Falta de imunizantes evidencia falso avanço na vacinação contra a Covid-19 no Brasil

Falta de imunizantes evidencia falso avanço na vacinação contra a Covid-19 no Brasil

Para especialistas, quem recebeu apenas uma aplicação não pode ser considerado vacinado, pois, conforme a eficácia informada pelos laboratórios, é necessário concluir a imunização com as duas doses

Gabriel Guedes

RS ainda precisa de pelo menos 369.330 doses de Coronavac para concluir vacinação daqueles que foram vacinados com doses recebidas no RS nos dias 20 e 26 de março e 2 de abril

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A paralisação da aplicação da segunda dose da Coronavac/Butantan revela que a sensação de avanço na vacinação não era real. O Rio Grande do Sul ganhou fama pelo país ao ser o estado com a situação mais adiantada, ao se considerar a aplicação da primeira dose, com 21,43% da população – mas, na verdade, fica em 4º lugar quando se vê que apenas 9% dos gaúchos estão com a segunda dose no braço. Para especialistas, quem recebeu apenas uma aplicação não pode ser considerado vacinado, pois, conforme a eficácia informada pelos laboratórios, é necessário concluir a imunização com as duas doses, como também é caso dos produtos Astrazeneca/Oxford e Pfizer/BioNTech.

Com a chegada das 63.600 doses neste final de semana, o RS ainda precisa de pelo menos 369.330 doses de Coronavac para concluir vacinação daqueles que foram vacinados com doses recebidas nos dias 20 e 26 de março e 2 de abril. E mesmo com a previsão da entrega ao Ministério da Saúde, nesta semana, de 4,1 milhões de doses pelo Butantan, não há garantia de que isso acabe com a espera de quem aguarda pela segunda dose.

Para dar uma impressão de celeridade, prefeituras e governos estaduais têm feito uma leitura equivocada do avanço da vacinação, segundo Cristina Bonorino, imunologista, professora titular da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e membro dos comitês cientifico e clínico da Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI). “Eles estão pensando no ‘vacinômetro’. Só primeira dose não vale como imunização”, garante. Não é o caso de Porto Alegre, especificamente, em que a aplicação das duas doses é documentada em dados em separado e sem percentuais.

Entretanto, quem conferia na última sexta-feira o painel disponibilizado pela Secretaria Estadual de Saúde (SES), por exemplo, observava que 74% das 4.672.337 doses distribuídas foram aplicadas. Mas quando o dado é desdobrado, se observa que apenas 41% dos vacinados com a 1ª dose tomaram a segunda, o que mostra o abismo entre uma fase e outra da campanha.  

Porto Alegre entre as 10 melhores com segunda dose

Na comparação entre as 12 principais capitais brasileiras, Porto Alegre fica em 9º lugar na aplicação da segunda dose, com 52,55% das 406.362 pessoas que tomaram a primeira dose, o que correspondia até a última sexta-feira a 213.562 imunizados por completo, de fato. E mesmo entre os estados da Região Sul, a Capital gaúcha fica em último lugar na comparação com Curitiba e Florianópolis. Lidera a lista a capital do Pará, Belém, com 70% de conclusão da aplicação das vacinas entre os que tomaram dose inicial. 

Mas não guardar doses era uma opção que não precisava ser obrigatoriamente seguida. Foi o caso da capital fluminense, que decidiu reservar parte das doses de Coronavac e ficou em antepenúltimo entre as 12 cidades, com 46% das pessoas completamente vacinadas. “Apesar de ter tido uma liberação do Ministério da Saúde no sentido de que não se reservasse a segunda dose, tomamos o cuidado de fazer uma reserva técnica", disse o prefeito Eduardo Paes, no último dia 29. Mas mesmo assim, a medida não foi suficiente e a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro informou que, devido à falta de entrega de novas remessas da Coronavac, só pretende retomar a aplicação ao longo desta semana.

A semana passada terminou com uma revisão na estratégia da campanha em várias cidades do Rio Grande do Sul e do país. Na quinta-feira, o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, já havia anunciado que a Capital guardaria a 2ª dose das vacinas da Pfizer/BioNTech e da Coronavac para garantir a imunização completa de quem já começou o processo de proteção.

No mesmo dia, o prefeito de Belo Horizonte (MG), Alexandre Kalil, por exemplo, se arrependeu de ter seguido as orientações recebidas pelo Ministério da Saúde, de não reter doses, o que acarretou no adiamento da segunda aplicação nas pessoas com idades entre 64 e 67 anos. No dia seguinte, o próprio ministério já havia mudado de postura e determinou, por exemplo, que se reservasse as 243.400 doses da Astrazeneca/Oxford recebidas no dia 6 pelo Rio Grande do Sul e que serviriam para avançar a vacinação das comorbidades no estado.

