A busca sem fim dos desaparecidos na Nigéria

A busca sem fim dos desaparecidos na Nigéria

Milhares de famílias sofrem sem saber o que aconteceu com seus pais, mães e filhos desde o início do sangrento conflito com grupos extremistas

AFP

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Quando alcançou o topo da montanha depois de fugir do ataque do Exército a sua aldeia, Hafsatu Usman percebeu que havia perdido três de seus filhos. Gritou seus nomes por toda parte ao longo da noite, mas não os encontrou. Desde então, continua em sua busca.

Isso aconteceu em agosto de 2014, quando o Exército nigeriano bombardeou Ngoshe, no conturbado nordeste do país, sob controle dos extremista do Boko Haram, e todos correram para se refugiar nas colinas.

Depois que o ataque terminou, Hafsatu Usman percebeu que três de seus quatro filhos - Hadiza, de 5; Oussama, 12; e Abubakar, 13 - não estavam com ela, nem com as outras crianças.

"Gritei o nome deles a noite toda e procurei por eles em toda parte, mas eles não apareceram. Nesse dia, muitas outras crianças desapareceram", recorda.

Pelo menos 25.000 pessoas foram consideradas desaparecidas no nordeste da Nigéria desde o início do sangrento conflito com grupos extremistas. Mais da metade são crianças, de acordo com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV).

Com 40.000 mortos e mais de dois milhões de deslocados em 13 anos de caos e violência, o número real pode, no entanto, ser muito maior.

O sequestro de 276 meninas de uma escola de Chibok pelo Boko Haram chamou a atenção mundial. Passados oito anos, mais de 100 meninas continuam desaparecidas, e a revolta jihadista continua.

A insegurança em todo o país é um dos temas centrais na eleição presidencial, que acontece este mês, na Nigéria.

Vivos ou mortos

Milhares de famílias sofrem sem saber o que aconteceu com seus pais, mães e filhos.

"Não paro de rezar", disse Hafsatu.

"Se estiverem vivos, rezo para que estejam com boa saúde. Se estiverem mortos, rezo para que suas almas descansem em paz", acrescentou.

Em 2021, as autoridades nigerianas criaram um registro de pessoas desaparecidas, mas foi apenas um projeto piloto.

Em janeiro, o governo admitiu não ter "informações confiáveis sobre o número de desaparecidos no país, nem uma estrutura para lidar com as consequências humanitárias".

A Cruz Vermelha insiste que as famílias têm o direito de saber o que aconteceu com seus entes queridos.

Encontrar uma pessoa no país mais populoso da África é como procurar uma agulha no palheiro, lamenta Zubairu Umar, um voluntário que coleta informações sobre os desaparecidos para o CICV.

"Coletamos o máximo de informação possível" de seus familiares, afirmou.

Às vezes, a lista do CICV consegue fazer conexões incríveis, como um homem procurando por sua esposa que havia reportado o desaparecimento de seu marido em outro acampamento de deslocados.

"Quando encontramos alguém, é inacreditável, nos sentimos orgulhosos", contou Umar.

Os voluntários também coletam pistas, juntando pessoas do mesmo bairro nos acampamentos. Chamam os nomes dos desaparecidos em sua área e pedem que levante a mão quem tiver alguma informação.

"Se a segurança for boa, podemos enviar um voluntário para a aldeia onde uma pessoa desaparecida foi vista", explicou Umar.

Detenções ilegais

Para complicar as coisas, dezenas de milhares de pessoas foram "detidas ilegalmente pelas forças de segurança, muitas vezes em segredo e em condições desumanas, desde o início do conflito, segundo a Anistia Internacional. Ainda de acordo com a ONG, há muitas crianças entre os detidos por suspeita de serem jihadistas, ou simpatizantes.

A Anistia Internacional calcula que até 10.000 detidos teriam morrido sob custódia.

Ibrahim, de 33 anos, contou à AFP que passou sete anos detido sem poder falar com sua família, por ter sido "falsamente" acusado de ser um combatente islâmico.

Visivelmente traumatizado, ele enfim reencontrou sua esposa e filhos no final de 2021.

Ficou pelo menos oito meses preso em uma cela com outros 100 homens, com tão pouco espaço que não podiam se deitar. Acabou sendo identificado pelo CICV, que tem acesso aos centros de detenção.

Como o CICV não tem contato com grupos jihadistas, grande parte do país está fora do alcance de seus investigadores. Por isso, o rádio se tornou uma ferramenta valiosa para chegar aos moradores e divulgar informações sobre pessoas desaparecidas.

Apesar das dificuldades, 3.534 pessoas desaparecidas em ataques, sequestros e prisões foram localizadas pelo CICV desde 2018.

"É meu pai"

Jugule Ahmed passou sete anos sem notícias de sua esposa e cinco filhos, depois que eles foram sequestrados pelo Boko Haram em 2015, no estado de Borno.

Ahmed, de 54 anos, não esquece o telefonema que recebeu no ano passado de um amigo. Ele contou-lhe que seu filho Baba, de cinco anos quando foi sequestrado, e sua filha Adama, hoje com 14, haviam escapado e chegado à cidade de Gwoza.

Barnabas John, psicólogo do CICV, lembrou que "quando Baba viu seu pai do ônibus, reconheceu-o imediatamente e gritou 'esse é meu pai, é meu pai'".

"Todos nós começamos a chorar", relata.

Embora aconteçam alguns finais felizes, as reunificações são "o início de um novo período difícil para as famílias, que foram completamente desestabilizadas", comenta Charlie Coste, funcionário do CICV no nordeste.

Alguns enfrentam suspeitas de terem sido doutrinados pelo Boko Haram, enquanto mulheres forçadas a se casarem com combatentes do Boko Haram não são aceitas em casa pelo antigo marido.

As dificuldades podem ser maiores para quem tem entes queridos desaparecidos.

"É muito duro", desabafa Hafsatu Usman, que se consola visitando uma árvore plantada em memória dos desaparecidos.


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