Mirar o céu para mudar os horizontes de crianças negras

Mirar o céu para mudar os horizontes de crianças negras

Na semana da Consciência Negra, cientista conta como usa a astronomia para transformar a vida de estudantes

Christian Bueller

Astrofísico Alan Alves Brito criou o projeto Akotirene Kilombo Ciência para os conceitos de astronomia à população quilombola no Rio Grande do Sul

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Em um mundo ideal, todas as crianças teriam acesso à escola. No contexto real, há 530 mil meninos e meninas de 7 a 14 anos fora das salas de aula no Brasil. Deste total, 330 mil são negros, o que representa 62%, segundo a Unicef. Este é apenas mais um fator que exemplifica as dificuldades que a etnia sofre há muito tempo. No ano do cinquentenário do Dia da Consciência Negra, em 20 de novembro, a proposta por uma educação mais inclusiva e democrática integra os debates, na busca de quebra de correntes que persistem desde a escravidão.

O racismo e a pobreza, sustenta o Unicef, andam de mãos dadas historicamente. Vinte e seis milhões de crianças e adolescentes brasileiros vivem em famílias de baixa renda. Representam 45,6% do total de crianças e adolescentes do país. Destes, 17 milhões são negros. Entre as crianças brancas, a pobreza atinge 32,9%. Já entre as negras, 56%. São dados que também geram impacto no acesso às universidades. Segundo o mais recente Censo de Educação Superior do Inep, o Brasil tem mais de 8,6 milhões de pessoas matriculadas em instituições de ensino superior, mas apenas 613 mil se declararam pretas, o que corresponde a 7,12% do total.

Um exemplo bem-sucedido de contraponto a essa realidade nasceu na Bahia e teve como pano de fundo um lugar, de fato e de direito, verdadeiramente democrático: o céu. Era para onde o então menino negro Alan Alves Brito, gostava de fitar os olhos. “Eu morava em Feira de Santana, o céu era bonito, sem prédios, sem poluição sonora. Aos oito anos, teve a passagem do cometa Halley e todo aquele alvoroço. A astronomia sempre esteve presente na minha vida”, conta o hoje astrofísico, pesquisador e professor do Instituto de Física da Ufrgs e diretor do Observatório Astronômico da universidade, aos 43 anos. Estudante de escolas e universidades públicas, bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ), Brito passou a dar aulas, carregando um conceito de que a educação é uma importante tecnologia social. “Não há como transformar as estruturas do Brasil, do ponto de vista da raça, sem pensar em educação”, conta.

Com prêmios na bagagem, Brito veio para o Rio Grande do Sul, um dos locais onde trabalhou e passou em um concurso na Ufrgs. “Além dos projetos de pesquisas e de extensão voltados às áreas de Física e Astrofísica, me interessei em ampliar os horizontes, em projetos de cunho étnico-raciais e de gênero. Muitos destes conhecimentos não chegam a comunidades periféricas”, reflete. A partir daí, surgiu o projeto Akotirene Kilombo Ciência, em que o professor decidiu levar a astronomia à população quilombola. Primeiramente direcionados às meninas, as atividades destacavam o empoderamento feminino a partir das ciências, mas a iniciativa ampliou aos garotos da comunidade quilombola Morada da Paz, no município de Triunfo.

“Surgiu de uma necessidade de dialogar por uma outra perspectiva, intercultural, fazer uma troca, compartilhando saberes. E a com a ajuda do céu, o meu lugar preferido, onde encontramos diferentes narrativas de diversos povos”, explica Brito. A pandemia atrapalhou um pouco os planos, mas os encontros seguiram. “Além disso, conseguimos, a partir de outro edital, iniciar um trabalho na escola Liberato Salzano Vieira da Cunha, na zona norte de Porto Alegre, se unindo a outras comunidades quilombolas de forma remota”, relata.

Se o céu é o limite, o infinito é o que espera Alan Brito na sua trajetória. “A ciência foi negada a muitos meninos e meninas negras. Mas a ciência pode transformar a nossa vida. Para isso, ela precisa ser diversa. Com mais possibilidades de ideias e vivências, que são únicas, só temos a ganhar”, ressalta o astrofísico.

Lei de Cotas será revista em 2022

Desde 2012, a lei nº 12.711, a chamada Lei de Cotas, reserva 50% das vagas das universidades e institutos federais de Ensino Superior a estudantes de escolas públicas. Dentro disso, incluiu alunos de baixa renda, indígenas, pessoas com deficiência, pretos e pardos. O tema gera polêmica desde então, mas milhares de estudantes que jamais conseguiriam chegar ao Ensino Superior conquistaram o diploma como cotistas. É o caso de Luana Daltro, que se formou em Relações Públicas pela Ufrgs desta forma. “As cotas são uma oportunidade de sonhar. Possibilitam que pessoas negras pensem que em ser aceitos em todos os lugares que um dia lhes foi negado. Uma política de acesso que muda a narrativa da nossa história, de reparação histórica com homens e mulheres negras deste país. Uma fonte de esperança”, diz.

Para Luana, o sistema de cotas contribuiu para que diminuísse o estigma sobre a população negra. “Na sociedade, sempre se associou coisas negativas aos negros. A gente cresce com uma identidade fragmentada, sem conseguir acreditar na nossa capacidade, chegamos a duvidar de nossa intelectualidade. Mesmo que tivesse boas notas na escola, nunca acreditamos que podemos chegar à faculdade”, relata. A relações públicas destaca o impacto que o conhecimento adquirido durante o curso pode impactar não só a ela mesma, mas também à sociedade, tanto como profissional quanto indivíduo. “Tomara que muitas pessoas possam entrar e se manter na universidade pelas cotas”, conclui.

Em 2022, a Lei de Cotas será revisada pelo Congresso Nacional, como já previa ao ser sancionada dez anos antes, e poderá ser mantida, ampliada ou até extinta. Para o professor do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS), doutor em Educação e pós-doutor em Sociologia, Gregório Grisa, ações afirmativas em questões raciais, como as cotas, são decorrência de décadas de lutas do movimento negro. “A reparação histórica é um elemento que justifica o sistema de cotas, mas existem muitos outros. Um deles é a realidade contemporânea. Em várias situações como saúde, meio ambiente, segurança, há uma estrutural desigualdade racial embutida”, lembra.

Temática também está na formação

José Rivair Macedo, que leciona a disciplina de Educação das Relações Étnico-Raciais e Ensino de História e Cultura Afrobrasileira, Africana e Indígena do curso de Licenciatura em História da Ufrgs, ressalta a importância de se abordar a temática racial na formação dos professores. No Rio de Janeiro, Lavini Castro criou a Rede de Professores Antirracistas. A partir de um curso on-line gratuito, 700 colegas receberam certificado e Lavini ganhou um prêmio na área de Educação. “Hoje, temos quase 4 mil. É um espaço colaborativo em que os professores contam sobre o seu contexto”, explica.


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