Caldas Júnior: o criador do moderno jornalismo gaúcho

Caldas Júnior: o criador do moderno jornalismo gaúcho

Correio do Povo, que completa 125 anos, é o fruto do imaginário da sua época, o final do século XIX

Juremir Machado da Silva

Linotipistas na oficina de composição do Correio do Povo

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O jornal Correio do Povo, cuja primeira edição circulou em 1º de outubro de 1895, é o fruto puro do imaginário da sua época, o final do século XIX. Na verdade, o Correio do Povo foi o primeiro jornal gaúcho do século XX. O engajamento pautou as atividades jornalísticas nas lutas pela abolição da escravatura e pela proclamação da República. A abolição da escravatura provocou a proclamação da República, que produziu conflitos regionais. O Rio Grande acabaria dividido entre republicanos e federalistas. O jornal dos republicanos, A Federação (1884-1937), duelava com A Reforma, criada nos anos 1860 para expor as ideias dos liberais contra os conservadores.

Júlio Castilhos, a alma e a pena de “A Federação”, acreditava no papel educativo do jornalismo: “Apesar de severamente condenado por espíritos superiores, entre os quais se distingue o do primeiro filósofo do século, pensamos que o jornalismo representa uma força digna de ser aproveitada em favor do bem comum. Conscienciosamente utilizada, isenta das desnaturações oriundas do mercantilismo, não obstante a anarquia mental peculiar à presente fase da evolução histórica, essa força pode cooperar para os progressos intelectuais da opinião e para a obra de solidariedade social”. Os primeiros anos da república rio-grandense foram de instabilidade absoluta e de emoções constantes: 15 nomes arranjaram lugar de honra nas atas da história como chefes do governo estadual em pouco mais de três anos.

Uma era começava. Os anos seguintes seriam vermelhos de sangue, o sangue das degolas nos campos de batalha. Castilhos assumiu, como presidente eleito e líder do Partido Republicano Rio-grandense (PRR), em 15 de julho de 1891. Iluminado pelas ideias do positivismo de Auguste Comte – cujo lema poderia ser resumido no célebre “viver às claras”, presente nos templos positivistas, como na capela de Porto Alegre –, Júlio Prates de Castilhos tinha fé quase mística na razão. Queria “civilizar” o Rio Grande do Sul inoculando-lhe doses cavalares de educação, ciência e história. Sua metralhadora verbal mirava crendices e superstições populares. O progresso por meio da racionalidade era seu mito absoluto. A sua Federação era mais passional. Quando da morte do inimigo Gumercindo Saraiva o jornal de Castilhos fez o obituário: “Pesada como os Andes, te seja a terra que teu cadáver maldito profanou... Caiam sobre essa cova asquerosa todas as mágoas concentradas das mães que sacrificaste, das esposas que ofendeste, das virgens que poluíste, besta-fera do Sul, carrasco do Rio Grande”. Um clássico do mau gosto e vingança intemporal.

Faltava um jornal sem paixões violentas. A vida política gaúcha não deixava os jornais sem notícias. Os jornais é que as ignoravam. Menos de dois meses depois do fim da Revolução Federalista, sete anos após a abolição da escravatura, seis anos depois da proclamação da República, na vigência do governo positivista republicano de Júlio de Castilhos, o sergipano Francisco Antônio Caldas Júnior lançou, em 1º de outubro de 1895, o Correio do Povo, jornal “noticioso, literário e comercial”, que se tornaria uma instituição centenária do Rio Grande do Sul, tendo como fundamento revolucionário para o Estado na época uma nova concepção narrativa e investigativa: a informação como origem e finalidade. Foi a revolução copernicana do jornalismo gaúcho.

