As 72 horas do golpe de 1964 em Porto Alegre

As 72 horas do golpe de 1964 em Porto Alegre

Há 60 anos, a capital gaúcha viveu dias de tensão e de resistência diante o movimento das Forças Armadas contra o presidente João Goulart

Correio do Povo

Após o pronunciamento do prefeito, população deixa o Paço Municipal, em Porto Alegre, no dia 2 de abril de 1964

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Por Mauren Xavier e Rafael Renkovski

Esqueça o barulho ensurdecedor do trânsito ou as notificações em tempo real de informações no celular. Naquele final de março de 1964, o cenário da capital gaúcha era bem diferente. Os bondes predominavam no transporte público e a população era praticamente a metade da atual. Os jornais impressos e as rádios monopolizavam a distribuição das informações. Alguns prédios, é verdade, resistiram ao tempo, como o Palácio Piratini, a prefeitura e o Mercado Público, e a Rua da Praia era a alma da cidade.

A cidade respirava os ares do desenvolvimento. Porém, nestes dias havia alguma coisa a mais no ar. Alguns definiram como uma “tensão”, outros como uma certa “névoa”. Fato é que entre os dias 31 de março e 2 de abril de 1964, Porto Alegre despontou como o ponto de resistência ao movimento de parte das Forças Armadas contra o presidente João Goulart.

De um lado, o então prefeito Sereno Chaise o apoiava, assim como o então comando do III Exército, enquanto que o governador Ildo Meneghetti defendia a atuação militar liderada a partir de Minas Gerais, ampliando a tensão em torno do embate político. Além disso, foi na capital gaúcha que Goulart tentou articular uma reação, que acabou, em poucas horas, perdendo força e se dissipando no ar. Mesmo assim, após 60 anos, as lembranças desses dias ainda estão vivas na memória daqueles que foram impactados de alguma maneira pelo golpe de 1964.

Jair Krischke recorda do clima de apreensão e falta de articulação | Foto: Mauro Schaefer / CP Memória

“Havia algo no ar. O ar estava mais pesado”, rememora Jair Krischke, que na época tinha 25 anos, e tornou-se uma das lideranças do movimento dos direitos humanos no país. Para ele, aquele cenário que se formou contra Jango era uma continuação de conflitos da Legalidade, de 1961, quando liderados pelo então governador Leonel Brizola, evitou-se um golpe e levou João Goulart para a presidência da República.

O clima do centro da cidade naquele 1º de abril chegou a surpreendê-lo, uma vez que a chamada “resistência” era quase nula naquele início de manhã. Mesmo assim, acreditava que tudo se tratava de uma quartelada. “Vão tomar o poder (as Forças Armadas) por dois ou três anos. Não havia uma organização (de resistência) como ocorreu em 1961 com (Leonel) Brizola”, comenta.

Jair Soares relembra tempos sombrios em abril de 1964 | Foto: Mauro Schaefer

Jair Soares, que viria a ser ministro da Previdência Social no governo de João Figueiredo, no regime militar, e governador do Estado pelo PSD, em 1983, nas primeiras eleições diretas após o golpe, acompanhou de perto as movimentações políticas daquele início de abril. Na época com 30 anos e trabalhando como chefe de gabinete do presidente do Instituto Rio Grandense do Arroz, ele define aqueles dias como "muito sombrios" e de "muita conspiração". "Ninguém sabia o que estava acontecendo de verdade", resume ele.

Além da maneira que as notícias circulavam, uma vez que não havia o dinamismo dos dias atuais, recorda-se que a cidade era completamente diferente e que os acontecimentos ficavam concentrados no centro. "Tudo acontecia em função da rua da Praia", recorda.

