Desglobalização: como o comércio internacional é impactado por guerras e crises

Desglobalização: como o comércio internacional é impactado por guerras e crises

Especialista explicam se fenômeno se tornou uma tendência no período pós-pandemia de Covid-19

Brenda Fernández

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Em um contexto global de crise generalizada, alimentada pela pandemia de Covid-19 e pela guerra entre Ucrânia e Rússia, entre outros conflitos, as relações políticas e econômicas ficaram mais frágeis. A complexidade deste cenário, bastante discutido na última edição do Fórum Econômico Mundial, em Davos, jogou luz ao fenômeno de desglobalização. Livre de consenso em qualquer que seja a camada da discussão, o tema desencadeia debates acerca da consolidação de acordos entre países vizinhos e diversificação de produções. 

Para Maria Antonieta Del Tedesco Lins, professora de Política Internacional na Universidade São Paulo (USP), a desglobalização é um movimento político. "Na prática, significa para o desenho da economia internacional mais protecionismo e menos integração", colocou a professora, mas defendeu que ainda é um tema que fica 'em aberto, sem uma resposta única'.

"O que está ficando conhecido como um processo de desglobalização seria um recuo em todo o processo de unificação que estamos vivendo nos últimos 30-40 anos", destacou Maria Antonieta. Ela lembra que a unificação que se refere diz respeito a união de mercados e padrões que ocorrem por meio de processos econômicos. "Desde o fim dos anos 80, com uma onda forte de liberalismo e políticas que promoveram a liberação comercial financeira, os mercados estariam se integrando e, consequentemente, as pessoas ficando mais parecidas, à medida que você encontra os mesmos produtos e que você tem uma internacionalização de bens culturais."

Na análise da especialista, o termo ganha força a partir dos anos 2000 após uma sucessão de crises na segunda metade dos anos 90, que afetou países na época emergentes como Brasil, Argentina, México e toda a Ásia. “Vários países pensaram: ‘eu tenho que me proteger dos efeitos dessas crises’ porque quanto mais integradas estão as economias no mundo, maior é o efeito que uma crise em qualquer lugar vai ter sobre as economias individuais”, explica Maria. 

A desglobalização nada mais é que um fenômeno interno à globalização, explica João Jung, professor do curso de Relações Internacionais da PUCRS, que prefere adotar o termo ‘recuo’ ou ‘retração’. 

“Faz parte do sistema como um respiro ao processo de globalização existir essas fases de recuo, essa retração na globalização. O processo de globalização seria então essa curva para baixo nessa tendência de curvas acima, e que se apresenta como um processo natural, um fenômeno natural de qualquer sociabilidade”, destacou Jung. 

O mundo vive hoje uma crise generalizada. Na análise do especialista, ela perpassa por todos os setores da vida política internacional. “É uma crise econômica, uma crise política, uma crise ética e uma crise militar. Temos uma série de guerras ocorrendo no mundo hoje, que não é só a da Ucrânia, e dependendo da escala que considerarmos o conflito, são dezenas que temos hoje”, explica. 

Os efeitos da desglobalização também não são homogêneos. Criada em 1945, a Organização das Nações Unidas (ONU) elaborou um guarda-chuva para uma série de instituições e regulamentações - normativas, práticas e até qualitativas - que buscam unificar os processos que antes eram fragmentados e dispersos. Mas não foi suficiente. O docente da PUCRS, no entanto, aponta que mesmo dentro da homogeneidade há uma heterogeneidade. "São culturas diferentes, processos diferentes, sistemas políticos diferentes. Automaticamente o grau de desglobalização é diferente."

Depois da criação do sistema ONU, o fenômeno da retração na globalização deixa de ser uma tendência ao isolacionismo, como acontecia antes. “O isolacionismo começa a cair por terra porque é impossível um país ser autossuficiente, isolado. Esses processos de desglobalização tendem a ser processos de regionalização”, aponta João Jung. 

Processos de regionalização, o desafio da América do Sul

Há pelo menos três décadas, a globalização impulsionou a regionalização, processos que na visão de Maria Antonieta Del Tedesco Lins, sempre andaram juntos. O movimento provocou a criação de blocos de países em vários continentes. “Essas iniciativas não rompem com o processo de globalização, elas criam alternativas. Por um lado você tem um mau-estar que ocorre nestas crises, com impasses na integração regional, mas ao mesmo tempo você não tem uma ruptura na globalização.”

