das províncias de São Pedro do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, criado pelo decreto do Poder Legislativo, achou-se presente o desembargador João Baptista Gonçalves Campos, removido da Relação do Rio de Janeiro para a de Porto Alegre, nomeado presidente da mesma Relação por decreto de 7 do dito mês e ano, comigo bacharel formado em Ciências Jurídicas e Sociais, João Manoel Mendes da Cunha Azevedo, secretário da dita Relação”.

Com estas palavras, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) foi oficialmente fundado. Inicialmente chamado de Tribunal da Relação, o Poder Judiciário gaúcho passou por inúmeras mudanças, tanto de nome como de endereço e até uma unificação, antes de se tornar o atual TJRS. Algumas destas mudanças foram vividas pelo desembargador José Carlos Teixeira Giorgis em seus mais de 50 anos de vida jurídica. Atualmente, ele é o responsável pelo Memorial do Judiciário, no Palácio da Justiça, localizado na Praça da Matriz, um cargo que é ocupado sempre por um desembargador aposentado.

Com uma carreira que começou como professor de Biologia em Bagé, sua terra natal, Giorgis posteriormente se graduou em Direito e chegou a atuar como procurador do Estado antes de assumir como juiz do Tribunal de Alçada do RS, em 1992. Com extinção deste tribunal, foi promovido a desembargador em 1997, posto que ocupou até meados da década de 2000, quando se aposentou da rotina jurídica.

O chamado Tribunal de Alçada havia sido criado ainda na primeira metade do século XX, com o objetivo de atender parte da demanda que estava crescendo no Tribunal de Justiça, com todos seus processos e práticas sendo absorvidas pelo TJRS no final do século. Entretanto, esta não foi a única mudança presenciada pelo desembargador. Em seus primeiros anos de atuação, Giorgis trabalhou nas Câmaras de Família, que ficavam no Palácio da Justiça.

Entretanto, o aumento da demanda no Judiciário fez também com que o palácio projetado na década de 50 e construído na década de 60 torna-se insuficiente para os trabalhos dos desembargadores e servidores, necessitando de uma nova sede, no bairro Praia de Belas. Mesmo depois da troca de sede, o palácio voltou a ser o local de trabalho de Giorgis, mas com um novo objetivo: além de preservar a justiça, ele passou também a cuidar da sua história no Rio Grande do Sul. “O Memorial é o guardião da memória da Justiça no RS. Qualquer processo, por mais simples que seja, ele possui características que mostram como a sociedade funcionava em cada época, pois o documento judicial traduz como é a sociedade em determinado momento. Ele forma uma espécie de imagem da época que a gente vive. A partir do final da década de 90, começou a despertar a importância de termos um centro de memória. Hoje, se dá muita importância para os documentos judiciais”, contou Giorgis, que é um dos desembargadores mais antigos do TJRS.

Primeira mulher na presidência do TJRS

O TJRS ainda tem vivido um momento marcante em sua longa trajetória. Desde 2022, a desembargadora Iris Helena Medeiros Nogueira fez com o tribunal do Rio Grande do Sul tivesse, pela primeira vez na história, uma mulher à frente dos trabalhos. Para ela, este reconhecimento histórico agrega realização profissional para o seu currículo no Judiciário.

“Eu também fui a primeira mulher a assumir a Corregedoria-Geral da Justiça e agora a primeira mulher e negra a assumir a presidência do tribunal. O significado disso é realmente um coroamento de todos os meus anos de dedicação com o Judiciário, minha responsabilidade com a causa da Justiça, em atender da melhor forma e mais célere e robusta os conflitos a fim de restabelecer a paz entre as partes e ao restante da comunidade”, contou. 

Iris Helena entende que a principal marca destes 150 anos é a dedicação dos profissionais com a pacificação social e com o restabelecimento dos direitos. “São 150 anos dos quais nos orgulhamos muito. É uma construção que vem sendo feita por muitas mãos. Neste momento de celebração, estamos recordando nossa trajetória ao lembrarmos e homenagearmos todos aqueles que construíram essa história que hoje tanto nos orgulha.”

Perguntada sobre o legado que ela espera deixar para o TJRS, a desembargadora destacou a reorganização da Justiça gaúcha a partir da digitalização dos processos e, principalmente, as pessoas que fazem parte do tribunal. “Dispomos de 100% dos processos em andamento de forma digital. Isso nos dá uma nova forma de prestar a nossa jurisdição. Uma forma mais célere reflete em uma Justiça mais efetiva. Embora toda a tecnologia, são as pessoas que fazem o judiciário acontecer. Os magistrados, servidores, estagiários e colaboradores são o maior patrimônio do TJRS. É uma administração de pessoas para pessoas.”