Ao não se reservar vacina para a segunda dose, a ideia era acelerar a campanha, sem interrupções. A orientação partiu do Ministério da Saúde, ainda em fevereiro, sob a gestão de Eduardo Pazuello. Mas quase dois meses depois, com a falta de imunizantes, a medida se mostrou fracassada. “Fomos induzidos ao erro nessa matéria. Lá atrás, o Ministério da Saúde nos recomendou não guardar a segunda dose e aplicar todas as vacinas que chegassem e por isso aconteceu o episódio de ontem onde faltou vacina na Capital, no Estado e no Brasil. Por isso, essa alteração", afirmou Melo naquela ocasião.

“É óbvio que entre uma primeira dose e a segunda, deveriam guardar a segunda. Mas os estados e municípios entraram numa conversa desqualificada do Ministério da Saúde, de que viriam mais doses. Você não poderia ter liberado a primeira dose se não havia reposição. Foi uma gestão sanitária temerária”, aponta o professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), enfermeiro, sanitarista e doutor em Saúde Coletiva, Dário Frederico Pasche.  

Estado tem falta generalizada de segunda dose

No Rio Grande do Sul, o problema não se concentra apenas em Porto Alegre. As faltas de doses também ocorrem no interior e nas diversas regiões. Em Caxias do Sul, segundo a Secretaria Municipal de Saúde, estão faltando cerca de 11 mil doses de Coronavac. Mas com a remessa deste último sábado, o município da Serra vai receber apenas 1.380 doses. Em Pelotas, no sul do estado, o município precisa de 19 mil doses de Coronavac e 7 mil da Astrazeneca para concluir a vacinação das pessoas com idades entre 60 e 69 anos. Mas neste último carregamento, apenas 2.590 doses foram destinadas à cidade.

Em Santa Maria, na região Central, o déficit de Coronavac chega a 8 mil doses e o município receberá só 870 nesta segunda-feira. A tendência é que a situação se agrave. O diretor do Instituto Butantan, Dimas Covas, afirmou recentemente que não deve ter mais doses da vacina a partir do dia 14 de maio. Ele atribui o atraso na chegada do insumo farmacêutico ativo (IFA), fundamental para a produção dos imunizantes, às críticas do governo federal à China, principal fornecedora desta matéria-prima. O Ministério da Saúde foi procurado, mas não se manifestou sobre o assunto até a publicação desta reportagem.

Ainda conforme a SES, as retenções de doses de todos os imunizantes, que vão começar a ser feitas desde esta semana, vai obrigar a secretaria a rever o planejamento para vacinar pessoas com comorbidades até os 33 anos. No caso, invés de avançar com a primeira dose para pessoas mais jovens com comorbidades, com a reserva da última remessa de Astrazeneca, a segunda dose está garantida para pessoas que receberam a primeira aplicação a partir das doses recebidas em 25 de fevereiro e 22 e 26 de março. A segunda dose para esses grupos está prevista para ser aplicada a partir dos dias 21 de maio e 14 e 18 de junho.

Estados em dificuldades

Maior parte dos estados têm enfrentado dificuldades para fazer a segunda dose (D2) da Coronavac/Butantan. Há relatos de problemas no Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia, Pernambuco e Ceará e o envio das doses neste final de semana não resolve os problemas. A exceção foi Santa Catarina, que tinha uma carência de 47 mil doses e recebeu 55.800 e irá conseguir concluir a vacinação de todos ao longo desta semana, segundo a Secretaria Estadual de Saúde catarinense.

“Quando vem os imunizantes, vem muitas poucas doses. E elas ainda chegam a conta gotas. Isso abre um grande problema para as vigilâncias (epidemiológicas) dos municípios e dos estados, que é programar doses de vacinas entre uma e outra e públicos diferentes. Isso abre uma complexidade muito grande num programa de imunização que tem uma lógica programática, que trabalha com poucas variáveis”, explica o professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), enfermeiro, sanitarista e doutor em Saúde Coletiva, Dário Frederico Pasche.  

