Porto Alegre tem 70 mil famílias em situação de extrema pobreza

Porto Alegre tem 70 mil famílias em situação de extrema pobreza

Prefeitura utiliza informações do CadÚnico para estimar população necessitada na Capital

Felipe Faleiro e Taís Teixeira

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Aumentou no Brasil o número de pessoas que não têm ou têm pouco o que comer, conforme o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (2º Vigisan), apresentado no último mês de junho. Segundo o documento, divulgado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), 33,1 milhões de brasileiros estão com insegurança alimentar grave, e, em qualquer grau, o somatório é de 125,2 milhões de brasileiros. Com o aumento de 14 milhões de pessoas em relação ao índice anterior, de 2020, e mais da metade da população nacional com este sofrimento, as soluções não são simples, tampouco céleres.

“Nós voltamos para o mapa da fome e isto é lamentável para a 10ª economia do mundo, além do maior produtor de alimentos do planeta. É uma verdadeira desgraça, acompanhada de uma falta de políticas públicas mais sistematizadas, mais planejadas e mais pensadas”, afirma o presidente da Central Única dos Trabalhadores no Rio Grande do Sul (CUT-RS), Amarildo Cenci. Ao mesmo tempo, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), no mundo todo, 17% dos alimentos disponíveis aos consumidores nos mercados, restaurantes e casas acabam no lixo, e, a cada ano, por volta de 14% dos alimentos produzidos são perdidos entre a colheita e a venda no varejo. Esta discrepância desequilibra ainda mais um problema que já é crônico e foi agravado pela pandemia.

“A Covid-19 veio a piorar uma situação que vinha existindo, revelando o quão dramática é a situação das pessoas que não têm o que comer. Há milhares de pessoas, crianças, idosos, que não comem mais do que uma vez por dia”, diz Cenci. Não há uma estatística direta do número de pessoas que passam fome em Porto Alegre, e, por isso, a Prefeitura utiliza números indiretos, como inscrições no CadÚnico, que tem 70 mil famílias em extrema pobreza na Capital.

“Mais recentemente, muita gente entrou no CadÚnico que não necessariamente está em pobreza ou extrema pobreza, mas principalmente por causa dos diversos benefícios”, afirma a coordenadora da Unidade de Segurança Alimentar (USA) da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS), Carolina Breda Resende. No último mês de março, foi sancionada uma lei que cria o Programa Municipal de Aquisição de Alimentos, nos mesmos moldes do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) do governo federal. Por meio dele, que ainda aguarda regulamentação do Executivo, a intenção é destinar alimentos para 222 entidades cadastradas e aprovadas pelo Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável (Comsans). Participam 50 produtores rurais do município, e estima-se que 37 mil pessoas serão beneficiadas. “Atualmente, operamos o PAA com recursos federais, e, até o final do ano, pretendemos atender 9,3 mil famílias listadas a partir das entidades que atendem famílias em situação de vulnerabilidade alimentar”, diz Carolina.

A ideia também é, segundo ela, que este programa possa beneficiar cozinhas comunitárias gerenciadas pela sociedade civil já existentes em Porto Alegre. “Estamos pensando no desenvolvimento de um programa para que o próprio município possa dar algum subsídio para estas cozinhas se manterem”, aponta. Existem, ainda, cinco restaurantes populares em Porto Alegre, que ofertam, somadas, 800 refeições diárias nos dias úteis. A unidade Centro (Rua Garibaldi, 461) oferece mais 200 aos sábados e domingos por dia. Há um sexto restaurante popular em processo de edital, que será construído na região das ilhas. Além disto, a Prefeitura afirma que houve um aumento do número de cestas básicas entregues pela Assistência Social e está entregando também o cartão-alimentação, que dá “mais autonomia para escolha dos produtos”, diz ela.

Seis anos na rua

Luismar, 59 anos, está em situação de rua há seis anos. Com problemas de visão, ele conta que precisa de um tratamento médico. Mas para quem não tem dinheiro sequer para se manter e precisa dos grupos que distribuem alimentos para ter acesso à alimentação, o problema ocular é apenas mais um. “Há dias que não como, em outros eu como, depende das doações”, relata. Trabalhando de catador para “conseguir um troquinho”, as ruas nem sempre foram a sua morada.

“Já trabalhei de carteira assinada com serviços gerais e tinha uma casa”, diz. A mudança veio com a separação, momento em que ele se desestabilizou e não conseguiu se recuperar. Agora, ele precisa de doações para conseguir se alimentar. Em frente ao Mercado Público, ele recebe o kit de alimento. Um dia a menos de fome. Depois, segue para as imediações doPaço Municipal, onde dorme nas paradas de ônibus que ficam no entorno.

