Economia circular: moda sustentável é oportunidade de empreendedorismo
Jovem de Osório auxilia o desenvolvimento local com ferramenta que identifica oportunidades alinhadas com responsabilidade social e ambiental
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Em um cenário em que o empreendedorismo representa uma alternativa de renda e, muitas vezes, de flexibilidade na jornada de trabalho, as mulheres têm conquistado cada vez mais espaço. Somente em 2023, elas representavam quase a metade dos Microempreendedores Individuais no Brasil. Segundo a Receita Federal, ao menos 46,43% dos cadastros ativos como MEI são de empreendedoras.
Entusiasta da economia circular, a estudante de Osório Victórya Leal Altmayer Silva, 20 anos, idealizou o projeto Fidere, um aplicativo para conectar brechós e associações femininas. Dessa forma, ela tem contribuído com a independência de muitas pessoas do Litoral Norte. Para comemorar o Dia Internacional da Mulher, celebrado nesta sexta-feira, o Correio do Povo foi atrás de projetos criativos e inovadores com lideranças femininas, e conversou com essa jovem que já recebeu mais de 85 prêmios nacionais e internacionais pelas iniciativas na área.
Victórya foi responsável por conduzir uma pesquisa com 508 jovens, quando coletou 16 mil dados através de Modelagem de Equações Estruturais. Criou um modelo matemático inédito do comportamento dos jovens brasileiros na economia circular, cujo resultado indicou que a educação é fundamental. A partir disso, desenvolveu o jogo de tabuleiro e aplicativo Eco-Socius, voltado à educação para o desenvolvimento sustentável, atingindo aproximadamente 1 mil pessoas e mais de 20 escolas.
O impulso para o empreendedorismo surgiu em 2020, com a possibilidade de desenvolver uma pesquisa independente na escola. Na época, em meio à pandemia, ela percebeu que alguns pequenos negócios não estavam adaptados para o comércio eletrônico, que cresceu naquele período. Tendo isso em vista, criou um aplicativo do tipo marketplace com o intuito de ajudar a comunidade. A surpresa foi descobrir, em meio ao estudo científico, que esses negócios não eram só um gerador de pertencimento dentro da comunidade, mas peças chaves na transição para uma Economia Circular.
Durante o processo não faltaram inspirações. A avó, Celeida Leal, foi a responsável por ensiná-la a observar o mundo a sua volta através da coletividade. Não à toa é a referência para criação do Fidere. No âmbito acadêmico, além da orientadora Flávia Twardowski, a economista Esther Duflo, que gerou identificação por também querer ser uma agente de mudanças no mundo.
Ciência e coragem: substantivos femininos
A trajetória dela nem sempre contou com incentivos, o que não é diferente de muitas estudantes que se aventuram na área das ciências exatas. Segundo o relatório “Meninas curiosas, mulheres de futuro. Meninas brasileiras e a inserção em STEM: um abismo no presente e horizonte para o futuro”, lançado pela plataforma educacional Força Meninas em fevereiro de 2023, 62% das meninas não possuem referências de pessoas em áreas exatas e 44% afirmam que matemática é a disciplina mais árdua, enquanto que essa dificuldade é citada por apenas 28% dos meninos entrevistados.
Victórya também contou que teve inúmeros desafios para aprender as técnicas de programação e colocar em prática seus projetos. Ela precisou, por exemplo, aprender sozinha em videoaulas e também pedir notebooks emprestados para desenvolver o modelo matemático. O interesse pela matemática - área em que desenvolveu facilidade ao longo do tempo, tornou-se um aliado nesse processo.
Se tratando de carreiras historicamente ocupadas – em sua maioria – por homens, de acordo com a Unesco, a parcela feminina representa 28% dos formados em engenharia e 40% na ciência da computação e informática, por exemplo. “É exigida uma dedicação quase sacerdotal”, avalia Marcia Barbosa, Física-Teórica e professora titular da Ufrgs, sobre a baixa participação de mulheres nessas carreiras. Ela ressalta que a dinâmica é incompatível com a rotina de afazeres que são impostas às mulheres. “Mas esta não é a única questão, à medida que se sobe na carreira, o percentual de mulheres diminui”, completa.