Raul Pont destaca que o golpe provocou uma mudança radical na sua vida | Foto: Mauro Schaefer

Sem experiência política naquele momento, o ex-prefeito de Porto Alegre e ex-deputado Raul Pont compartilha da ideia de que havia alguma “coisa no ar” naqueles dias e também que não havia nenhuma resistência ou preparação que sinalizasse uma reação contra as Forças Armadas. À época, Pont era um jovem de 18 anos que recém havia chegado de Uruguaiana, para trabalhar como bancário e estudar história na Ufrgs em Porto Alegre. Assim, reconhece que o golpe significou uma grande mudança na sua vida. Foi a partir deste momento que ele começou a sua militância política, que resultaria ainda na sua prisão durante o regime militar. “O golpe significou uma mudança radical porque imediatamente, na universidade, nós nos engajamos, na defesa do centro acadêmico, e começamos a entender o que estava acontecendo. Porque no meio da esquerda havia uma ideia de que o presidente da República (Goulart) tinha algum controle militar”, recorda.

Enquanto no campo político buscava-se respostas, a mobilização social que era pequena naquele início da manhã do dia 1 de abril, cresceu e o Paço Municipal se tornou referência. As incertezas das informações fizeram aumentar a tensão e geraram desdobramentos na região Central da cidade, que era o verdadeiro coração de Porto Alegre. Aos poucos a paisagem foi mudando. O comércio fechou, as aulas foram suspensas e a procura foi intensa nos mercados.

Omar Ferri estava na prefeitura de Porto Alegre no dia 2 de abril | Foto: Camila Cunha

Se de um lado o impacto do que estava por vir era inimaginável, para outras pessoas estava nítido o cenário que se desenhava. Omar Ferri estava ao lado do então prefeito de Porto Alegre, Sereno Chaise, quando este, no dia 2 de abril de 1964 fez um pronunciamento à uma multidão que estava em frente ao Paço, formando um movimento de resistência, dizendo que Goulart havia renunciado ao cargo. “Estava na prefeitura, ao lado da Terezinha Chaise, esposa do prefeito, reunidos com umas 800 pessoas, dando discurso contra o golpe e ainda tínhamos esperança que pudéssemos reverter. Mas o Sereno encerrou a atividade do comício e disse que todos poderiam voltar para as suas casas. Daí, a dona Terezinha me disse: ‘Graças a Deus tudo terminou’. Olhei para ela e disse: ‘A senhora não está entendendo. Tudo que haverá de ruim começou neste momento’”, finalizou. E ele acertou. Menos de dois meses depois, ele foi expurgado do cargo de procurador da Fundação Brasil Central, em Brasília, voltando para o RS. No regime militar, ele foi preso duas vezes.

Claudio Accurso foi expurgado da Ufrgs em 1964 | Foto: Mauro Schaefer

Outra pessoa que sentiu essa transformação no início de abril foi o então professor de economia da Ufrgs Cláudio Accurso, que foi expurgado naquele mesmo ano. Atualmente, aos 94 anos, ele diz que tinha uma visão clara do que estava acontecendo. “Estava dando aula (quando começou o golpe). E via as movimentações com um pé atrás. Muito espanto”. Ao ser questionado se imaginava o que estava por fim, ele foi enfático: “Eu estava vendo”. “Não tinha nenhuma ilusão”, ressalta. Mesmo assim, reconhece que não esperava ter sido expurgado.

Professora que viria a ser expurgada da Ufrgs em fins de 1969, então atuando no curso de Letras, Maria Luiza de Carvalho Armando vivia desde a infância no Centro de Porto Alegre e acompanhou de perto as movimentações. Recorda inclusive de detalhes do dia 2 de abril, quando Goulart desistiu da resistência, o que foi, para ela, uma decepção. "Nesse dia, tinha um ensaio de uma peça de teatro na sede da UEE, no Centro. E me preparei para sair. Meus pais objetaram que havia confusão nas ruas, que eu não devia sair. Mas, fui. Na atual Esquina Democrática, me deparei com uma grande confusão. E só a duras penas consegui prosseguir. Quando cheguei à sede da UEE, ali adiante... a Polícia havia chegado antes de mim! Não encontrei ninguém, só a sede, revirada e semidestruída. Compreendi melhor, assim, a gravidade dos fatos. Entretanto, não tinha informação suficiente do panorama geral. E só aos poucos fomos ‘digerindo’ a ‘coisa’”, diz.


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