Foto: CP Memória

Nascimento de um jornal

Por que um homem decide lançar um jornal? No século XXI, essa pergunta pode surpreender, mas não deixa de fascinar. Em 1895, não surpreendia tanto, mas revelava a ousadia do empreendedor e fazia pensar sobre a natureza e a duração da aventura. Ainda mais que o projeto de Francisco Antônio Vieira Caldas Júnior se anunciava diferente de tudo o que os gaúchos estavam acostumados a ver em matéria de jornalismo. Havia fartura de jornais na Porto Alegre de 1895: A Federação, porta-voz do PRR, polemizava desde 1884 com quem ousasse discordar do republicanismo de Comte e Júlio de Castilhos. O Dia, desde 1º de setembro de 1894, orgulhoso do seu subtítulo de Folha Popular, fazia o mesmo pelo lado inverso: existia para discordar de Castilhos e seus mitos, nunca lhe faltando assunto para farpas e provocações. A Gazeta da Tarde, publicada pelo anticlerical Germano Hasslocher desde 25 de março de 1895, buscava sua identidade na medida em que o dono viera do federalismo de Silveira Martins para o republicanismo de Castilhos. A República surgira para defender o ideal alcançado em 15 de novembro de 1889. O Mercantil (cujo subtítulo era Folha da Tarde), fundado em 1874 por Câncio Gomes para ser abolicionista e monarquista, tinha duas páginas. O Jornal do Comércio, de 1863, professava um liberalismo bem temperado, tendo chegado, na Revolução Federalista, à impressionante tiragem de 5 mil exemplares. O Deutsches Volksblatt expressava em alemão, desde 1871, o catolicismo dos jesuítas.

Caldas Júnior não queria ser político nem advogado, algo raro num jornalista da época. Ambições, porém, não lhe faltavam. Em comum com outros jornalistas tinha o gosto pela poesia. Publicaria, em 1913, ano da sua morte precoce, seus Versos escolhidos. Aos 27 anos de idade, na conturbada república do visceral Júlio de Castilhos, estava pronto para fazer e contar história. Sua experiência no jornalismo passava pelas funções, por robustos três anos, de revisor e noticiarista (mistura de repórter e de redator de notícias) em A Reforma, do qual seria, depois, diretor até a interrupção da sua circulação, em 1892. Os três anos anteriores ao grande salto que Caldas Júnior daria em 1895, fundando seu Correio do Povo, seriam de atividades no Jornal do Comércio, para onde fora levado pelo sogro, o escritor Aquiles Porto Alegre, de onde sairia em agosto para, menos de dois meses depois, virar dono de jornal sem talvez nem mesmo ter tido tempo de mandar imprimir o novo cartão de visitas ou de apavorar seus concorrentes, ainda que tenha publicado anúncios propagando a chegada do novo diário.

O jovem sergipano – radicado no Rio Grande do Sul desde 1872, por transferência profissional do pai, juiz de órfãos, para Santo Antônio da Patrulha – sabia que um jornal exige planejamento e equipe qualificada. Não se jogou sozinho na empreitada minuciosamente preparada. Formou um triunvirato: ele, José Paulino de Azurenha e Mário Totta. Respectivamente, sem preconceitos nem distinções de classe, desafiando conselhos e convenções sociais retrógradas, um nordestino com pendores de poeta, um negro porto-alegrense, de 34 anos, com experiência de gráfico e redator no Jornal do Comércio, e um jovem branco, poeta, de 21 anos, também de Porto Alegre, caixeiro na Livraria Americana, que sonhava em ser médico. Azurenha era craque em artes gráficas e especialista nos vãos e desvãos da Capital. Totta tinha tudo para ser o primeiro grande repórter da nova era: inteligência, argúcia, capacidade de observação, curiosidade e nada a perder.

Tudo se movia suavemente como as folhas dos ipês nas ruas e praças de sombras generosas. Mas se movia. Só Caldas Júnior parecia ter pressa, a pressa dos poetas empreendedores que sabem como proceder para mudar certas coisas. Porto Alegre despertava. O fundador levantara 20 contos de réis para bancar seu empreendimento. Uma parte oriunda das suas economias; a outra graças a um empréstimo concedido por dois investidores providenciais e amigos, Eugênio du Pasquier e Antônio Mostardeiro Filho. Não podia errar.

O Correio do Povo veio à luz, numa terça-feira, com quatro páginas, como era comum, de 39 por 56 centímetros, divididas em seis colunas, impresso, em papel importado da Europa, numa modesta máquina Alauzet, com redação na Rua dos Andradas, 132, e uma tiragem de dois mil exemplares à base de 400 exemplares por hora. Antes da primeira edição, o ágil e previdente Caldas Júnior publicou anúncios na concorrência para despertar a atenção dos leitores e preparar os espíritos. O negro Paulino Azurenha, o “negrão Paulino” como era chamado por muitos, comandaria o jornal em certas ausências do dono. Caldas Júnior desafiava o seu tempo. Queria avançar.