Trabalhar a diversidade de gênero nos postos de trabalho ultrapassa a questão da justiça social, e pode até mesmo contribuir com os processos e performance das empresas.
“Qualquer área do conhecimento se torna mais eficiente se tiver mais diversidade”,
diz a professora Márcia, corroborando com essa perspectiva.
Confira a entrevista completa com Victórya Leal Altmayer Silva
CP: Poderia nos contar um pouco de quem tu és, onde nasceu e o que faz atualmente?
Me chamo Victórya Leal, tenho 20 anos, venho da pequena cidade de Osório e hoje resido na capital, Porto Alegre. Trabalho, essencialmente, como jovem cientista e empreendedora. Além disso, apesar de ter passado no vestibular para cursar o bacharelado em Economia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Ufrgs e Engenharia Ambiental na Universidade Federal de Santa Catarina, a UFSC, ano passado apliquei para estudar Economia em faculdades nos Estados Unidos. A maior parte dos resultados só saem no final de março/início de abril, mas posso dizer que já fui aceita em quatro universidades nos EUA com bolsa e programa de honras.
CP: Você foi reconhecida pela idealização de um projeto de economia circular. O que te levou a criar esse projeto?
Sim! Tudo começou ainda no meu ensino médio no Instituto Federal do Rio Grande do Sul - Campus Osório. No IF, temos a oportunidade de fazer projetos extracurriculares, e entre eles pesquisa independentes com a orientação de professores da escola, no meu caso a professora Flávia Twardowski. Foi nesse contexto em 2020 que percebi que minha avó e suas amigas que mantinham brechós e associações femininas na nossa comunidade estavam tendo seus laços e fontes de renda ameaçados, visto que esses pequenos negócios não estavam adaptados para o comércio eletrônico que cresceu exponencialmente em meio à COVID-19.
Motivada por essa situação, decidi que ia usar da pesquisa para criar um aplicativo e-commerce do tipo marketplace para ajudar a minha comunidade, o Fidere. Minha surpresa foi que em meio ao estudo científico, descobri que esses negócios não eram só um gerador de “pertencimento” dentro da comunidade, mas peças chaves na transição da Economia Linear (fluxo econômico que vivemos hoje baseado em produção, consumo e descarte acelerado, principal causador das mudanças climáticas) para uma Economia Circular (fluxo econômico alternativo baseado em práticas sustentáveis) por conta de serem baseados no conceito de reuso e, não só isso, que a minha tecnologia era inovadora em mais de 300 aplicativos/websites focados no nicho da Economia Circular internacionalmente.
Contudo, pesquisando mais sobre a problemática me deparei com a informação que apenas 7% do mundo já está adaptado aos princípios e parâmetros da Economia Circular, por isso, decidi ir além. Através da coleta de um conjunto de mais de 16 mil dados de 508 jovens de 15 escolas diferentes e da matemática, especialmente a Modelagem de Equações Estruturais e Análise Fatorial, criei um modelo matemático original e inédito que não só explica, mas mede e prediz o comportamento dos jovens brasileiros de 14 a 19 anos em práticas sustentáveis relacionadas a Economia Circular. Através das equações, descobri que o fator determinante para esses comportamentos é o nível de educação ambiental. Assim, decidi criar um jogo educativo em dois formatos: aplicativo e tabuleiro para democratizar os conhecimentos relativos ao desenvolvimento sustentável aos jovens do ensino fundamental II e ensino médio, o Eco-Socius.
CP: Quando surgiu o interesse pela economia circular e quais foram os principais desafios para colocar em prática?
Os desafios foram inúmeros. Na criação do Fidere me desafiei a aprender programação sozinha via vídeo aulas no Youtube, mesmo não tendo aulas na escola (nem de forma remota ou presencial). Com o modelo matemático, além de ter que recalcular todas equações do zero 17 vezes devido a erros nos resultados, precisei pedir mais de 5 notebooks emprestados para utilizar a licença gratuita de 21 dias de um dos softwares que usei para desenvolver o modelo matemático, o qual possuía um valor muito alto. Já agora com o Fidere e o jogo Eco-Socius como minhas primeiras startups, tenho enfrentado grandes desafios de escalonamento e plano de negócios.
