Imagine descobrir um pneumotórax, encarar um câncer de mama, romper o ligamento cruzado anterior do joelho e buscar fôlego para atravessar o mundo para competir na Austrália. Eis um breve resumo da história de superação de Liège Gautério. Em 2023, a gaúcha de Santa Maria vai tentar o tricampeonato nos 100 metros rasos nos próximos Jogos Mundiais para Transplantados no outro lado do mundo.
Antes de chegar ao país dos cangurus, porém, há muito o que conhecer desta mulher de 49 anos de idade, que adotou a Capital para viver com a mãe. Basta conversar alguns minutos com a atleta para sentir o entusiasmo não somente pelo esporte e pela causa dos transplantados, mas pela vida. Brota energia do sorriso e da fala da professora de Educação Física, formada também em Biologia e em Fonoaudiologia. No ano que vem, completam-se duas décadas de superação.
“Tudo começou em 2003. Em um belo dia, comecei a sentir muita dor nas costas, quando levantei. Achei que tinha sido muscular, que iria passar. Fui malhar, mas não passava. Fui então para a emergência. Fizeram um raio-x de tórax e me disseram: ‘Tu tens um pneumotórax’. Eu não sabia nem o que era. Explicaram ser uma bolha no pulmão que estourou, que podia colabar (colapsar) e resultar em parada cardíaca. Dali foi uma correria. Fui direto para a cirurgia, mas não me assustei”, relembra, contando a experiência traumática de quando tinha 30 anos de idade.
Cirurgia realizada com sucesso, iniciaram então as investigações. Na tomografia realizada, apareceram várias bolhas e se levantou a hipótese de fibrose pulmonar. Sua pneumologista alertou do caráter progressivo e sem tratamento da doença (até então, pois hoje já existem medicamentos).
Liège dependeria de transplante. Sem sintomas graves como desgaste ou fadiga, seguiu a vida normalmente. Até que, seis anos depois, estourou uma bolha no outro pulmão. Os sintomas pioraram em 2009. Falta de ar para correr, subir lombas ou escadas. “Apertou a coisa e pensei: ‘a conta tá chegando’”. Orientada pela pneumologista, procurou a Santa Casa para criar um vínculo transplantador. No último semestre da faculdade, chegou a trabalhar com cadeira de rodas e concentrador de oxigênio. “Me formei em junho, me arrastando”, completa. Faltava o transplante.
Liège entregando a medalha conquistada no primeiro mundial ao provedor da Santa Casa de Porto Alegre, Alfredo Guilherme Englert | Foto: DIVULGAÇÃO SANTA CASA / CP
Medalhas ao redor do mundo
Uma coincidência de datas marca a trajetória de Liège. No dia 29 de setembro de 2011, foi submetida com sucesso ao transplante realizado pela equipe do médico José Camargo. Três anos depois, tomou conhecimento dos Jogos Mundiais de Transplantados. Não pensou duas vezes: iria para Mar del Plata, na Argentina, para competir.
"Mulher brasileira não tinha nenhuma. Em 20 anos, só tinha meninos. Fui a primeira e tinha que ser gaúcha. Comecei a treinar aqui na Sogipa. Deu a largada e saí voando. Faltando 20 metros não vi ninguém na visão periférica, ganhei né?”, diverte-se, ao relembrar o ouro nos 100m rasos. Na prova dos 200m ficou com a prata. Em 2017, em Málaga, na Espanha, ganhou o bi nos 100m, bronze nos 200m e ainda faturou uma prata no salto em distância. Em 2019, na preparação da edição de Newcastle, na Inglaterra, rompeu o ligamento cruzado do joelho em um treino. Sem tempo para operar, a fisioterapia foi suficiente para encarar mais um desafio. Disputou a modalidade do boliche e levou o bronze no salto, novamente. A pandemia em 2019 adiou a competição que retorna em 2023, na Austrália. E, para tentar o tri, precisa de ajuda. São cerca de R$ 30 mil entre passagem, estada e alimentação. “Agora, ingresso na categoria dos 50 anos. Teoricamente as minhas chances aumentam. Saio em desvantagem porque tenho um pulmão só”, explica, sem lamentar. O outro pulmão parou de funcionar.
Liège está com um projeto de arrecadação de fundos no site Vakinha Online (https://www.vakinha.com.br/vaquinha/transplantada-de-pulmao-busca-o-tricampeonato-mundial-em-atletismo) | Foto: RICARDO GIUSTI
‘Me tornei doadora por ouvir tua história’
No mesmo 29 de setembro, mas de 2015, a atleta enfrentou outra barra. Diagnosticada com câncer de mama, fez a remoção e a reconstrução de uma das mamas. A data idêntica à do transplante de pulmão é comemorada sempre. “É meu renascimento, dia 29 de setembro tem bolinho e tudo”, afirma.
Entre um treino e outro na Sogipa, Liège ergue a bandeira da causa dos transplantados. De acordo com dados da Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul, a realização de transplantes teve uma queda de 39% desde 2019 no Estado (689 transplantes em 2019, 508 em 2020, 420 em 2021 e 173 até maio de 2022). Estima-se, ainda, que em torno de 50 mil pessoas aguardam por um órgão no Brasil. Há alguns anos, ela criou o projeto Se Mexe TX, como uma iniciativa de motivar transplantados de todo o país a terem o exercício físico como parte de suas rotinas. “Está cientificamente comprovado que os esportes contribuem demais na qualidade de vida do transplantado, melhorando questões como sono, bem-estar, minimizando os efeitos dos imunossupressores e, ainda, reduzindo o número de novas internações hospitalares”, informa.
Enquanto organiza uma vaquinha para arrecadar recursos para disputar o Mundial da Austrália, a atleta participará de outra prova. Ela será a madrinha da primeira edição da Corrida dos Transplantados.
O evento, marcado para o dia 11 de setembro, paralelamente à Corrida da Sogipa, reunirá pessoas com mais de 15 anos que já se submeteram a algum tipo de transplante de órgãos ou tecidos. “Sempre quis mostrar para sociedade que existe vida para transplantado, que não é só ficar em casa ou no hospital. A gente pode viver bem até para impactar as pessoas. Eu já ouvi uma vez: ‘Me tornei doadora por tua história’”. História, aliás, que está longe do fim para Liège.
Três manhãs por semana, faça chuva ou sol, no frio ou no calor, Liège vai à pista de atletismo da Sogipa, em Porto Alegre, treinar para o seu próximo desafio. Ela também dá aulas em seu próprio centro de treinamento para pessoas transplantadas ou não | Foto: RICARDO GIUSTI