JJ 3054, dez anos: Dor até para quem está de fora

JJ 3054, dez anos: Dor até para quem está de fora

"Essa gente tinha muitos sonhos e pesadelos com as vítimas"

Marco Aurélio Ruas

"Essa gente tinha muitos sonhos e pesadelos com as vítimas"

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A tragédia mudou a vida do advogado Eduardo Barbosa. Ele não tinha nenhum familiar no voo, mesmo assim, tanto sua vida profissional quanto pessoal acabaram sendo envolvidas. Exatos 30 dias após o acidente, uma cliente perguntou se ele não tinha vontade de ir na missa em memória do irmão, que foi uma das vítimas. No local, Barbosa seria apresentado aos pais que precisavam de um advogado para tratar do caso. “Depois da missa, vi aquele casal de velhinhos e ficamos conversando até tarde. No outro dia, fui à casa deles. Ali assinei o contrato de procuração e honorários. A partir daquele dia entrei nesse assunto de acidente aéreo.”

A partir dessa relação, a carga emocional e o conteúdo dramático do caso ficaram evidentes. “A gente acaba ingressando na vida deles. Me mostraram fotos do filho, de quando ele era criança, contaram toda a história dele, por várias vezes choravam os dois”, conta. Porém, aquela seria apenas sua primeira experiência ao longo dos dois anos que demoraram para as indenizações serem resolvidas. Pelo lado jurídico, outros desafios se postavam à frente. “Num primeiro momento não tinha o que fazer. Acidente aéreo não é uma coisa que acontece todo o dia. Foi isso o que eu comecei a procurar, pesquisar e me informar.”

Não demorou muito até ele se associar ao escritório de advocacia americano Masry&Vititoe. “No decorrer de duas ou três semanas, um colega me falou que tinha um escritório americano que estava em Porto Alegre querendo patrocinar uma ação no caso da TAM.” O escritório esteve envolvido na maior indenização da história dos EUA, de 333 milhões de dólares, devido à contaminação da água de uma pequena cidade do interior americano. “Como havia um cidadão americano, que era executivo de um banco e estava no voo, eles entendiam que era cabível ação nos EUA, com a família desta vítima.” A proposta dos americanos era de que os outros familiares se agregassem na ação. As reuniões entre Barbosa e os advogados estrangeiros se tornaram quase diárias durante uma semana. “Tive certa afinidade com eles. Então, propus que eu conhecesse o escritório deles”. Barbosa frequentava um curso de pós-graduação e uma das colegas dominava o inglês, que era uma dificuldade dele.

O advogado então considerou a possibilidade de convidá-la a participar do caso. O relacionamento foi mais além. Com a ação tomando conta de suas rotinas, ambos se viram cada vez mais próximos. A convidei, inclusive, para ir na viagem aos EUA. “O relacionamento começou naquele período e um ano depois me casei com ela e hoje temos um filho, de sete anos”, salienta.

Quatro meses depois do acidente, Barbosa passou a viajar por todo o país visitando familiares e apresentando o caso a eles. “Acabei me envolvendo bastante com várias famílias. Dessas 199 vítimas, 77 optaram pelo ingresso nos EUA”, lembra. Mais marcante do que as viagens, somente as reuniões da Afavitam. Ela ocorriam pelo menos duas vezes por mês, normalmente em um hotel de São Paulo. “Eram praticamente 200 pessoas reunidas. Começava sexta-feira à noite e terminava domingo. Sempre tinha pauta, em todos os horários. Tudo muito organizado. E tratavam de vários assuntos, como indenizações, questões jurídicas, de amparo psicológico, o inquérito policial. Eles tinham mais atenção em punir do que debater sobre ressarcimentos”, relata. Nestes dois anos, praticamente todos os finais de semanas foram dedicados às reuniões. “Havia um tremendo de um auditório. Tu abria a porta e era um outro mundo. Um corredor imenso, com as paredes tomadas por fotos, faixas e cartazes. Todos vestiam camisetas brancas com as fotos de seus familiares perdidos. Todos fardados. Isso é uma coisa que chamava muito a atenção”, ressalta. Os familiares se revezavam ao microfone e, entre os encaminhamentos, também haviam relatos emocionados sobre as vítimas. “Ali começava a rotina deles, com muito choro e drama. Muitos pegavam o microfone e contavam seus problemas pessoais, seus sonhos. Essa gente tinha muitos sonhos e pesadelos com as vítimas”, comenta Barbosa.

Após os dois anos envolvido de forma incessante com o caso, Barbosa considera os acordos indenizatórios a maior lição obtida da tragédia no viés jurídico. Para resolução do tema, as câmaras indeniza-tórias criadas pela Defensoria Pública de São Paulo foram consideradas fundamentais para agilizar e simplificar o processo. “Acabaram sendo adotadas no caso da Air France, que foi um sucesso também”, diz o advogado, que trabalhou em outros acidentes, como o mencionado Air France, o Costa Concordia e, atualmente, o da Chapecoense. “O valor da indenização não traz ninguém de volta, mas ao menos vira a página. Se tu recebe e finaliza aquele processo, tua vida recomeça.” Segundo Barbosa, o aspecto emocional da tragédia do JJ 3054 foi uma lição pessoal e profissional. “Você não pode ser somente um advogado e tratar com eles um assunto jurídico, dar as costas e ir embora. Não existe isso. O envolvimento é direto. Sei das histórias, de sonhos e pesadelos”, conclui.

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