Brasil de Pelotas: maior tragédia do futebol gaúcho completa 15 anos

Brasil de Pelotas: maior tragédia do futebol gaúcho completa 15 anos

Acidente de ônibus envolvendo a delegação do Xavante deixou três mortos e 21 feridos

Angélica Silveira

A homenagem aos três mortos no acidente de 15 de janeiro permanece exposta no estádio

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Faltando poucos dias para o início do campeonato estadual de 2009, o time do Brasil de Pelotas realizou um amistoso na cidade de Vale do Sol, um jogo treino contra a equipe do Santa Cruz. No retorno, no final daquela noite de quinta-feira, o ônibus tombou, antes de descer uma ribanceira, na RS 471, mais precisamente na curva que dá acesso a BR 392, em Canguçu, há menos de 100 quilômetros de casa.

O ônibus levava 31 pessoas. No acidente, 18 atletas ficaram feridos. Três deles nunca mais voltaram a jogar futebol. Morreram o preparador de goleiros Giovani Guimarães, o zagueiro Régis Gouveia e o até hoje inesquecível para o torcedor xavante, o atacante uruguaio Cláudio Milar.

Os feridos, alguns com mais gravidade foram encaminhados, primeiramente, ao Pronto Socorro de Pelotas. Alguns tiveram que encerrar a carreira por causa do acidente. A cidade acordou naquela sexta-feira triste com a tragédia que atingia um dos clubes mais populares do Estado. Os torcedores se uniram na missão de apoiar o xavante que ficou sem time em condições de jogo e principalmente emocionalmente destruído.

A difícil decisão de disputar ou não o Gauchão

Naquele 16 de janeiro, o dia estava bonito, mas era diferente, o estádio Bento Freitas acostumado a alegria das partidas de futebol, estava sendo preparado para o velório dos três mortos no acidente. Os torcedores lotavam o local para se despedir dos ídolos. Enquanto isto, o presidente do clube na época, Helder Lopes tinha que decidir se o clube disputaria o Campeonato Gaúcho daquele ano ou teria que arcar com o que previa o regulamento, que era o rebaixamento automático para a série C.

“Tinha muitos custos, alguns atletas precisavam de cirurgia. Por algum tempo os profissionais de futebol tiveram que fazer tratamento para recuperação. O técnico na época, Armando Dessessards também ficou com problemas de saúde e foi transferido para Porto Alegre onde moravam a família”, enumera. Além disso Lopes lembra que o clube teve outros custos como translado do corpo de Milar para o Chuy uruguaio ( os outros dois foram enterrados no cemitério São Francisco de Paula, em Pelotas, após um cortejo fúnebre que saiu do estádio acompanhado por torcedores).

Ele conta que a primeira partida do Brasil estava marcada para o domingo seguinte. “O presidente da federação gaúcha na época deu uma entrevista dizendo que o Brasil não disputaria. Passada a comoção, fomos a uma reunião em Porto Alegre, onde nos foi colocado que teríamos que chamar uma reunião do Conselho Arbitral e teríamos que ter unanimidade para não jogar e não cair para a Terceirona. Ele nos avisou que não tínhamos”, relata.

Helder confirma que a Federação não garantiu que se o Brasil não jogasse não cairia. “Eu representava um dos clubes mais importantes do Estado e não tinha nenhum papel que me garantisse que caso decidisse não jogar não seria penalizado. Por um outro lado tínhamos três vítimas fatais e mais de 25 feridos que precisavam de cuidados. Tudo é dinheiro”, lamenta.

O ex-dirigente conta que o clube teve que indenizar a família dos mortos, arcar com despesas de hospitais, médicos, tratamento, hospedagem, alimentação de familiares que não eram de Pelotas. “Também tínhamos contratos em vigor com funcionários e atletas e senão jogássemos o dinheiro não entraria para quitar essas contas”, justifica.

Ele disse que lamenta até hoje pelas perdas, mas que tinha contratos a cumprir, por isto foi necessário tratar o clube como se fosse uma empresa. “Tínhamos contratos que não iriam desaparece com o acidente. Nos obrigamos a nos manter na competição, mesmo sabendo do risco, pois o Brasil tinha que seguir andando. Inviabilizamos a competição, mas não o clube”, observa.

