"Uma parte da última coleta que fizemos na Antártica, no ano passado, estava no laboratório de preparação de fósseis, que fica no prédio anexo e não foi atingido", contou a paleontóloga Juliana Sayão, que coordenou as últimas três expedições à Antártica e passou a madrugada de segunda-feira, praticamente em claro, vendo o museu arder em chamas. "Mas fora isso, tudo indica que perdemos boa parte do material, dez anos de pesquisa. Não tenho palavras."
• Imagens mostram interior destruído do Museu Nacional
A pesquisa de fósseis pré-históricos na Antártica é especialmente complexa por conta das condições climáticas. "Só para chegar na Antártica já é uma dificuldade enorme, poucos grupos no mundo inteiro escavam lá, que é uma área muito rica em fósseis", explicou a pesquisadora. "O material que nosso grupo coletou lá durante esses anos serviria de base não apenas para as nossas pesquisas, mas também de outros países sobre como era a Antártica no passado." Na primeira parte do projeto Paleoantar, a equipe do paleontólogo Alexander Kellner, atual diretor do museu, passou 37 dias acampada na ilha de James Ross.
Embora a ilha fique na Península Antártica, ela é bem distante da ilha Rei George, onde ficava a Estação Brasileira que pegou fogo em 2014. Por isso, a logística da expedição era ainda mais complexa, uma vez que os pesquisadores tinham que ficar acampados. Ainda assim, o grupo conseguiu escavar nada menos que uma tonelada e meia de troncos de árvores pré-históricas - um deles com mais de quatro metros de comprimento, que estava em exibição no Museu Nacional.
• MEC vai liberar R$ 10 milhões para ação emergencial no Museu Nacional
Numa das últimas incursões ao continente, o grupo levou mais de sete toneladas de equipamentos e mantimentos para ficar acampado durante 45 dias. As pesquisas brasileiras na Antártica foram cruciais para revelar que, sob a camada de, em média, três quilômetros de gelo que recobre o continente, estão preservadas as provas fósseis de que, no passado, a região já abrigou uma floresta tropical frondosa e animais gigantescos. "Por conta das pesquisas, a gente sabe que a Antártica não era coberta de gelo como é hoje, pelo contrário, era uma vasta floresta tropical", explicou Juliana. "E era banhada por um mar de extrema riqueza de animais."
• Após incêndio no Rio, governo do RS avalia situação dos museus gaúchos
Além disso, segundo a pesquisadora, os estudos ajudaram a estabelecer em que a Antártica se separou da América do Sul e a entender as mudanças climáticas em curso hoje no planeta. Durante boa parte do Cretáceo (144 a 65 milhões de anos atrás), e até há 50 milhões de anos, um clima bem ameno predominou na Antártica e favoreceu o crescimento de grandes árvores, com folhas de até 10 centímetros, e portanto, de animais, entre eles dinossauros e répteis igualmente grandes, e, posteriormente, mamíferos marsupiais.
Atualmente, a média de temperatura registrada no verão é de 35 graus Celsius negativos no continente e 0 grau Celsius na península, o que torna a região praticamente inabitável. No passado, no entanto, não era assim. A Antártica era unida aos demais continentes, na chamada Gondwana, e, por isso, seu clima era temperado. A separação só se configurou há 32 milhões de anos, quando a corrente fria que se dispersava pelo Oceano Pacífico passou a circundar a Antártica, isolando-a e resfriando-a.
• Especialista compara perda do fóssil "Luzia" com destruição da Mona Lisa
No entanto, durante boa parte de sua existência, o continente era verde e cheio de espécies animais. As últimas árvores só desapareceram há 4,5 milhões de anos. O continente era habitado por dinossauros e outros animais gigantescos. No mar, viviam verdadeiros monstros marinhos, como ictiossauros, plesiossauros e mosassauros. Os plesiossauros eram répteis gigantes e carnívoros de pescoço longo chegavam a ter, em média, 5 metros de comprimento.
O mais antigo fóssil de plesiossauro já achado na Antártica foi descoberto pelo grupo de Kellner; tem 80 milhões de anos. "Perdemos não apenas o material fóssil em si, mas o conhecimento de uma região sobre a qual ainda se sabe muito pouco."
AE