Um ano de celebração no Poder Judiciário

A data que marca o sesquicentenário do TJRS é 3 de fevereiro de 2024. Entretanto, desde 3 de fevereiro de 2023, uma comissão do TJRS prepara e executa ações especiais para a celebrar o marco. A presidente da comissão é a desembargadora Márcia Kern, que destacou o objetivo de recordar, tanto nas solenidades como nas atividades de dia a dia, que é ano de celebração.

“Aconteceram muitos eventos, mais do que normalmente acontecem. Tentamos concentrar eventos nacionais e internacionais ligados ao Direito e à cidadania no tribunal, como fóruns, encontros e congressos. Alguns que nunca ocorreram no tribunal foram sediados ao longo destes meses. Tivemos momentos importantes, como o lançamento do livro comemorativo aos 150 anos e também o show de imagens com projeção e apresentação de orquestra na frente do Palácio da Justiça.” Para ela, um dos maiores desafios do comitê dos 150 anos foi lidar com as agendas dos servidores e magistrados envolvidos nas ações e com as limitações do poder público. “Muitas das atividades dependem de licitação, precisam estar dentro do nosso orçamento”, completou.

Os casos emblemáticos do Tribunal de Justiça do RS

Em meio a folhas e mais folhas com mais de 70 anos, em páginas de papel rabiscados a lápis, estão algumas frases em alemão escritas em um diário. Estas cartas foram usadas no processo que julgou Heinz Werner João Schmelling, condenado pelo homicídio da então namorada Maria Luíza, de 17 anos, ocorrido em 1941. O crime, que abalou a sociedade da época, aconteceu na Lagoa dos Barros, entre Santo Antônio da Patrulha e Osório, após uma discussão do casal em um baile na Sociedade Germânia e permanece no imaginário popular, com supostos relatos de avistamentos de uma noiva fantasma à beira da freeway.

| Foto: Guilherme Almeida

Este é um dos diversos casos emblemáticos que recebem atenção no Memorial do Judiciário. Em 2023, uma das ações alusivas ao aniversário de 150 anos do TJRS foi o lançamento de um livro. Nele, estão alguns dos principais casos que foram pauta de trabalho do tribunal desde a sua instalação em fevereiro de 1874 ou que estiveram, em algum momento, sob a guarda do Poder Judiciário do RS. 

| Foto: Guilherme Almeida

Crimes da Rua do Arvoredo

Trata-se de uma das histórias mais famosas da capital gaúcha, originando os boatos de que eram vendidas linguiças feitas com carne humana. Os crimes ocorreram cerca de 10 anos antes da criação do TJRS, mas todo o processo tem o tribunal como guardião deste então. A rua do Arvoredo, atual Fernando Machado, no Centro Histórico, foi palco de uma série de homicídios praticados por José Ramos e Catarina Palse. No local, foram encontrados em abril de 1864 ao menos três corpos esquartejados em um porão e em um poço desativado na casa. Ramos foi condenado à morte e Catarina recebeu uma pena de 13 anos e 4 meses de prisão.
 
Revolta dos Muckers 

No Vale do Sinos, no ano de instalação do tribunal, ocorreu uma revolta com desfechos sangrentos, em 2 de agosto de 1874. Isto porque uma pequena comunidade de imigrantes e descendentes de alemães criaram um movimento messiânico no Morro Ferrabraz, então colônia de São Leopoldo e atual município de Sapiranga. O movimento, também chamado de Muckers, era liderado pelo casal João Maurer e Jacobina Mentz. Eles promoviam cultos e atividade de curandeirismo. Como o movimento não foi aceito pelos outros colonos da região, ocorreram represálias e incidentes, como atentados e assassinatos, com os Muckers sendo apontados como responsáveis. Houve confronto com o Exército e com a Guarda Nacional, que resultou na execução de grande parte dos participantes do movimento. 
 
Noiva da Lagoa dos Barros

Como já resumido, Maria Luiza e Heinz Werner João Schmelling, de 19 anos, eram ex-namorados e se encontraram em um baile na Sociedade Germânia, local onde o casal teve uma briga motivada por ciúmes. A discussão resultou na morte de Maria Luiza, atingida por um tiro no peito. O corpo dela foi encontrado na Lagoa dos Barros, amarrado em tijolos para afundar na água. Ele ainda citou que Maria Luiza teria tentado matá-lo com uma arma. Heinz foi condenado a 10 anos e 6 meses de prisão, com pena aumentada posteriormente para 12 anos. Após o caso, surgiu o mito de que o fantasma de uma mulher pede carona na BR 101.