Foto: CP Memória

Em nome do pai

Caldas Júnior era casado, em breve seria pai, a primeira filha, Dejanira, nasceria em 28 de novembro de 1895. Uma dor, porém, dormia no coração do empresário, a dor da perda do pai. Pode-se ver um pai partir antes do tempo como que roubado pela vida, pela morte, pelas circunstâncias da história ou simplesmente pela perversidade dos homens. Homens perversos para Caldas Júnior eram figuras como Júlio de Castilhos, Floriano Peixoto e certo Moreira César, militar, que ficaria na história por suas grandes derrotas – seria destroçado em Canudos tentando humilhar, com sua pretensa superioridade racional, as forças do místico e ignorante Antônio Conselheiro.

Teria Caldas Júnior pensado na morte precoce do pai antes de escrever o editorial da primeira edição do Correio do Povo? Teria pensado nos três desterros desse pai reto empurrado do norte para o sul por suas posturas e ideias liberais? O primeiro desterro o trouxe à pequena Santo Antônio da Patrulha – atravessando o país numa saga individual sentida como obrigação moral e provação a ser convertida em aprendizado –, onde sofreu campanha de difamação por razões perdidas no tempo. Um desterro em 1872, outro em 1880 e, o último, em 1892, como desembargador, transferido para a distante Ilha do Desterro, em Santa Catarina.

Teria pensado nisso o jornalista e empresário Caldas Júnior ao escrever o editorial que serviria de constituição ao seu Correio do Povo, que nascia comprometido com a informação e prometendo jamais ser porta-voz de qualquer facção? Como profissional formado no jornal de Gaspar Silveira Martins, teria pensado em Júlio de Castilhos, Floriano Peixoto e nos desterros do seu pai, executado cruelmente em Santa Catarina, em 25 de abril de 1894, por ordem de Moreira César, o monstro de confiança de Floriano em Desterro, a quem Castilhos e os positivistas apoiavam? Em 1º de janeiro de 1899, já com o jornal sendo impresso numa potente Marinoni capaz de cuspir 600 exemplares por hora, com formato maior e mais arejado de sete colunas e número maior de páginas, Caldas Júnior publicou, numa linha de cinco colunas, a informação que o deixara eufórico na véspera do ano novo: “O Correio do Povo é o jornal de maior tiragem e circulação do Rio Grande do Sul”. A concorrência perdeu a compostura. A guerra foi declarada.

Caldas Júnior, prestes a ver seu jornal impresso pela primeira vez, certamente pensava na morte do pai, executado na fortaleza de Santa Cruz, na ilha de Anhatomirim, junto com mais 41 pessoas, por ter sido Chefe de Polícia do governo provisório de Frederico Guilherme de Lorena, que durou de 14 de outubro de 1893 a 24 de abril de 1894, tendo sido derrotado pelas tropas florianistas de Moreira César. Teria Caldas Júnior conhecimento pleno dos detalhes da captura e morte do pai? Pensaria no desembargador Vieira Caldas atravessando, num 16 de abril de temperatura amena, o estreito num bote, rumo ao continente, comprando um burro, dirigindo-se para Biguaçu, dormindo sobre o poncho com a sela de travesseiro, o cansaço triturando-lhe os ossos, as ideias percorrendo sua mente com a clareza das suas escolhas, os homens de Moreira César, a tropa de Floriano Peixoto, perseguindo gente como ele, atropelando tudo, impondo a sua ordem bestial?

Moreira César morreu no sertão baiano em 4 de março de 1897. O Correio do Povo noticiou objetivamente a morte do algoz do pai do seu fundador. Foi certamente em nome do pai, sacrificado por ordem de um insano, que Caldas Júnior escreveu o talvez mais sereno dos editoriais publicados por um jornal criado no Rio Grande do Sul num tempo de linguagem belicista. Em nome do pai amado e sempre lembrado, mas em total autonomia. Se o pai era um liberal, ou mesmo maragato, homem profundamente do seu tempo, Caldas Júnior faria tudo para não se deixar dominar pelas suas enormes paixões. Mostraria isso no editorial da primeira edição do seu diário. Prometia um jornal determinado a só subordinar “seus intuitos às aspirações do bem público e do dever inerente às funções da imprensa livre e independente”.

 


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DESDE 1º DE OUTUBRO 1895