Pandemia aumenta a fome entre indígenas

Pandemia aumenta a fome entre indígenas

Falta de alimentos é o principal problema enfrentado pelos povos tradicionais no RS

Giullia Piaia

Insegurança alimentar assola aldeias indígenas

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Foi com dificuldade que o veículo do Correio do Povo chegou até a aldeia Tekoa Anhentegua, no bairro Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre. A estrada sem manutenção exigiu toda a habilidade do motorista. No fim do Beco dos Mendonças estava a entrada de uma comunidade esquecida pelo poder público, como sente o cacique José Cirilo Pires Morinico, líder dos Mbyá-Guarani.

Se a retomada pós-pandemia já começa a se manifestar para parte da população brasileira, com a reabertura integral do comércio e retomada da economia, não se pode dizer o mesmo para a população indígena do Estado. Comunidades historicamente negligenciadas, as aldeias ainda estão a sentir os impactos da crise sanitária. O problema não é exclusivo dos indígenas do Rio Grande do Sul, mas do País. A Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal elaborou um parecer acerca dos efeitos da pandemia sobre povos indígenas, no qual frisa a maior vulnerabilidade destas etnias ao contágio por infecções respiratórias.

“Essa acentuada vulnerabilidade dificulta o enfrentamento do processo epidêmico. As condições gerais dos territórios tradicionais e seus respectivos contextos socioeconômicos têm pesos decisivos na maior exposição ao novo coronavírus, e são um motor para sua expansão”, diz o documento. Algumas das áreas reservadas para os povos indígenas são incrustadas nas cidades e ambientalmente devastadas, em espaços insuficientes para a prática da agricultura. Outras são distantes, mas enfrentam uma série de dificuldades de acesso e comunicação.

Até o fim de março, o Ministério da Saúde informava que apenas 46,4% da população de povos tradicionais havia sido vacinada contra a Covid-19. O consenso entre especialistas é a necessidade de imunizar ao menos 90% da população para conter a pandemia. Na Tekoa Anhentegua, quase 30 dos 120 moradores foram contaminados, de acordo com o cacique, sendo que uma criança segue internada por conta da doença.

Mas o contágio pela doença é apenas uma das questões com a qual os indígenas tiveram que lidar durante a pandemia. Problemas que já eram enfrentados pelos povos tradicionais, foram agravados pela crise. “Estamos pedindo socorro para as autoridades. Não temos alimento, passamos fome. Os indígenas sempre foram abandonados, mas piorou com a pandemia e ainda não melhorou. Nós somos seres humanos, temos que nos alimentar”, relata o cacique Cirilo. O aumento da fome e da insegurança alimentar é um dos pontos chaves do relatório apresentado pelo Grupo de Trabalho sobre Implementação de políticas públicas nas comunidades indígenas no Rio Grande do Sul, durante e após a pandemia de Covid-19. “As carências alimentares e nutricionais já existiam antes para as cerca de 7.500 famílias indígenas que vivem no RS, mas foram profundamente agravadas pela pandemia. É um reflexo da política de isolamento social e das restrições de livre circulação, porque isso prejudica a dinâmica de troca entre as aldeias e a venda de artesanato, que é a principal fonte de renda de boa parte das comunidades indígenas”, explica Lucas Wegner Medronha, um dos autores do relatório, assistente especial da Secretaria Estadual de Igualdade, Cidadania, Direitos Humanos e Assistência Social (SICDHAS) e conselheiro no Conselho Estadual dos Povos Indígenas.

Cacique Cirilo, líder dos Mbyá-Guarani, diz que os indígenas foram abandonados pelo poder público. Foto: Mauro Schaefer

O grupo ligado ao governo estadual também aponta a insuficiência das políticas públicas para suprir as necessidades dos indígenas, seja no fornecimento direto de alimentos, por meio de cestas básicas, seja no fomento às atividades de subsistência, ou mesmo deficiências nas formas de implementação das ações de assistência social. “A SICDHAS distribuiu cestas básicas aos indígenas em 2021, mas elas foram insuficientes e irregulares”, constata Medronha.

