Morte de ex-presidente do Egito e a fratura pós-Primavera Árabe

Morte de ex-presidente do Egito e a fratura pós-Primavera Árabe

Mohammed Morsi morreu durante audiência no Cairo. Especialistas avaliam consequências do movimento

Samantha Klein

Multidão de opositores ao governo de Hosni Mubarak na Praça Tahrir em 08 de fevereiro de 2011.

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A cientista social Amanda Cegatti esteve no Egito pouco tempo depois da queda do ex-presidente Mohammed Morsi, morto nesta semana durante uma audiência no Cairo. Entre os meses de junho e agosto de 2014, ela e outras intercambistas foram desenvolver um projeto chamado Hawaa (Eva, em árabe) sobre direitos das mulheres e experiências cidadãs com egípcias quando teve a oportunidade de conhecer cidades como Cairo e Alexandria.

Em uma das viagens pelo país, o grupo de pesquisa ao qual Amanda faz parte foi a Siwaa, cidade próxima da fronteira com a Líbia, para conversar com mulheres da região. Naquele momento, a agência de turismo responsável pela excursão sugeriu que o grupo adiasse o deslocamento ou adiasse o retorno. O motivo era o aniversário de deposição de Morsi e o temor de que a Irmandade Muçulmana estivesse planejando algum ataque. “O vendedor do pacote da agência disse algo como ‘sou da Irmandade mas estou com medo do que eles farão’”, ressalta a pesquisadora.

Espólio da Primavera Árabe no Egito, Morsi foi o primeiro presidente eleito pelo voto, permanecendo somente um ano no poder. Já os ataques terroristas no país foram desencadeados após o golpe de Estado de 2013, executado pelo atual presidente Abdel Fattah al-Sisi, que expulsou do poder o movimento islâmico da Irmandade Muçulmana, do qual Morsi fazia parte. Desde então, os egípcios experimentaram o retorno a uma ditadura que suprime a expressão de qualquer voz dissidente.

O pesquisador de Egito da Anistia Internacional, Hussein Baoumi, destaca que a repressão aumentou muito no país majoritariamente árabe. O discurso de luta contra o terrorismo é a justificativa para as ações repressivas. Com exemplo, lembra o caso em que 40 pessoas supostamente envolvidas no ataque a um ônibus com turistas no fim do ano passado no Cairo foram mortos pelas forças policiais em diversas operações pelo país. "Porém, ao reforçar a repressão, o presidente está ao mesmo tempo fortalecendo as fileiras da oposição. Isso porque quando o governo para arbitrariamente um cidadão por ter expressado suas ideias na rua ou dentro de sua casa, outros poderão se identificar com ele e com a injustiça que ele sofreu. Isso pode gerar mais sentimento de ódio e busca por vingança", sustenta.

 
Atual presidente do Egito Abdel Fattah Al-Sisi - Foto: Vasily Fedosenko / POOL / AFP


Primavera e seus escombros

Quase nove anos depois do início da Primavera Árabe - onda de protestos que sacudiu o mundo árabe - o primeiro presidente democraticamente eleito no Egito, Mohammed Morsi morreu, na última segunda-feira, em condições que indicam violações dos direitos humanos. Ele sofreu um infarto, mas interlocutores internacionais indicam que ele vivia na prisão sem atenção médica.

Em seu Twitter, o think tank TIMEP (The Tahrir Institute for Middle East Policy), especializado em segurança no Egito, escreveu "desde sua prisão, há quase seis anos, Morsi havia sido mantido em confinamento solitário, sem tratamento médico adequado, proibido de visitar a família e sujeito a julgamentos marcados por violações significativas do devido processo". Assim, os olhos do mundo também se voltaram para os países que foram sacudidos pelas mobilizações encabeçados por jovens e impulsionadas pelas redes sociais.

Primeiro civil a comandar o país, a vitória pelo voto marcou o país africano sem que militares estivessem no poder desde o fim da monarquia em 1952. Líder da Irmandade Muçulmana, após a queda do ditador Hosni Mubarak, Morsi havia prometido uma agenda islâmica que traria um governo transparente e que recuperaria a economia do Egito. No entanto, acusado de tentar impor a lei islâmica e enfraquecido por uma série de protestos em julho de 2013, ele foi derrubado 12 meses após a eleição.

O ex-presidente cumpria pena de 20 anos pela morte de manifestantes durante os protestos contra seu governo, além de estar em prisão perpétua por espionagem em um caso relacionado ao Catar. Ele negava as acusações. O Escritório de Direitos Humanos da ONU pediu que seja feita investigação independente sobre a morte do político.

