Varejistas enfrentam as turbulências

Varejistas enfrentam as turbulências

Desafios enfrentados pelos pequenos varejistas durante a turbulência no setor de varejo

Por
Simone Schmidt

A atividade do varejo passa por turbulências desde que este ano começou. Grandes casas do ramo fechando lojas em shoppings e entrando em recuperação judicial passaram a fazer parte do cenário. Enquanto isso o consumidor se pergunta: se as gigantes que vendem fortunas por meio de suas lojas físicas e plataformas de e-commerce enfrentam dificuldades, como estariam hoje os pequenos comércios e os microempresários do varejo? Lutando. 

Dados recentes do Sebrae mostram que mais da metade das empresas de pequeno porte comprometem mensalmente mais de 30% do seu custo com pagamento de dívidas. Um dado preocupante se pensarmos que esses micros e pequenos negócios geram a maioria dos empregos formais do país, ou seja, pesam na balança os débitos e os salários das equipes. Levantamento do Sebrae com base em dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) mostra que de cada dez novos empregos, sete são criados por empresas de pequeno porte. Por serem maioria, portanto, são os pequenos varejistas que influenciam os números positivos divulgados pelo IBGE na última Pesquisa Mensal do Comércio, ainda que as dificuldades persistam. Em março, último dado disponível, o volume de vendas subiu 0,8% frente ao mês anterior e 3,2% na comparação com março de 2022. No Rio Grande do Sul, o segmento representa quase 30% dos negócios, conforme dados da Junta Comercial. Há 1,7 milhão de empresas ativas, sendo 500,7 mil do ramo do comércio. O segmento também responde por 17% do Produto Interno Bruto gaúcho (PIB), ou seja, do valor de R$ 600 bilhões no Estado computados em 2022, aproximadamente R$ 100 bilhões saíram do comércio, segundo cálculo da Federação das Câmaras de Dirigentes Lojistas (FCDL-RS).

Encontrar meios de sobreviver é a arte que o comerciante vem aperfeiçoando diariamente e, para isso, se vale de outros recursos, além das modernidades da tecnologia. Vender produtos especificamente por meio virtual não é uma realidade nas pequenas lojas de bairro. O custo de uma plataforma de e-commerce pode ser algo impensável. Sem contar a logística necessária para a entrega de encomendas. Longe de pontos comerciais instalados em regiões consagradas da Capital, como Centro, Assis Brasil ou Azenha, a venda nos bairros menos tradicionais ganha outra dimensão, além de ser muito diferente daquela percebida no mundo da Internet, já que o lojista atua muito mais na sua comunidade. Não deixa de usar a tecnologia, manda fotos de produtos por WhatsApp para moradores das redondezas, troca mensagens para entender o que o cliente procura, mas a finalização da venda acontece diante do balcão e, de algum modo, empresas e comunidade se retroalimentam. 

Em uma casa de papelaria e presentes, por exemplo, a funcionária do restaurante ao lado se encanta por uma mochila e combina o pagamento de modo informal. A confiança entra no lugar do cartão de crédito e a cliente leva seu produto para casa pagando uma parte como entrada e se compromete a quitar o restante quando receber o próximo salário. O compromisso não virá especificado em fatura, mas fica anotado em um caderno, ferramenta antiga, mas ainda muito utilizada e considerada prática satisfatória para vendedores e compradores.

Para Vitor Augusto Koch, presidente da FCDL-RS, a reestruturação do mercado varejista de médio e pequeno porte "passa obrigatoriamente pela compreensão detalhada do consumo e dos consumidores dentro do eixo e do raio de atuação". O treinamento e a personalização do atendimento ao cliente, assim como a utilização mais profissional de redes sociais como WhatsApp e Instagram, alerta o dirigente, ainda são carências acentuadas nos estabelecimentos. "São técnicas que necessitam ser aprimoradas", enfatiza. Sobre as varejistas gigantes, Koch assinala que, com a globalização e na busca de novos mercados, "muitas empresas optaram por um crescimento acelerado e por vezes até desordenado, aumentando custos de forma acentuada e acumulando endividamento com instituições financeiras". Além disso, a pequena e a média empresa, por falta de capacidade de investimento em tecnologias e plataformas de e-commerce, tiveram agravada a condição de competição.

Enquanto as varejistas "megas" vão se reestruturando para se manter de pé, os pequenos vão renovando esforços e ampliando a presença. No Rio Grande do Sul, entre empresas do comércio de pequeno porte ou micro, a Junta Comercial registrou aumento nos registros na comparação entre os períodos de janeiro a abril deste ano com igual intervalo de 2022. Foram 2.974 estabelecimentos de comércio neste primeiro quadrimestre, mais que os 2.897 novos negócios apurados no mesmo período de 2022. Em uma avaliação mais macro, de território e de porte, as grandes varejistas do país mostram dificuldades que vêm se agravando de janeiro para cá. Já foram fechadas as portas de mais de 110 pontos comerciais e outros 100 devem encerrar as operações nos próximos meses, conforme noticiou recentemente o R7. O alto número de lojas fechadas coincide com o endividamento dessas empresas e com o crescimento no número de pedidos de falência e de recuperação judicial. Segundo levantamento da Serasa Experian, só nos primeiros três meses de 2023, os pedidos de falência subiram 44% ante igual período do ano passado. No caso das recuperações judiciais, na mesma comparação, a alta chegou a 37,6%. Especialistas explicam que o fechamento de lojas faz parte de estratégia comum no varejo, que precisa reavaliar constantemente o desempenho dos pontos de venda, prática que acabou se consolidando depois da pandemia. Consumidores que não tinham o hábito da compra por meios virtuais adotaram a novidade, fator que também contribuiu para uma reorganização de espaços físicos de lojas pelo Brasil. Os pequenos comércios, por outro lado, tanto os novos quanto os já estabelecidos, vão buscando capacitação e aprendendo aos poucos a usar a tecnologia a seu favor, com o WhatsApp sempre on-line e fotos de produtos nas redes. Entretanto, é na convivência com a vizinhança e no bate-papo em frente ao balcão que a venda se consolida. O elemento humano ainda é o principal motor. No bairro Chácara das Pedras, na Capital, Nadia Michellon tem uma trajetória de décadas como lojista e conhece bem esse relacionamento com o cliente.