Para o professor João Jung, a América Latina sempre teve problemas nos processos de regionalização, de criação de organizações regionais. “Isso começa lá em 1947 nos termos como a gente lida hoje do Tratado Inter-americano de Reciprocidade, que vai desaguar na OEA [Organização dos Estados Americanos] que existe até hoje. De lá até aqui, há uma série de instituições que nasceram e morreram”, lembra.

Na América do Sul, o Mercosul (Mercado Comum do Sul) é uma das principais instituições criadas para intensificar as relações econômicas entre os países pertencentes e servir como uma espécie de proteção aos Estados em momentos de crise. O bloco econômico sul-americano é formado por Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e outros países associados e observadores. A Venezuela era um país-membro até ser suspensa em 2016 por tempo indeterminado por ‘descumprimento de normas internas do bloco’.

O Mercosul busca formar uma zona de livre comércio com uma Tarifa Externa Comum (TEC) para garantir a livre circulação de produtos e serviços sem trâmites burocráticos que dificultam o comércio exterior.

João Jung reconhece a importância do bloco, mas vê o Mercosul ‘muito aquém do que deveria ser’. "Temos 30 anos de uma organização que não conseguiu cumprir algumas questões básicas, alguns princípios básicos”, aponta o especialista que lembra de outras duas instituições que surgiram com o mesmo propósito mas acabaram ‘enfraquecidas’, como a Unasul e o Prosul. 

“O discurso dos governantes é sempre em defesa do Mercosul. Só que na prática, a gente não tem tanta integração. Poderia ter mais. O comércio entre os membros cresceu muito nos anos 90, mas poderia haver mais cooperação entre os países”, completa Maria Antonieta Del Tedesco Lins.

Agenda de governo e a recuperação de acordos 

Dos países vizinhos ao Brasil ao continente africano, a agenda internacional do presidente Luiz Inácio Lula da Silva englobou 19 países em oito meses de governo. A intensa agenda de viagens do presidente – que está em seu terceiro mandato – chamou a atenção dos especialistas. 

Para João Jung, a urgência de buscar as relações com outros países é uma demanda reprimida deixada pelo governo anterior. 

A docente da USP lembrou da falta de tentativas de fazer acordos e comprar vacinas na pandemia. "Se olhamos para a política externa do país durante os quatro últimos anos, vemos claramente que o Brasil se afastou das arenas internacionais e ficou completamente ‘de fora’", disse.

Ela lembrou da ‘moeda comum’, uma estratégia proposta por Lula para facilitar as trocas comerciais entre países membros do Brics, que tem como membros criadores Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Na Cúpula do Brics, em agosto deste ano, o petista disse que os governantes do bloco se propuseram a pensar na proposta. 

“Isso já existe acordos bilaterais, que não são dentro do Mercosul. Mas isso é pouquíssimo utilizado por diferentes razões econômicas, principalmente. Então fica um discurso meio sem uma contrapartida concreta”, avaliou Maria. A medida também é vista com crítica por João Jung: "quer começar do ponto mais avançado enquanto a gente não tem questões básicas”.

“Uma moeda comum foi a última coisa que a União Europeia fez, e até hoje existem países que estão na União Europeia, mas não estão na zona do Euro. São coisas diferentes. Isso porque ter uma moeda comum é uma coisa extremamente complexa, você abre mão da soberania da sua política econômica”, lembrou o professor.

Em um evento que antecedeu a XV Cúpula do Brics, que ocorreu em agosto deste ano, o ministro da Fazenda Fernando Haddad defendeu que os países do bloco "se unam em torno dos valores comuns da liberdade, da soberania nacional, do mundo equilibrado", na busca de "oportunidades para toda sua gente sem distinção de raça, etnia, gênero, nacionalidade e religião".

O ministro disse, em discurso, que o mundo vive um 'retrocesso' do ponto de vista da globalização e sinalizou uma brecha: "isso pode ser uma oportunidade para uma grande diversificação, para a pulverização das plantas industriais, oferecendo a nossos povos salários e empregos mais dignos e qualificados".

Ao final da Cúpula, seis novos membros foram 'convidados' a entrar no bloco como membros plenos: Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Argentina, Egito, Irã e Etiópia. Eles se juntam ao Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul a partir de 1º de janeiro de 2024. Ainda não há definição se o nome do bloco, formado pelas iniciais dos atuais cinco membros, irá mudar com a sua expansão. O Brics representa quase 25% do PIB e 42% da população mundial.


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