Democracia fugaz

O atual presidente do Egito recentemente conseguiu estender seu mandato até 2030. O professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Paulo Vizentini, destaca que apesar da repressão no país do norte-africano, a estabilidade na sociedade egípcia é fundamental para o próprio Oriente Médio. “Nem a União Europeia, nem Israel querem tensões no Egito, que tem uma população enorme. Se o resultado da Primavera Árabe foi a guerra civil na Síria e no Iêmen, e o caos na Líbia, consequências semelhantes no Egito seriam um colapso em termos de imigração dos egípcios para a Europa que já está sufocada pela onda migratória”, sustenta.

Durante os meses em que permaneceu no país do Magreb, a pesquisadora Amanda Cegatti aproveitou para conversar com a população local. Os mais jovens, segundo ela, simpatizavam mais com Morsi porque o presidente deposto havia iniciado um novo processo político pós-Primavera Árabe. “Inicialmente ele representava a possibilidade de uma democracia”, destaca. No entanto, conforme observou, a população mais velha não acredita no processo revolucionário. “Um senhor me disse ‘prefiro comer do que votar’. Então, Al-Sisi, que antes era o cabeça do Exército, trazia uma ideia de ‘ordem’ e isso era preferível por parcela da população”, complementa.


Redes sociais como atores políticos

Mesmo que a Primavera Árabe tenha começado na Tunísia com a autoimolação de Mohamed Buazizi, que teve seu carrinho e mercadorias confiscadas pela polícia em 17 de dezembro de 2010 na localidade de Sidi Buzid, na Tunísia, foi a praça Tahrir, no Egito, o epicentro das manifestações.

Os manifestantes se organizavam a partir de redes sociais como o Facebook e Twitter. O relatório Arab Social Media da Dubai School of Government mostra que houve crescimento exponencial do uso das redes sociais no período dos protestos em todos os países que realizaram sua Primavera. Uma das métricas apontadas no relatório são as hashtags. A mais popular no mundo árabe no início de 2011 foi #egypt, com 1,4 milhão de menções, seguida de #25jan (com 1,2 milhão de menções), #lybia (990 mil menções) e #bahrain (640 mil menções), de acordo com o levantamento.

Em estudo comparativo com a Primavera de Praga, que completou 50 anos no ano passado, a professora de Ciências Sociais da PUCRS, Teresa Marques, relata que o modus operandi é semelhante. A Primavera Árabe teve protagonismo de jovens que utilizaram a tecnologia para a revolta. “Em Praga foram usados os walktaks, em 2011, o Facebook e o Twitter. Mesmo que seja uma geração marcada por regimes autoritários, são pessoas que cresceram depois da queda do Muro de Berlim, que estabeleceram o regime democrático como demanda central, legitimando as revoltas. Se não deu certo, isso diz respeito a diversos fatores e forças políticas internacionais, mas não há dúvida de que as manifestações reivindicavam os direitos civis dessas populações”, finaliza.


Jovem faz selfie junto a poster de Mohammed Morsi no sul da Faixa de Gaza. Foto: Said Khatib/AFP

Interesses externos

O professor Vizentini considera que apesar do protagonismo dos manifestantes jovens nas revoltas, dando ênfase para a praça Tahrir onde milhares de pessoas se reuniram em protesto contra o ditador Hosni Mubarak, a intervenção e os interesses externos também falaram alto durante a Primavera Árabe. Não somente no Egito.

Em um contexto histórico, a intervenção estadunidense no Iraque e Afeganistão estava enfraquecida com a retirada gradual das tropas, assim como China, Turquia e Irã vislumbraram espaço para intervir economicamente no Oriente Médio. "Um exemplo disso é quando Muammar Kaddafi [ditador na Líbia] saiu da lista de inimigos dos Estados Unidos porque os apoiou na guerra ao terrorismo e, em função da crise dos bancos europeus, queria transferir os petrodólares depositados nessas instituições para a Ásia. Assim, a Primavera Árabe tem causa própria, sim, mas muitos países tentaram manipular e conduzir os caminhos".

Nas transições de regime após Primavera Árabe, somente a Tunísia é vista pela comunidade internacional como caso de sucesso entre as revoltas árabes. As tensões entre forças laicas e islâmicas se estabilizaram e o Quarteto de Diálogo Nacional ganhou o Prêmio Nobel da Paz de 2015. O grupo composto pela União Geral Tunisiana do Trabalho (UGTT), União Tunisiana da Indústria, do Comércio e do Artesanato (Utica), Ordem Nacional dos Advogados da Tunísia (ONAT) e Liga Tunisiana dos Direitos Humanos (LTDH) recebeu a premiação.


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