Naquele campeonato o Brasil recebeu ajuda da dupla Grenal para remontar o time e um prazo maior para voltar a campo. O treinador Cláudio Duarte trabalhou no Bento Freitas de graça. Abalado com tudo que ocorreu, o time venceu apenas uma partida e foi rebaixado para divisão de acesso antes mesmo da última rodada. “Lamentamos pelas perdas, pelos feridos, pelos psicologicamente afetados e tratamos tudo da forma mais humana possível. Caímos para a série B, pois não tivemos tempo hábil para buscar atletas, condição de dar uma preparação física adequada”, observa.

Naquele campeonato o Brasil teve a estreia adiada por quase 20 dias, mas jogou a cada três dias. Além do abalo psicológico, o time não teve tempo para a técnica muito menos para a parte tática. “Por um outro lado não inviabilizamos o clube, pois cumprimos com todos os compromissos e pagamos os salários”, lembra.

Helder lembra que foi presidente durante 3 anos e seis meses e a viagem que ocorreu o acidente foi a única que não esteve. “Até hoje não sei a causa de não estar naquele ônibus. É algo inexplicável. Posso não ter sido um bom presidente, mas fui muito atuante”, garante.

Atualmente, ele é conselheiro nato do clube, mas não possui nenhum cargo. Em algumas ocasiões Lopes participa das assembleias do Conselho, além de estar presente nos jogos. “Quando penso no acidente é um sentimento de tristeza, pois não perdi só três profissionais, perdi três amigos. Eu estava sempre junto, entrava em vestiário, convivia. Por um outro lado, tenho consciência tranquila que fizemos o melhor para minimizar a dor das famílias, fizemos o nosso máximo”, garante.

Homenagens aos que perderam a vida

Quem chega no Bento Freitas, sobe a rampa, sobe a rampa, dobra a direita para o Salão de Honra encontra uma imagem dos três, eternizada em uma montagem de pequenas fotografias de torcedores. A homenagem foi feita alguns meses após o ocorrido. É possível também encontrar uma placa com o nome do ídolo Cláudio Milar na frente à entrada da Central dos Sócios, na calçada da paixão.

O ídolo também virou nome de rua em um condomínio em Pelotas e do cachorro de um torcedor. No caso, o golden retriever do administrador de empresas Otávio Brião. Ele tinha 25 anos na época do acidente e sempre foi envolvido com o clube, sendo conselheiro por oito anos e sócio. “Quando o Milar faleceu em 2009, eu fiquei muito chocado, fui no velório coletivo e no cortejo até o cemitério. Isto me marcou”, relata.

Ele conta que quando foi ao Uruguai visitou o túmulo do ídolo, onde tinha bandeiras do time. Quando esteve em um vilarejo próximo ao Forte Santa Tereza no Uruguai, Brião relata que estava com camisa do Brasil e um açougueiro se emocionou, pois o filho tinha jogado com o Milar no Nacional do Uruguai. “Dei um avental do xavante para ele. Sempre fui identificado com o clube e com o Milar. Então, quando meu cachorro nasceu em 12 de dezembro de 2012, resolvi colocar no pedigree dele o nome”, diz.

O Milar canino, tem atualmente 12 anos e é recepcionista do bar de Brião. “Quando falo que é Milar os clientes dizem que o dono deve ser muito xavante. É uma satisfação lembrar do ídolo que fez tanto pelo Brasil e que partiu cedo”, observa.

O administrador também tem na parede de casa uma obra do artista Samuel Mancini Choer. A pintura mostra Milar de costas de frente para a torcida, antes de marcar o centésimo gol com a camisa do Xavante. “Ele fica exatamente nesta posição, inclusive com o cotovelo, no momento de bater a falta”, observa. É uma obra prima que representa bastante. Para esta segunda-feira está prevista uma publicação especial sobre os 15 anos do acidente, nas redes sociais do clube.