Ademais, os indígenas do Rio Grande do Sul sofreram com seca que atingiu o Estado, o que impediu com que as próprias aldeias pudessem mitigar a situação. “Também há a falta de acesso das famílias indígenas aos programas de proteção social, como Bolsa Família, auxílio emergencial, aposentadoria por idade”, completa o assistente. A dificuldade em acessar esses direitos se dá por diversos motivos. Algumas portarias suspenderam os processos de averiguação e revisão cadastral e muitas pessoas ficaram impedidas de acessar os programas. “Isso agrava e reproduz o ciclo da pobreza”, conclui Medronha.

O relatório alerta que a situação deve persistir nos próximos meses e traz algumas sugestões de políticas públicas para promover a segurança alimentar dos indígenas até que a crise socioeconômica e sanitária esteja estabilizada. “A ação é de distribuição de uma cesta de alimentos com produtos perecíveis e não perecíveis, com itens que respondam a dieta tradicional das comunidades e que, ao mesmo tempo, assegure equilíbrio nutricional para estabelecer um padrão saudável de alimentação, em quantidade e qualidade”, escreveu o grupo. O documento também sugere a ampliação de R$ 0,50 para R$ 2,50, no orçamento da Secretaria da Educação, do valor da complementação da alimentação escolar aos indígenas. “Durante este período, outras políticas públicas que visem estimular a produção de alimentos para autoconsumo, por exemplo, podem ser acionadas ou fortalecidas junto a todas as famílias e aldeias que tenham vontade e habilidade para tal.”

Essas seriam ações prioritárias emergenciais, visto que a fome é o principal problema enfrentado nas aldeias. Mas não foi o único mencionado pelo cacique Cirilo. Questões de habitação e território também assolam as comunidades de povos tradicionais. Na Tekoa Anhentegua, não há infraestrutura adequada. Se na estrada que leva à aldeia já se percebe a falta de manutenção, a situação se deteriora dentro da aldeia. Não há saneamento básico, nem água encanada, casas estão caindo e alagam com a chuva. No Rio Grande do Sul, o decreto 42.808, de 2004, institui o Programa Estadual de Habitação Indígena, destinado a apoiar, assessorar, projetar e promover a produção de unidades habitacionais destinadas à população indígena proveniente das Tribos Guarani e Kaingang. Outro decreto do mesmo ano, institui o Programa de Inclusão Indígena nas Políticas Públicas. Porém, até o momento, nenhum deles foi implementado. “É muito importante que sejam implementados e, além disso, que se realize um diagnóstico do déficit habitacional e de saneamento dessas comunidades. A partir do diagnóstico e da implementação dos programas, poderia se mitigar ou até superar essa questão”, observa Medronha.

A não demarcação das terras indígenas é uma preocupação conjunta de todos os caciques. No mês passado, durante encontro de caciques e lideranças Mbyá-Guarani do RS, realizado na Tekoa Anhetengua, os indígenas se manifestaram contra a paralisação das demarcações de terras indígenas, o Projetos de Lei (PL) 191/2020, que libera a mineração em terras indígenas, contra a tese do “marco temporal”. “Foi parado e ninguém mais lembra da questão da demarcação”, lamenta Cirilo, que também é cacique geral da etnia no Estado. “No RS existem 25 aldeias indígenas estabelecidas sobre áreas do patrimônio e de autarquias do Estado, 10 pendentes de regularização adequada e cujo futuro é incerto, trazendo angústia e insegurança aos indígenas. Ademais, diversas outras comunidades aguardam o andamento de processos de identificação e delimitação no âmbito da FUNAI, referentes às suas reivindicações de território tradicional, processos estes que se encontram aguardando desfecho há bastante tempo”, escreveu o Grupo de Trabalho em seu relatório.

Outras questões nos âmbitos da educação, da comunicação e da saúde são reivindicadas pelos indígenas e fazem parte do relatório. “Estamos buscando trazer à tona os problemas já apresentando as soluções. Esperamos que os órgãos responsáveis em todos os níveis dos federados se comprometam a não fazer da pauta indígenas uma pauta secundária ou terciária. Que se valorize a cultura material e imaterial dos povos originários. Afinal, eles estavam aqui muito antes dos portugueses chegarem e eles merecem e têm direito a uma vida digna”, finaliza Medronha.


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