CP: Quando pequena, o que tu sonhava em ser?
Essa é uma ótima pergunta. Lembro que sempre mudava de ideia, a que durou mais tempo foi ser diplomata. Já quis ser de tudo na infância, mas sempre profissões que me permitissem criar um impacto real no mundo.
No entanto, confesso que cientista não estava nos planos da pequena Victórya, especialmente porque por muito tempo achei que cientista era só o Einstein (homens, mais velhos e no laboratório), algo muito distante da minha própria imagem.
CP: Quais disciplinas você mais gostava de estudar, e em quais se destacava?
No ensino fundamental, história e matemática. Matemática eu não gostava muito, mas desenvolvi facilidade, agora história sempre foi minha paixão, contava os minutos para meus dois períodos semanais.
Já no ensino médio, despertei um grande encantamento pela sociologia o que me fez obter um grande destaque nessas aulas. E, claro, devido ao técnico em administração em conjunto com o ensino médio, lembro de ser a única aluna da minha turma a gostar e ter como “preferida” as aulas de introdução a economia (nada me desafiou e estimulou tanto na vida), não é à toa que é economia que desejo fazer na faculdade.
CP: Você recebeu incentivo e apoio de professores nessa área?
Nem sempre. Alguns professores no IF foram bem contrários ao desenvolvimento de pesquisa na área das ciências sociais da forma como eu queria fazer (com a inserção da tecnologia e da matemática). Até que depois de 7 e-mails pedindo ajuda em meio a pandemia que enviei a para a professora Flávia (que na verdade é da área da engenharia de alimentos), alguém topou me orientar. E, assim, juntas desenvolvemos o Fidere, o modelo matemático e o Eco-Socius. Confesso que nem eu ou ela imaginávamos que nossas pequenas “aventuras no mundo STEAM” nos levariam a mais de 85 prêmios nacionais e internacionais, foi algo único. Com certeza, ela foi muito importante para a concretização de meus projetos e sonhos.
CP: Quais prêmios você já recebeu?
Graças aos meus projetos e trajetória, pude conquistar 85 premiações nacionais e internacionais. Internacionalmente, vale destacar: Jovem Campeão do Ano – Sub 21 (Canon Young Champion of the Year – Under 21), onde fui escolhida globalmente como um dos 5 jovens campeões do ano pelo Global Good Awards – a maior e mais ética premiação de sustentabilidade do mundo; Quarto Lugar Mundial em Comportamento e Ciências Sociais na Regeneron ISEF 2021 - a maior feira de ciências e engenharias do mundo; Segundo Lugar no Prêmio Internacional de Inovação para Comunidades da Terra Sustentável, na Sustainability Solutions Science Fair pela Arizona State University; Medalha de Ouro na Infomatrix World Finals; Medalha de Bronze e Diploma de Melhor Apresentação de Pôster na International Conference of Young Scientists; Medalha de Bronze na Genius Olympiad - maior feira de ciências do mundo com foco em sustentabilidade; Palestrante de Honra (Honor Speaker) na Youth STEM 2030 Research Conference (única latina a ter um Ted Talk no evento internacional). No Brasil, por sua vez, fui agraciada com quatro medalhas de ouro e duas medalhas de prata na MOSTRATEC (maior feira de ciências e engenharias da América Latina) e na FEBRACE (maior feira de ciências e engenharias do Brasil), conquistando grande destaque em meio a ciência jovem do país. Além disso, recebi o Prêmio de Incentivo ao Empreendedorismo Científico (PIEC) na categoria Nova Realidade, devido ao projeto de pesquisa FIDERE: aplicativo e-commerce para os brechós brasileiros, por apresentar alto rigor científico e grande viabilidade econômica. Além disso, fui a vencedora do Prêmio Mude o Mundo como uma Menina na categoria Visionária pela minha trajetória de projetos inovadores, um prêmio muito especial para mim. Ao todo são 15 medalhas de ouro (primeiros lugares) e mais de 60 distinções e outros prêmios especiais em feiras de ciência. Meu currículo também me fez ser reconhecida com votos de congratulações pela prefeitura e pela câmara de vereadores da minha cidade (Osório/RS), com o Prêmio Jovem Cientista gaúcho pela Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul e ainda ser escolhida por três anos consecutivos como Jovem Talento Científico gaúcho pelo poder executivo do estado.