O jogador que virou ídolo

Para o atual presidente do xavante, Gonzalo Russomano, o acidente mudou a maneira como os torcedores do clube passaram a ver seus ídolos. “Todos os anos fala-se nos três, a data é lembrada de forma especial. Foi um verdadeiro divisor de água”, opina. Ele acredita que se passaram 15 anos e o clube não teve outro jogador tão identificado como o Milar. “Ele se identificou tanto que virou uma marca xavante. Nem nos acessos tivemos ídolos, mas sim destaques. O último é o Rogério Zimemermann”, observa.

Como o Brasil se reergueu após o acidente

Repórter da Tv Xavante, Fernando Monassa trabalhava como radialista em uma rádio da cidade no dia do acidente. “Como estava de férias acabei realizando a cobertura da tragédia para emissoras da capital no dia”, lembra. Ele conta que naquela noite recebeu um telefonema de um ex-presidente, perguntando se era verdade do acidente. Logo em seguida entrou em contato com o médico do clube, André Guerreiro, que avisou que ia até o Pronto Socorro e que havia mortos.

“Quando cheguei vi as macas esperando os feridos. Para mim o Millar é um dos maiores ídolos da história do clube”, opina. O atacante fez o gol 100 pelo clube quase um ano antes, em 23 de janeiro de 2008. “O Millar estava no ápice da carreira no clube. Quando cheguei no Pronto Socorro ouvi a mulher dele dizer para o empresário que a estavam enrolando e que o Cláudio estava morto, senão já tinha chegado”, comenta.

Ele conta que o desespero tomou conta de familiares dos três. “Quando chegou a última ambulância, com o atleta que teve que encerrar a carreira aos 24 anos, as famílias tiveram certeza do que tinha ocorrido e o desespero realmente tomou conta”, lembra. Monassa afirma que o dia do velório foi o mais triste da história do estádio xavante. “Tínhamos toda a estrutura para jogos, com torcida, cordas, cones, mas invés de jogadores fardados três caixões entraram em campo”, lembra.

Monassa era amigo dos três que perderam a vida naquele acidente. “O sonho do Milar era encerrar a carreira e ser presidente do clube”, relata. Ele conta que teve contato com os três nas vésperas do acidente. O zagueiro Régis avesso a entrevistas conversou com o repórter. Com Giovani Guimarães, Monassa conversou na porta do estádio, quando estava indo embora e viu o repórter com o cd da escola de samba General Telles autografado, o preparador de goleiros pegou o objeto.

“Eu disse que não podia dar para ele o meu, mas que pegava outro e daria para ele quando voltasse da viagem. O Milar participou de um jogo com um selecionado do Uruguai, que o pai dele estava como treinador e me disse que agora estava realizado no clube do coração com o pai treinando o selecionado”, recorda.

Ele lembra que o atacante uruguaio era um dos primeiros jogadores a chegar para os treinos, então tinha o hábito de ficar na frente do estádio conversando com a torcida. “Não tinha quem não gostasse dele. Terminava o treino ficava sentado com o filho no campo. Hoje a última informação que tenho é que a família dele mora em Punta Del Este, no Uruguai”, conta.

Monassa confirma que passou a noite do acidente no Pronto Socorro e que só voltou para casa por volta das 8h do dia seguinte. “Ia viajar com meu irmão e transferimos para outro dia. Tínhamos um outro problema que era dar a notícia para o meu pai, que na época estava em uma cama com 84 anos e era um apaixonado pelo Milar. Vi ele chorar pela primeira vez na vida. Já no meu caso, me dei conta realmente do que tinha ocorrido quando assisti a notícia na televisão”, comenta.

O repórter conta que naquele ano mesmo caindo para a segunda divisão no gauchão, o Brasil ficou a um jogo do acesso a série B do Brasileiro e em diante foi retomando, até quando de retornou a elite do campeonato gaúcho, onde permanece até hoje. Neste período, o time foi nos anos de 2014 e 2015 campeão do interior e em 2018 vice campeão gaúcho. Além disso disputou seis campeonatos brasileiros da série B e várias vezes a Copa do Brasil. “Também tivemos neste meio tempo a reconstrução do Estádio. A torcida apaixonada nunca deixou de apoiar nestes 15 anos, nem no pior momento da história”, relata. Inclusive há vários núcleos de torcedores com organizadas em vários locais do país.

