Grupo de nadadores refaz trajeto de fuga dos presos pelo Guaíba da Ilha do Presídio até Porto Alegre

Grupo de nadadores refaz trajeto de fuga dos presos pelo Guaíba da Ilha do Presídio até Porto Alegre

Local construído no século 19 foi utilizado como espaço de detenção de presos políticos durante o governo militar

Taís Teixeira

Três nadadores completaram o trajeto

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A Ilha do Presídio, ou Ilha das Pedras Brancas e Ilha da Pólvora, está situada no Lago Guaíba, no Rio Grande do Sul. Embora esteja em Porto Alegre, o município de Guaíba tem a concessão para administrá-la desde 2012. Ela fica distante cerca de 2,5 quilômetros da Capital, partindo da Praia do Cachimbo, na zona Sul. O local tem uma trajetória interessante, sendo utilizado de forma estratégica em muitos períodos históricos do RS. O mais conhecido deles é o que dá seu nome. A ilha foi transformada em presídio na década de 1950. Na tentativa de fugir, muitos se arriscavam, tentavam escapar a nado e acabavam morrendo. Esse trajeto foi feito neste domingo (3) pelo grupo de nadadores do Projeto Nadando pelos Cartões Postais, que tem o objetivo de conhecer locais turísticos, ou com potencial turístico, a nado. Dos quatro, três completaram a travessia .

O grupo é formado por Gustavo Brenner, Marcio Weber, Maurício Bohn, Wilmar Araújo e Francismar Siviero, que coordena o projeto, nascido em 2019. Siviero, que também nada, mas que neste domingo ficou dando apoio do bote, comenta que a ideia é desenvolver o nado em áreas abertas que estejam próximas de ilhas. “Existem locais muito bonitos e que poderiam ser usados para o turismo, como é o caso dessa ilha”, destacou. É a segunda vez que o grupo faz a travessia. 

A partida

O domingo amanheceu nublado, com chuva fraca em pontos isolados e sem vento. Na praia do Cachimbo, que fica na rua Pão de Açúcar, na Vila Conceição, na zona Sul de Porto Alegre, o grupo partiu por volta das 10h. Sem chuvas e ventos fortes, o percurso de bote durou no máximo em dez minutos. Ao chegar mais próximo da ilha, pode-se observar as grandes pedras que contornam o local, abrigando no seu interior uma vasta vegetação em harmonia com as edificações que sobreviveram ao passar dos anos. É possível avistar as guaritas Norte e Sul, que estão em regiões mais altas, um pouco deterioradas, mas não o suficiente para não serem facilmente identificadas. Um trapiche de madeira ainda está de pé, mas muito desgastado.

O grupo aproximou o bote de uma área e desceu em frente a uma escadaria praticamente intacta. A exuberância das edificações chama a atenção, mas não apenas isso: é visível a solidez das estruturas que se mantêm em pé, com poucas áreas totalmente destruídas. Tanto que é possível identificar alguns espaços a partir dos detalhes ainda presentes. Na entrada principal, ainda estão partes da grade muito bem presas às paredes. No corredor, a janela ao fundo ainda com grades inteiras atrai o olhar. Esse mesmo corredor era caminho para a galeria com oito celas, quatro de cada lado. Cada uma tinha um quadrado no teto muito pequeno por onde entrava a luz do sol e também a água da chuva. Apenas a primeira à esquerda era maior e tinha grades, enferrujadas, mas ainda assim presas. Também havia um buraco grande no chão, que parecia esgoto. "Acredita-se que a privada ficava nas celas”, comentou Siviero.

Na ligação com outro prédio, a estrutura parece ter sido mais destruída. A ideia que passa é que se trata de uma edificação de dois andares. As paredes de cima ainda tinham azulejos, com pequenas escoriações, que permanecem nas paredes. As grades das basculantes também estavam junto às grandes janelas, apesar de desgastadas. O ambiente remete a uma cozinha, mas está a céu aberto, provavelmente o teto foi destruído. Todavia, um dos aspectos que mais se destaca não é de época. As paredes estão tomadas de pichações, o que indica que a visitação é uma prática. Isso se confirma na parte inferior, cujo cenário que se vê assusta. Meia parede está coberta por sacos grandes de lixo, o que indica que pessoas vão até o local. “Muita gente vem aqui, faz churrasco e não limpa”, disse Siviero. Alguns sacos contêm terra e restos de vegetação. Outras são sacolas de mercado, com garrafas de cerveja.