Conflito da Praça da Matriz

O processo teve como vítima o soldado Valdeci de Abreu Lopes, assassinado durante um confronto entre a Brigada Militar e integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que acampavam na Praça da Matriz, em agosto de 1990. O cumprimento de ordem de retirada dos manifestantes culminou em uma batalha campal, que se estendeu até a Borges de Medeiros. O soldado Valdeci fazia patrulhamento de rotina pelo Centro quando foi atingido por um golpe de foice no pescoço. O processo resultou na prisão de seis réus, mas a autoria da morte não foi esclarecida.

Caso Daudt

Provavelmente um dos casos mais midiáticos do judiciário gaúcho, o processo absolveu o deputado Antônio Dexheimer por falta de provas, depois de ser considerado o suspeito da morte do radialista e também deputado Antônio Daudt. O crime, que até hoje não teve autoria esclarecida, ocorreu em 4 de junho de 1988, em uma área nobre de Porto Alegre. Daudt foi morto com dois disparos de espingardas e abalou a sociedade gaúcha à época, pois envolvia duas figuras públicas. O julgamento também foi um dos primeiros transmitidos ao vivo na televisão.
 
Boate Kiss 

Na madrugada de 27 de janeiro de 2013, um incêndio na casa noturna Kiss, no centro de Santa Maria, resultou na morte de 242 pessoas, além de deixar centenas de outras feridas e com sequelas para toda a vida. Até então, passados mais de 10 anos, o caso segue sem um julgamento definitivo. Isto porque o júri realizado no final de 2021, considerado o maior da história do Judiciário gaúcho com 10 dias de duração, foi anulado. Um novo julgamento foi marcado para acontecer a partir do dia 26 de fevereiro de 2024.

Casas que abrigaram a Justiça no Rio Grande do Sul em um século e meio

Apesar de a Justiça não ser algo, de fato, palpável, mas sim um conceito abstrato, aqueles que a fazem são entes materializados, em carne, osso e – também – concreto. Afinal, além das pessoas que estão no dia a dia do TJRS, quatro imóveis estão marcados na história do tribunal. Dentro deles, e através de milhares de mãos, a Justiça enfim se materializava.

| Foto: Ricardo Giusti

Atualmente, são dois os prédios em Porto Alegre considerados as sedes do TJRS: um na avenida Borges de Medeiros e o Palácio da Justiça, na Praça da Matriz.

| Foto: Mauro Schaefer

Antes disso, o TJRS teve duas casas no coração da capital gaúcha, a Casa da Duque e a Casa da Câmara. Roberto Medeiros Soares, arquiteto do TJRS e um dos responsáveis pelo Memorial do Judiciário, conta que o local da primeira sede já nem existe mais.

Desde o dia de fundação do então Tribunal de Relação de Porto Alegre, o Poder Judiciário começou a atuar na Casa da Duque, à época com sete desembargadores. Localizado na rua Duque de Caxias, com esquina na então rua General Paranhos, o imóvel foi derrubado em 1925 após ser adquirido pela Intendência Municipal e deu lugar ao viaduto Otávio Rocha e à avenida Borges de Medeiros.

Entretanto, quando a obra ocorreu, o TJRS já atuava desde 1983 na Casa da Câmara, na Praça da Matriz, palácio que fora construída como prédio irmão ao Theatro São Pedro. Nela eram realizados os júris da época. Entretanto, em 1949, um incêndio destruiu o prédio, assim como todo o acervo de mais de 70 anos de processos e documentos jurídicos do RS. “Era muito comum, em todo o Brasil, a Casa de Câmara e Cadeia. E ela atendia muito bem o TJRS até 19 de novembro de 1949. Entre os processos, estavam o tratado sobre os descendentes de alemães e italianos que tiveram os bens confiscados durante a Segunda Guerra Mundial. Quando ela terminou, eles pediram de volta os bens e, no dia anterior, um desembargador pediu vistas no processo, que seria decidido no dia 20”, relatou o arquiteto, fazendo referência às versões não oficiais do fato, que apontam uma tentativa de queima de arquivos como causa do incêndio que destruiu o prédio.