Quinze anos de luta

Um jogador que teve que se aposentar em função do acidente está na justiça contra a empresa que realizava o transporte do time naquela noite, assim como a viúva do zagueiro Régis, Cristiane Rockembach Ferreira. Ela conta que até hoje, assim como os filhos não recebeu todo o valor que tinha direito pela Justiça.

Cristiane tinha 30 anos quando perdeu o marido no acidente. Os dois ficaram juntos por 15 anos e tiveram dois filhos, Tiago, que tinha 9 anos na época do acidente e Ester, que em 2009 tinha 6 anos. “Os 15 que passaram foram a base de luta, pois o Régis viajava muito e era quem sustentava a família. Ficamos sem chão. Ele tinha falado comigo poucos minutos antes de falecer. Estava dormindo quando minha irmã ligou e mandou eu ligar o rádio. Como não sabia o que fazer pedi ajuda para a polícia que me levaram ao Pronto Socorro’, relata.

Cristiane conta que trabalhou durante estes anos como faxineira e cuidadora de idosos, mas com problemas de saúde teve que parar de trabalhar. “O salário do Régis que era quase R$ 4 mil, se resumiu a em torno de R$ 700 de pensão. Minha cunhada me ajudou a comprar brinquedos infantis, como piscina de bolinha, por exemplo, e os alugo para complementar a renda. Refiz minha vida, casei novamente, mas sempre tenho a lembrança daquela época”, diz.

Ela conta que faz 15 anos que não assiste televisão, por causa das notícias daquela época. “Mesmo com tudo isso, ele me deixou meus maiores bens que são meus dois filhos, que já frutos que são meus netos”, observa. Ela conta que os filhos tem várias lembranças do sorriso do pai. “Eles lembram de tudo que ele fazia, os momentos legais da primeira infância que passaram juntos”, relata.

Passaram 15 anos, mas não a saudade

A irmã do então preparador de goleiros do time Giovani Guimarães, Márcia Rejane Vieira Guimarães conta que a família é grande com pai, mãe e cinco irmãos e todos são torcedores do Brasil. A filha dele, Helena tinha dois anos e seis meses quando perdeu o pai no trágico acidente. “Nesses últimos 15 anos a saudade é companheira de todos, o Vani, assim chamado em família, sempre foi uma pessoa de fibra, um cara batalhador que corria atrás de seus sonhos”, conta.

Guimarães teve uma vida muito ativa, atuou profissionalmente em vários clubes, assim como em escolas da rede pública de Pelotas. “As lembranças da família e também dos amigos são as melhores possíveis. Do futebol profissional até as ligas amadoras, quem conviveu com ele, só tem elogios a fazer. Nossa família busca estar sempre presente na vida da Helena e da Zilmara, mãe dela”, relata.

Márcia destaca, que está sendo repassado para Helena todas as histórias e características do pai. “Temos o compromisso de ajudá-la a construir sua identidade tendo as referências do pai dela em sua vida. Ela sabe o quanto ele era cuidadoso, carinhoso e apaixonado por ela e as memórias dele estarão sempre muito vivas e preservadas por todos nós”, garante.

Nesta época do ano, a família opta por se afastar da cidade e no janeiro de 2024 não é diferente. A menina, que atualmente tem 17 anos, por iniciativa própria pediu para ir ao estádio Bento Freitas e passou a acompanhar a tia em todos os jogos. “Ela construiu uma identidade muito forte com o clube, se sente acolhida pela torcida e gosta muito quando o pai é homenageado. Para os familiares, o mês de janeiro também traz lembranças fortes e tristes, então sair para descansar fora da cidade, em contato com a natureza, ajuda a amenizar, pois nosso foco é seguir a vida com os melhores sentimentos que ele nos deixou”, conclui.


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