Pelo menos 12 cidades do Paraná estavam com a aplicação da segunda dose da vacina contra a Covid-19 suspensa por falta de imunizantes. Em São Paulo, cerca de 25 cidades chegaram a suspender a imunização da segunda dose até receberem novos lotes da Coronavac. O secretário de Saúde paulista, Jean Gorinchteyn disse que governo envia aos municípios quantidades iguais para 1ª e 2ª doses, mas acusou as prefeituras de não seguirem a orientação de reservar os lotes. No Rio de Janeiro, são pelo menos 12 cidades sem conseguir concluir a vacinação daqueles que receberam a primeira dose do imunizante contra a Covid-19.

Em Minas Gerais, as 100.200 doses recebidas neste final de semana serão insuficientes para dar conta de atender a todos os municípios com falta da Coronavac. A aplicação da segunda dose da CoronaVac está suspensa em diversas cidades da Região Metropolitana de Belo Horizonte e do interior de Minas Gerais. Somente na capital mineira, 80 mil idosos de 64 a 67 anos que tomaram a primeira dose aguardavam o reforço vacinal. Mas a prefeitura pretende retomar a campanha nos próximos dias.

Na Bahia, as 60.200 serão insuficientes para atender a demanda reprimida apenas em Salvador, que tem 65 mil pessoas aguardando na fila para tomar a segunda dose da vacina Coronavac. Segundo dados da Secretaria Municipal de Saúde (SMS), desse total, 54 mil estão com o esquema vacinal atrasado desde 20 de abril e outras 11 mil sequer tem perspectiva da data em que vão receber o reforço do imunizante desenvolvido pelo laboratório chinês Sinovac em parceria, no Brasil, com o Instituto Butantan.  

Pernambuco tem uma situação bastante parecida com a do Rio Grande do Sul. Para completar a imunização, eles precisam de pelo menos 126 mil doses e receberam neste final de semana, apenas 16 mil doses da Coronavac. Recebendo menos vacinas do que era esperado, municípios do Grande Recife alteraram o esquema de imunização. A prefeitura da capital pernambucana inclusive remarcou todas as pessoas que estavam agendadas para receber a segunda dose de Coronavac entre 29 de abril e 9 de maio para datas a partir de hoje.

O governo estadual orientou aos municípios a utilizarem os estoques que restaram da Coronavac, prioritariamente como segunda dose, completando os esquemas vacinais já iniciados contra a Covid-19. No Ceará, pelo menos 15 cidades suspenderam a aplicação da segunda dose, entre elas, Fortaleza, que tem um déficit de 40 mil doses de vacina. O recebimento de 38 mil doses neste final de semana será insuficiente para resolver o problema por lá. 

Aplicação da segunda dose nas principais capitais


Cidade 1ª dose 2ª dose Percentual de 2ª dose aplicadas*
Belém 253.751 180.078 70,96%
Manaus 320.743 194.327 60,58%  
Fortaleza 438.208 252.078 57,52%
São Paulo 2.256.569 1.324.388 58,69%  
Florianópolis 113.125 65.073 57,52%
Brasília 490.919 277.104 56,44%
Recife 336.021 182.593 54,33%
Curitiba 369.141 200.017 54,18%  
Porto Alegre 406.362 213.562 52,55%  
Rio de Janeiro 1.610.143 744.991 46,26%
Salvador 575.702 265.177 46,06%  
Belo Horizonte 596.449 261.626 43,86%  
Fonte: Secretarias Municipais de Saúde

Vacinação pelos Estados* 

Estado 1ª dose 2ª dose
Acre 10,82% 4,14%
Alagoas 14,19% 6,73%
Amapá 11,05% 4,78%
Amazonas 14,75% 7,82%
Bahia 17,62% 8,31%
Ceará 15,24% 8,26%
Distrito Federal 16,42% 9,12%
Espírito Santo 17,78% 6,65%
Goiás 14,38% 7,39%
Maranhão 13,35% 6,27%
Mato Grosso 12,99% 6,12%
Mato Grosso do Sul 21,15% 7,94%
Minas Gerais 17,05% 8,77%
Pará 14,52% 6,63%
Paraíba 17,39% 8,18%
Paraná 16,65% 9,11%
Pernambuco 15,15% 7,53%
Piauí 14,63% 7,22%
Rio de Janeiro 14,11% 6,44%
Rio Grande do Norte 15,26% 7,53%
Rio Grande do Sul 21,43% 9%
Rondônia 11,62% 5,4%
Roraima 10,91% 7,84%
Santa Catarina 16,04% 8,67%
São Paulo 18,33% 10,26%
Sergipe 14,61% 6,7%
Tocantins 12,12% 6,87%
* Índice relativo à população de cada estado 
Fonte: Secretarias Estaduais de Saúde


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