Após o incêndio, muitos setores do TJRS foram realocados para outros imóveis, como a sede da Secretaria Estadual da Fazenda. Entretanto, em 1951 foi dado início ao projeto de construção de uma nova sede, no mesmo local, na Praça da Matriz, com a abertura de um concurso público de arquitetura para o projeto do Palácio da Justiça. Os vencedores foram anunciados no ano seguinte no auditório do Correio do Povo, consagrando o projeto modernista de Luís Fernando Corona e Carlos Maximiliano Fayet.

A construção foi iniciada em 1953, mas o prédio foi concluído apenas 15 anos depois, em 1968. Soares conta que esta demora ocorreu em função de falta de recursos. “Na época, o Judiciário não tinha verba própria, o que é diferente de hoje em dia. Muitos dos espaços e até obras de arte não foram executados porque não tinha dinheiro. Depois do restauro, foi colocado o granito na fachada do Palácio, conforme o projeto. Na época, foram colocadas pastilhas cerâmicas”, contou.

O arquiteto destaca ainda que, por se tratar de um projeto modernista, as paredes não possuem função estrutural, podendo receber qualquer configuração para a criação de compartimentos e salas. “Os arquitetos mais novos e recém-formados na época estavam todos bebendo da mesma fonte. E o projeto possui os cinco pontos da arquitetura modernista, que são a planta e a fachada livres, a janela em fita, o terraço no jardim e pilotis, que são as colunas que sustentam o prédio. Então você pode abrir o andar e mexer do jeito que quiser. E isso fez com que ele fosse muito utilizado e até descaracterizado. Aí surgiu a necessidade de ter o tribunal na Borges de Medeiros”, completou.

Roberto, que trabalha no TJRS desde o final da década de 1980, vivenciou esta troca de sede. Ele relembra que o projeto da nova sede tinha como objetivo atender as necessidades de espaço para todos os setores e servidores. “Eu trabalhava aqui no setor de engenharia e fomos um dos primeiros a ir para lá, em 1996. Apesar de estar em uma região com outras obras modernistas, ele não possui valor arquitetônico de fato. Tudo naquele prédio era para atender a uma demanda que estava se projetando, de que o judiciário seria muito exigido e utilizado nos anos seguintes. O que realmente aconteceu.”

O arquiteto cita ainda que, em função da urgência por um novo espaço e a crise financeira do país à época por conta da inflação, o projeto do TJRS na Borges de Medeiros foi uma adaptação do utilizado na construção do Foro Central de Porto Alegre, localizado metros adiante, na avenida Aureliano de Figueiredo Pinto. A atual sede administrativa do TJRS foi inaugurada em 1998 e já passou por ampliação, com a construção de um prédio anexo, e atualmente passa por reformas.

Apesar disso, o Palácio da Justiça não deixou de ser uma casa de honras do tribunal, contando inclusive com uma sala para a presidência. O espaço tem ainda o memorial, com uma concha acústica, uma galeria para casamentos coletivos e um terraço com vista para o Centro Histórico. No início dos anos 2000, o arquiteto Carlos Maximiliano Fayet voltou ao local de uma de suas mais célebres criações, para atuar no trabalho de restauro do palácio.

Foi nesta recuperação que um dos principais símbolos do prédio foi instalado: a estátua de bronze da deusa Themis. A obra possui 9 metros de altura e está fixada em três pinos. De acordo com Soares, os detalhes da deusa e do prédio servem de elementos que definem a Justiça no RS. “A fachada seca, sem abertura, mostra que o TJRS está fechado para qualquer influência dos outros poderes que estão na Praça da Matriz. A deusa também é diferente, por não estar com vendas nos olhos. Isto nos retrata que a Justiça precisa estar com os olhos bem abertos. Ela tem também uma espada, pois é guerreira e precisa ser forte. Fayet e Corona eram à frente do seu tempo”, citou.

Com mais de 35 anos de casa, Roberto também é um dos servidores mais antigos do TJRS. Uma de suas funções no Memorial do Judiciário é acompanhar alunos de faculdades de Arquitetura em visitas pelo palácio. Ele conta como é trabalhar diretamente em um dos prédios mais icônicos do Centro de Porto Alegre. “Eu não procurei, mas fui levado a atuar com isto desde os anos 2000. Começou com uma atividade que tínhamos, Caminhos da Matriz. Eu me sinto realizado em trabalhar em um lugar que eu admiro tanto. Isso aqui é um palácio”, finalizou.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895