"Guerreira de dar inveja", a história da bicampeã mundial de atletismo para transplantados

"Guerreira de dar inveja", a história da bicampeã mundial de atletismo para transplantados

Transplantada de pulmão, Liège Gautério domina provas dos 100m rasos

Rafael Peruzzo

Liège Gautério é a atual bicampeã mundial dos 100m rasos no atletismo para transplantados

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A data é 8 de abril de 2003. Liège Gautério, 30 anos, acorda, respira profundamente e sente uma leve dor nas costas. Exatos oito anos depois, coincidentemente no dia 8 de abril de 2011, ela entra na fila de espera para realizar um transplante de pulmão na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre.

“É uma guerreira de dar inveja.” A frase é de José de Jesus Peixoto Camargo, o doutor Camargo, médico especialista em cirurgia torácica, responsável pelo primeiro transplante de pulmão da América Latina, referência na medicina e espécie de “anjo da guarda” de Liège. Foi ele que no dia 29 de setembro de 2011 realizou o transplante do pulmão esquerdo da atual bicampeã mundial dos 100m rasos para transplantados.

Mas essa história jamais poderá ser resumida em algumas linhas. Ao levantar da cama naquele longínquo 8 de abril de 2003, Liège pensou estar sentindo uma simples or muscular. Esportista de carteirinha, seguiu para a academia. “Cheguei lá e a dor não passava. Subi na bicicleta ergométrica e piorou. Eu pensei: ‘tem alguma coisa errada’. Fui para o hospital da PUC e me pediram um raio-X do tórax”, conta Liège. O resultado apontou um pneumotórax - entrada de ar na pleura. Liège passou por uma drenagem, um procedimento até certo ponto comum, mas os exames mostravam bolhas no pulmão que exigiram maior investigação.

“Chegou-se a conclusão de que eu tinha fibrose pulmonar por hipersensibilidade (doença crônica e progressiva). Não se sabe qual foi o agente causador dessa doença, mas a pneumologista na época me disse que era uma doença progressiva e não havia tratamento. A gente não tinha ideia de como o problema iria evoluir, mas, que quando evoluísse, eu precisaria de transplante”, relata. Liège conta que seguiu sua vida normalmente. Não abandonou as aulas de ballet clássico nem a musculação. Em 2006, um novo pneumotórax a levou de volta para a sala de cirurgia. E três anos depois, em 2009, a evolução da fibrose pulmonar começou a apresentar sintomas mais severos.

“Eu sentia falta de ar para correr, subir uma lomba, foi aí que a ficha caiu.” A saída foi procurar a conceituada equipe do doutor Camargo. “Eu já conhecia o doutor Camargo, nós fizemos uma avaliação e em 2011 eu entrei na fila de espera pelo órgão”, comenta Liège. O mais impressionante é que em meio a todas essas adversidades, ela se formou em duas faculdades (Fonoaudiologia e Biologia). E mesmo tendo consciência da doença que a debilitava, encarou o sonho de cursar Educação Física. “A pneumologista me disse que eu não conseguiria me formar. Minha doença foi evoluindo à medida que o curso foi avançando. No último semestre da faculdade, eu ia para a aula de cadeira de rodas. Eu já estava bem debilitada, carregando um aparelho portátil de oxigênio nas 24 horas do dia. Eu não conseguia caminhar, não conseguia fazer nada, mas sempre pensei positivo.”

A “guerreira de dar inveja” realizou o sonho de se tornar educadora física em julho de 2011. E aquele ano reservava a ela o momento mais marcante nos seus 44 anos de vida. “Quando você está na fila de espera por um órgão, você fica esperando uma ligação. Sempre que o telefone tocava, eu ficava ansiosa. No dia 28 de setembro de 2011, o telefone tocou e meu pai atendeu. Era uma ligação da Santa Casa para mim. A médica disse que tinha um órgão e provavelmente seria meu, ainda tinha que ver a questão da compatibilidade. A partir daquela ligação, parece que eu não sentia mais falta de ar.” Liège encaminhou-se para a Santa Casa. O órgão, captado no município de Bagé, era compatível. No dia 29, a equipe do doutor Camargo realizou o transplante do pulmão esquerdo de Liège em uma cirurgia que durou cerca de seis horas. “A partir daquele dia, foi só alegria”, sorri. Foram 18 dias de recuperação no hospital até ganhar alta. Três meses após o transplante, a rotina de trabalho e as aulas na academia da qual é proprietária já haviam se restabelecido.