Na mesma área, há uma churrasqueira improvisada e placas com aviso para não deixar lixo no local, mas não é o que se vê. Além disso, uma lixeira, garrafas pets, embalagens de alimentos e até um capacete estão no local, demonstrando abandono tanto no aspecto de limpeza quanto no aspecto de preservação. “Eu chamei pelo WhatsApp o secretário Municipal da Cultura de Guaíba, Ivo Schergl Jr, para conversar sobre a possibilidade de arrumar o local para ser um espaço turístico, mas ele não respondeu”, disse o coordenador. 

A travessia

Os quatro nadadores vestiam roupas à base de neoprene, que mantêm a temperatura corporal por um período de tempo, e usavam touca de natação, óculos, pé de pato e sinalizador. “É importante se quisermos descansar ou para sermos vistos”, explicou Bohn, um dos nadadores. A água estava em torno de 20 graus, a chuva tinha parado, não havia sol e nem vento. Todos entraram na água juntos e começaram o trajeto. Cerca de 15 minutos depois, o primeiro nadador retornou ao bote. Brenner disse que sentiu muito frio e preferiu respeitar os limites do corpo. “Sou muito magro e naturalmente sinto frio”, disse, enquanto se aquecia tomando café preto.

Os demais seguiram o percurso. Na maioria das vezes, nadavam juntos. Algumas vezes mais espaçados, mas sempre próximos. Quando completaram 30 minutos, o vento ficou mais forte. “Ofereceu mais dificuldade porque tem que levantar mais o rosto e é mais cansativo”, salientou Weber. Os três completaram o circuito em um hora. Na chegada, brincaram dizendo que “houve uma baixa no caminho”. Como todos nadam há pelo menos cinco anos em áreas abertas, eles têm experiência, mas destacam que é preciso preparo físico para praticar o esporte. Bohn, Weber e Brenner ressaltaram que integrar o projeto é uma oportunidade de unir esporte, natureza e fazer amigos. Para Araújo, além disso, ajudou na saúde. “Eu tinha arritmia e há dez anos pratico esse esporte e melhorou muito, até remédio não tomo mais”, contou.

História

Segundo informações do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado (IPHAE), asconstruções da Ilha do Presídio foram feitas entre 1857 e 1860, e originalmente sediaram a Quarta Casa da Pólvora de Porto Alegre, sendo utilizada pelo Exército até 1930. A partir de 1940, a Ilha passou a ser administrada pelo Estado, que usou o local como laboratório de pesquisa animal entre os anos de 1947 a 1948. A ilha foi adaptada para funcionar como presídio em 1950, recebendo inicialmente menores de idade, jovens com delitos leves, pessoas com problemas mentais. Depois do golpe militar de 1964, o espaço foi transformado em presídio para os opositores do regime. .

Estima-se que mais de 100 pessoas tenham sido presas no local por motivos políticos entre as décadas de 1960 e 1970. Relatos dão conta de que muitos presos tentaram fugir do presídio, mas acabaram morrendo nas águas do Guaíba. Uma história que ficou conhecida foi dos presos Júlio de Castilhos Pettinelli e Ettore Capri, que trabalhavam na cozinha e tentaram escapar em grandes panelas, amarrando uma na outra. Eles conseguiram fugir, mas quando chegaram a Porto Alegre, a polícia estava esperando. Outra foi publicada no Correio do Povo do dia 1º de setembro de 1966, quando o corpo de um preso foi encontrado na água. A ilha do presídio foi oficialmente reconhecida como Patrimônio Histórico do Estado e tombada pelo IPHAE em 2014. O processo foi direcionado pela Comissão Estadual da Verdade.


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