Das cópias ao bazar

O espaço onde a loja de Nadia começou a funcionar na década de 90 é um imóvel que ela ganhou ao se formar em administração, um presente dos pais, também comerciantes e donos de um mercadinho que se localizava no mesmo quarteirão. Nadia lembra que a principal atividade de seu estabelecimento, o Bazar Snoopy, na época, era a fotocópia. Escritórios ao redor eram clientes diários em um tempo no qual a Internet praticamente não existia. Era preciso documentar tudo em papel e fazer cópia e, ao menos nos primeiros dez anos, os pontos fortes da casa eram, além do chamado "xerox", os itens de papelaria e material de escritório.

Com o tempo e com a frequência também dos moradores da região à loja, e não só os funcionários das empresas próximas, as opções de produtos foram se ampliando. As coloridas canetinhas, cadernos, pastas, cartolinas, blocos de recibos e formulários ganharam companhia nas prateleiras. Itens de decoração para a casa, presentes, nécessaires e mochilas, entre outros produtos, passaram a fazer parte do mix. Hoje, em dia de festinha de aniversário, a vizinhança corre na loja da Nadia. Os cartões, é claro, são aceitos, mas clientes antigos têm a possibilidade do “caderno”, um sistema ainda muito usado. A empresária calcula que parcela de 20% da clientela se utilize dessa alternativa. O cliente gosta de uma bolsa, por exemplo, mas o limite do cartão não é suficiente. Paga então um valor de “entrada” e o restante fica anotado em uma agenda para o mês seguinte. A modalidade é simples e informal, mas funciona.

Inadimplência, diz Nadia, praticamente não há. Em um eventual atraso, a dificuldade momentânea é justificada e resolvida alguns dias depois. “Sou muito apegada a esse espaço e tenho até dificuldade para viajar, mas tenho uma funcionária ótima que sei que vai tomar conta da loja do mesmo jeito que eu”, assinala. A funcionária, Iara Cunha Ferreira, também atua há décadas no bazar. E quem frequenta o estabelecimento já está habituado a ver Nádia e Iara juntas na correria para atender todo mundo. A loja, que no passado fazia apenas cópias "xerox", agora tem uma impressora à disposição para os documentos que o cliente precisar emitir, o que gera muita procura. Boletos de luz, telefone e Internet para pagar na lotérica, por exemplo, são alguns dos pedidos de quem não tem computador em casa e não usa aplicativo de banco. "Gosto muito do que faço. Aqui a gente vive", resume a lojista.

De loja a galeria comercial

O ramo de vestuário é a especialidade de Alodia Persch Royer. A loja localizado na avenida Saturnino de Brito, bairro Vila Jardim, está registrado no comprovante de situação cadastral como “micro”, mas é grande a paixão da lojista pela atividade que ela iniciou em 1993 e, neste momento, a empresa vive um período de celebração do aniversário de 30 anos. "Tenho de tudo um pouco, masculino, feminino, bebê, infantil, infantojuvenil, cama, mesa e banho", diz a empresária, saboreando cada palavra e mostrando um entusiasmo sem fim. Aos 70 anos, Alodia lembra que iniciou a loja com quatro sacolas de roupas e alguns brinquedinhos. 

O prédio era um espaço simples e abrir a pesada cortina de ferro era uma tarefa difícil que precisava da ajuda do marido, hoje falecido, vítima de um câncer. O pequeno estabelecimento ficou para trás e ela construiu uma galeria comercial onde funciona a própria loja, Recanto da Economia, e outros negócios. O nome do empreendimento, San Remo, é uma homenagem ao companheiro Remo Royer que não só ajudava a abrir a porta, mas era parceiro em todos os momentos e lhe deu dois filhos: uma médica e um administrador. E é também da família que chega mais ajuda para a loja, já que a nora sempre tem dicas para as redes sociais.

Décadas após ter deixado o emprego de carteira assinada no RH de uma empresa no Vale do Sinos quando ainda era solteira, Alodia se casou e trabalhava com o marido, empresário do ramo de carnes. Para que o sonho de vender moda e confecção se realizasse, foi preciso muito empenho. Ela lembra que administrar um comércio é pura persistência. "Há dias ruins com poucas vendas e dias com vendas fantásticas", compara, lembrando que uma das melhores partes dessa trajetória é a relação com os consumidores, geralmente moradores das redondezas. Calça-virada, pipoca e chá são alguns dos mimos que os clientes levam quando chegam para fazer uma compra ou uma visitinha. O funcionário do banco também aparece para um cafezinho e para falar sobre investimentos. "O pessoal chega aqui, me dá um abraço, conversa. Comemorar a vida é a coisa mais preciosa que temos", comenta Alodia, que também inclui no bate-papo diário os mais de 100 fornecedores. "E nos damos muito bem", assinala. A empresária lembra que o mais importante é ser criativa, "não copiar os outros" e aproveitar bem as redes sociais. Para encontrar coragem e enfrentar a saudade do marido, o trabalho e o compromisso com a loja são fundamentais: "tenho muita fé e agradeço por tudo que conquistei. Deus é muito bom".

 

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895