Desempregado e vivendo de auxílio governamental

Valmor, 64 anos, está desempregado e se mantém com o Auxílio Brasil, de R$ 600,00. Morando em Alvorada, usa o valor para pagar contas básicas. Não sobra para a comida. “Preciso da ação dos voluntários para comer”, conta. Em alguns dias a fome fala mais alto, já que não consegue comer o suficiente para sentir saciedade.

Com um cachorro-quente e um copo de suco nas mãos, ele conta que trabalhava como vigilante, foi demitido durante a pandemia e não conseguiu mais se recolocar no mercado. No momento, ele espera para se aposentar por idade, já que tem 14 anos de contribuição. “Talvez a minha vida melhore um pouco com a aposentadoria, não sei”, comenta Valmor, sem expressar muita expectativa.

Amigos do Bem

Há 15 anos, a especialista de software Cláudia Rodrigues sai da área da tecnologia e assume outra função: preparar alimentos para repassar aos moradores de rua da Capital. Ela e cerca de 30 amigos formaram o grupo Amigos do Bem, destinado a recolher recursos, comprar gêneros alimentícios, preparar e levar para os pontos onde os mais vulneráveis costumam ficar. “Às vezes preparamos um lanche, como cachorro-quente, suco e um doce, outras vezes comida, como arroz com linguiça”, descreve.

Em dias de frio, cobertores e até um par de meias, luvas e touca são entregues. “Fazemos nossa parte para ajudar quem tem fome”, disse. Quando para com o carro e começa a preparar os kits, rapidamente surgem muitas pessoas. A comida termina logo. “São cerca de 100 kits de alimentação que terminam muito rápido”, ressalta. A periodicidade varia. “Geralmente, vamos nos dias mais frios”, relata.

R$ 30,00 por dia

José Luiz, 49 anos, é catador de recicláveis há três anos. Ganha em média R$ 30,00 por dia. O principal destino do dinheiro é o aluguel da casa em que mora, no bairro Azenha. Há um ano, buscou saber em quais locais os voluntários davam comida para complementar a alimentação. “Está muito difícil me manter e comprar comida suficiente”, reitera. Ele já trabalhou com lavagem de carro, em supermercados, mas há três anos foi desligado e não conseguiu mais outro trabalho formal, outra dificuldade sentida por José Luiz. “Desse jeito que tenho levado a vida”, diz, enquanto sai carregando três sacos grandes de recicláveis para vender.

Um novo caminho

Hermes pegou com gosto a marmita com massa e calabresa ofertada pelos voluntários no Viaduto da Conceição. Vestindo uma camisa polo branca, bermuda preta e carregando uma pasta, ele parecia voltar de um dia de trabalho. De fato, estava. Havia vendido rapaduras, durante todo o dia, em uma das sinaleiras que fica na avenida Salvador França, no bairro Jardim Botânico. Mas voltava de um curso de capacitação profissional oferecido pelo governo federal, que ajuda na inserção de ex-presidiários.

Hermes está há três anos em liberdade condicional, benefício que pode ser concedido a um condenado, que permite o cumprimento da pena em liberdade até total, desde que preencha as condições e requisitos definidos no artigo 83 do Código Penal e 131 a 146 da Lei de Execução Penal. Ele foi preso em 2008 e 2014 por tráfico de drogas. Em 2019, saiu e deve cumprir a pena em liberdade até 2023.

“Eu destruí a minha vida com essa escolha”, confessa, lembrando que morava sob o Viaduto da Conceição, onde recebe o alimento após um dia de trabalho e estudo, uma rotina bem diferente da que ele tinha. Hoje, ele vive em uma pensão onde paga pela sua vaga. Do valor arrecadado com a venda de rapaduras nos semáforos, em torno de R$ 3 mil por mês, ele precisa se manter e ajudar os 11 filhos e 12 netos.

Sobre a fome, ele fala com certeza e ênfase na voz de quem conhece essa realidade. “Passei fome muitas vezes”, destacou. Por isso, sempre sai da aula a passos largos para chegar a tempo de garantir a janta. “Eu iria passar mais fome se não tivesse essa ajuda”, ressalta. Hoje, a meta de vida é conquistar um trabalho e uma vida melhor. “Quero trabalhar, quem sabe ser um empreendedor, mas ninguém quer me dar oportunidade porque fui preso, mesmo estando há três anos limpo e longe disso tudo, não quero mais isso para mim”, admite.


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