Conquistando o mundo

Liège tem o pulmão esquerdo transplantado, enquanto o direito parou de funcionar em função das doenças que a acometeram ao longo dos anos. Mas pergunte a ela se em algum momento temeu pela própria vida. “Eu nunca temi pela minha vida. Eu tinha certeza de que meu transplante iria chegar. Eu já me via correndo, eu projetava meu pensamento”, destaca. E essa projeção apontava para um futuro brilhante no esporte, talvez inimaginável para alguém que ultrapassou obstáculos tão árduos.

Se no Brasil um atleta olímpico, profissional, já encontra dificuldades em infraestrutura de treinamento, patrocínio, entre outros fatores, imagine uma atleta transplantada. “Eu sempre gostei de atletismo, mas não praticava. Em 2014 um amigo me comentou da existência dos Jogos Mundiais para Transplantados. No ano seguinte teria a edição de Mar del Plata, na Argentina. Fui me informar, vi as modalidades que existiam e resolvi me inscrever nos 100 e 200m rasos”.

A decisão de competir no Mundial trouxe a responsabilidade e a disciplina dos treinamentos. Liège procurou o técnico Gelson Ferreira Vaqueiro, da Sogipa, e ambos iniciaram uma parceria de sucesso. Com verba própria e uma alta dose de força de vontade, a primeira mulher brasileira a disputar um Mundial para transplantados chegou em Mar del Plata com o otimismo que lhe é peculiar. “Chegamos lá eu e mais três brasileiros, eles todos transplantados renais. Era gente do mundo todo. Muitos países com estrutura e delegações numerosas, pessoal de apoio, fisioterapia e treinadores”, lembra.

Quando foi chamada para entrar na pista, no Mundial, na estreia em competições de transplantados, o fato de estar ali já era digno de uma medalha de ouro. “Havia seis atletas na prova. Foi dada a largada, eu saí correndo e nos 20 metros finais não via ninguém na minha visão periférica. Cruzei a linha de chegada e fui campeã mundial dos 100 metros”, relata Liège, com um largo sorriso no rosto. “Eu comecei a gostar da coisa”, acrescenta. A satisfação de carregar a medalha de ouro no peito tomou conta da atleta. Naquele mesmo Mundial, ela ainda conquistou a prata nos 200m.

O Brasil ganhava uma atleta de elite. “Eu conhecia a Liège antes do transplante. Ela sempre foi uma mulher muito ativa antes da cirurgia. Fiz um teste com ela e vi que tinha muita velocidade, era rápida, mas sem muita resistência. Pensei nos 100m e a partir daí comecei a adaptar os treinos para ela”, conta Gelson Ferreira. “O treino é diferente porque eu tenho que saber exatamente como ela está se sentindo. Praticar esporte é levar o atleta no seu limite, então eu procuro ter um feedback constante dela e vou adequando o que ela pode ou não fazer”, explica o treinador.

Passado o Mundial de Mar Del Plata, Liège Gautério colocou outro objetivo na carreira: tornar-se bicampeã mundial. E este ano, na cidade de Málaga, na Espanha, lá foi ela em busca de mais um sonho. Movida a desafios, resolveu se inscrever em três provas (100m, 200m e salto em distância). Resultado? Bicampeã mundial nos 100m, medalha de bronze nos 200 e prata no salto em distância. Para efeitos de comparação, a recordista mundial dos 100m para atletas profissionais é a norte-americana Florence Griffith Joyner, com o tempo de 10,49s. Liège, com apenas um pulmão, faz a prova em 14,3s. “Eu acho que ela pode correr em 13s”, acredita o técnico Gelson Ferreira.

Em setembro passado, Liège participou do Troféu Brasil Máster de Atletismo, na Sogipa. Competindo com atletas fisicamente perfeitos, foi ouro nos 200m e prata nos 100m e no salto em distância. “Para mim é uma felicidade vê-la ganhando um Mundial, é uma vencedora, uma mulher que não desiste dos seus objetivos. O atleta está muito ligado à parte da autossuperação. A Liège é especial, está inserida no esporte, eu quero colocar ela nas competições oficiais, ela vai participar de tudo, independente de ser transplantada. Mas só de ela estar no esporte e ainda competindo em alto nível, já me deixa realizado”, encerra o treinador.

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