Na barranca do rio

Na barranca do rio

Um evento desse tipo muda a forma do cidadão encarar a vida. O xiru passa a dar muito mais valor às coisas triviais do cotidiano, valorizar aquele que está do seu lado

Paulo Mendes

Pôr do sol no rio Uruguai, em São Borja

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E lá se foram os dias, os meses de mais um ano e outra vez chegou a Semana Santa. Encontra-nos de novo na beira do Uruguai, entre foles e cordas, entre gaitas e guitarras, entre o passado e o presente, entre o presente e o futuro. No meio de um causo comprido de rio, entre um gole e outro, entreverados em alegria, canto e amigos. É uma festa, é uma confraternização de parceiros encontrados, mas também uma procissão de fé e louvor à arte regionalista, terrunha, missioneira e universal. Os gêneros se misturam, as vozes, os gritos, os timbres e melodias se entrelaçam neste caudaloso rio de imagens e sentimentos. O final de março nos acha acampados num pesqueiro fronteiriço declamando versos, escutando milongas e sapucais (o velho e indefectível grito guarani), abraçando almas iguais à nossa. Irmanados, alargamos a visão no lombo brilhante do grande rio, que ao invés de separar, une e afaga.

Este antigo bolicheiro da Vila Rica sente-se lisonjeado pelo novo convite de Os Angüeras para participar do 51º Festival da Barranca, em São Borja. Lembro que já no longínquo ano de 1991 conheci o festival pelas mãos de Nego Mota, Sérgio Jacaré e Emílio Pedroso. Foi uma experiência maravilhosa e fiz inúmeros amigos que mantenho até hoje. No ano passado, atendendo convocação do amigo Emílio, um fotógrafo de mão cheia, aceitei feliz da vida a ida a São Borja depois de tanto tempo envolvido com atividades profissionais. Foi lindo mesmo participar da festa macanuda que foi organizada para comemorar os 50 anos da Barranca. Gostei tanto que fiz um esforço para estar outra vez este ano. O festival é mesmo, como dizia o falecido Jacaré, um “comício de espíritos”.

Um evento desse tipo muda a forma do cidadão encarar a vida. O xiru passa a dar muito mais valor às coisas triviais do cotidiano, valorizar aquele que está do seu lado. Ano passado retornei diferente e neste, certamente, mudo um pouquinho outra vez porque é assim, seremos os mesmos e diferentes. Quero deixar desde já um abraço aos queridos amigos são-borjenses ou não, os músicos, os intérpretes, os organizadores, os cozinheiros, o pessoal do bolicho, incansáveis em receber e tratar bem. Todo mundo se sente à vontade, um privilegiado por tanta hospitalidade. Além de ser muito bonito se conviver uns dias com artistas renomados, verdadeiros mestres, professores para as novas gerações que surgem.

Obrigado a todos os barranqueiros pelos dias felizes e claros às margens do Uruguai, este velho rio caminhador. Neste domingo, retornamos para casa, por certo cansados de tanto alvoroço, festejos e fuzarca, mas de alma lavada e faceira. Prontos para recomeçar, porque nada para, tudo segue sempre em frente, como essas águas inquietas que vão dar inevitavelmente no mar. Levarei comigo as lembranças de dias tranquilos e felizes, porque juntos fica mais fácil suportar a ausência dos que partiram e fazem tanta falta. Pela estrada, em alguma hora, em algum momento, vou assobiar alguma canção que ficou gravada no coração. Uma que cantamos juntos num fim de madrugada. Voltaremos a trote chasqueiro, com mirada clara e certeira, batendo casco, porque como vaticinou o poeta “é mais feliz aquele barranqueiro que depois da festa tem para quem voltar”.


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