Denúncias sobre adoções suspeitas assustam Riozinho

Denúncias sobre adoções suspeitas assustam Riozinho

Psicóloga identificou procedimentos que não seguiriam protocolo na retirada de crianças

Karina Reif

Pelo menos um caso foge do padrão da normalidade, diz promotor de Taquara

publicidade

A retirada de mais de 30 crianças de suas famílias ao longo de cerca de dez anos está sob investigação na cidade de Riozinho, no Vale do Paranhana. Com aproximadamente 4,5 mil habitantes, o município pacato está em polvorosa, e o assunto é comentando em voz baixa, porque moradores têm medo de possíveis represálias de quem articularia um esquema para facilitar adoções.

Recém-nascida teve registro extraviado

O caso é investigado pelo Ministério Público e veio a público a partir de uma série da TV Record. A partir da veiculação do trabalho minucioso realizado durante dois meses pelo repórter Matheus Felipe, junto com o cinegrafista Emerson Garcia e a produtora Patrícia Mello, a Polícia Civil instaurou inquérito.

Nos primeiros meses de trabalho como psicóloga da prefeitura, Venilce Santos de Oliveira começou a identificar, em 2014, procedimentos de retirada de crianças que, em sua opinião, não seguiam o protocolo normal. Ela denunciou supostas irregularidades apresentadas por seus pacientes ao gestores municiais. “A entrega para adoção deve ser em último caso, mas em Riozinho tem sido a primeira alternativa. Não existe um programa de amparo, não procuram um familiar próximo para ficar com as crianças e por isso comecei a estranhar”, observa.

A servidora está afastada e escondida em outro município, porque afirma ter sido coagida. “Fui ameaçada de morte. Tive que me disfarçar com perucas e trocar de carro para não me acharem”, explica. A suspeita é de que pessoas identificadas como “laranjas” fizessem denúncias para o Disque 100 do Departamento de Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos.

O caso era encaminhado para o Conselho Tutelar de Riozinho fiscalizar e conselheiros confirmariam maus-tratos ou falta de cuidado dos vulneráveis, mesmo que eles não tivessem acontecido. A assistência social da prefeitura também validava a denúncia. Depois disso, era feito o encaminhamento da suposta irregularidade para o Ministério Público, que pedia a destituição do poder familiar à Justiça.

Normalmente as crianças eram encaminhadas para abrigos e pessoas interessadas faziam o apadrinhamento afetivo delas e mais tarde solicitavam a adoção, por estarem apegadas aos meninos e meninas. Assim passavam na frente da fila. Em Porto Alegre, por exemplo, o tempo para adotar uma criança leva, em certos casos, quatro anos. Em Riozinho, o processo era encurtado para seis meses, em alguns casos, feito dessa forma.

A psicóloga afirma que as famílias passavam a ser ameaçadas e nunca mais viam os filhos. Em 2008, a calçadista Cristina Rosângela Souza, 30 anos, estava servindo o almoço quando uma assistente social e um conselheiro tutelar chegaram na sua casa na localidade de Morro Azul e levaram os seus filhos de 4 e de 3 anos na época. Ela estava grávida de outro menino, hoje com 7 anos, e não conseguiu impedir que ambos fossem embora. “Eles gritavam e eu fiquei chorando. Disseram que eu não podia criar eles porque não tinha dinheiro. Mas minha família me ajudava”, declara.

A mãe e o irmão de Cristina tentaram obter a guarda dos meninos, mas eles foram para um abrigo. Por dois meses, ela conseguiu visitá-los, mas hoje não sabe para onde foram. “É uma ferida que não vai sarar. Todos os dias a gente pensa: será que eles estão bem?”, questiona. Apegada ao caçula para suportar a falta dos mais velhos, afirma que sempre teve medo que lhe tirassem dos seus braços o filho que restou.

Outras mães e pais também convivem com o mesmo sentimento. “Chama atenção que ninguém registrou ocorrência e só ficamos sabendo pela imprensa”, ressalta a delegada regional Elisangela Melo Reghelin, que investiga o caso. Ela já começou a ouvir algumas pessoas e observa que, por enquanto, não há nada confirmado. “O que está se questionando é se teria havido ato de abuso de poder por parte de conselheiros tutelares ou assistentes sociais, na origem dos documentos que embasaram um processo judicial (para a retirada das crianças). A adoção é legal e seguiu os trâmites legais".

Para o prefeito de Riozinho, Airton Trevizani da Rosa, as denúncias são fruto de vingança de pessoas contrárias a sua gestão. “Os casos têm processo montado com documentação e autorização do juiz”, justifica.

"Boatos ou não, os casos serão apurados"

Confirmadas as supostas irregularidades envolvendo retirada de crianças de famílias e adoção ilegal, os crimes caracterizados seriam gravíssimos, conforme o promotor de Justiça Leonardo Giardin de Souza, da comarca do Ministério Público de Taquara. Além de se tratar de um assunto delicado, envolvendo família e menores de idade, que exige sigilo, detalhes sobre a investigação iniciada em dezembro passado não podem ser revelados para não atrapalhar a obtenção de outras informações e provas.

Ele afirma que, pelo menos um dos casos “foge do padrão da normalidade” dos procedimentos utilizados e isso implica em necessidade de verificação. O promotor ressalta que está levantando documentos e dados de outras fontes para verificar se a forma como ocorria a retirada das crianças das famílias e a adoção eram feitas dentro da lei ou se existia um esquema envolvendo um ou vários órgãos. “Não temos como afirmar se os relatos são verdadeiros. Tem muito boato e existem relatos que indicam irregularidades e situações que chamam a atenção e que têm de ser apuradas”, diz.

Dois conselheiros tutelares que seriam suspeitos de atos irregulares pediram exoneração. Restou o coordenador Cláudio Pires. Ele disse que entrou para o Conselho de Riozinho em julho de 2014 e os casos teriam ocorrido antes desta data. “Da minha parte, não tenho competência para investigar os conselheiros. O que o MP solicita de documentos, eu forneço”, ressalta. Por lei, o Conselho Tutelar deveria ter cinco integrantes, mas hoje conta apenas com Pires.

A presidente do Conselho Estadual da Criança e do Adolescente (Cedica) Marta Gomes esclarece que a entidade não pode interferir nas demandas municipais, mas acompanha as investigações do MP. O Cedica também pediu esclarecimentos ao município.

Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895