CP: Quais são as mulheres que te inspiram?
Do âmbito pessoal, sem dúvidas, a minha avó Celeida Leal. Foi ela que me criou e, além disso, me mostrou a importância de pensarmos e agirmos em comunidade. Me ensinou a observar o mundo a minha volta através da coletividade. Por isso, é a grande inspiração para criação do Fidere.
Já no âmbito acadêmico, além de minha orientadora, a economista Esther Duflo. Em 2019 quando ela ganhou o prêmio Nobel lembro de ficar encantada não só com o seu trabalho científico, mas com as suas palavras. Ela disse que quando pequena nem sabia que um campo como a economia existia, mas sabia que queria ser uma agente de mudanças no mundo. Nunca me identifiquei tanto com alguém!
CP: Para ti, qual a importância de ter cada vez mais meninas em carreiras relacionadas ao estereótipo masculino?
Em um primeiro aspecto, eu acredito que o desenvolvimento seja econômico, científico, ambiental, político ou social se dê verdadeiramente em ambientes com diversidade. É aquilo melhor do que pensar sobre como uma mulher se sente sobre determinado assunto, é tê-la no time, com pessoas negras, LGBTQI+, PCDs e etc. a mesma coisa. Então, ter mulheres como cientistas, líderes políticas, engenheiras, programadoras e outras tantas profissões de STEAM e liderança historicamente ocupadas, pensadas e desenvolvidas por e para homens, é extraordinário. Significa, com certeza, um desenvolvimento dessas áreas baseado em critérios mais equitativos e, o mais importante, a quebra de um paradigma o que me leva ao segundo aspecto. Hoje tenho certeza que muitas jovens meninas, diferente de mim que na infância via como algo totalmente distante, se imaginam como cientista e não só dentro de um laboratório. Esse movimento de inclusão e divulgação de mulheres líderes que vem sendo feito cria um sentimento de representatividade e exemplo poderoso.
CP: Hoje tu te sentes empoderada?
Bom, a resposta honesta é que hoje me sinto mais que ontem. Acredito que a jornada de empoderamento de cada mulher não é fácil ou linear, ou seja, a minha também não. No entanto, tenho certeza, que cada dia que passa me sinto mais.
Acontece que para nós meninas/mulheres é um desafio assumir um papel de liderança para seguir os nossos sonhos, são muitos "nãos" que ouvimos no caminho e nos deparamos, constantemente, com uma falta de representatividade gigante. Quando comecei no mundo STEAM, não me reconhecia naquele espaço, não acreditava ser merecedora ou apta o que me fez sentir insegura por muito tempo. Me lembro quando estava na Sérvia, na Conferência Internacional de Jovens Cientistas, era única latina e mulher na sala de apresentação de pesquisa em matemática o que me deixou muito assustada, mas eu enfrentei. Então, para mim hoje ter a minha trajetória enquanto jovem mulher reconhecida em tantos lugares e premiações é algo que me empodera e me faz mais forte em situações como a que contei.
Por isso, digo para outras meninas: é possível! Sei que pode parecer distante, mas com determinação e muito amor pelas suas ideias mais "malucas" existe um mar de oportunidades esperando por vocês. Nem sempre é fácil, mas eu tenho certeza que vocês são capazes! Juntas somos mais fortes e é através desse movimento coletivo que conseguiremos mudar o jogo, fazendo com que nenhuma menina se sinta sozinha e "sem exemplos" como um dia eu me senti. Afinal, não podemos esquecer: ciência e coragem são substantivos femininos.
* Sob supervisão da jornalista Karina Reif