Com tabela do SUS defasada, despesas das famílias superam gastos do governo com saúde

Com tabela do SUS defasada, despesas das famílias superam gastos do governo com saúde

Especialistas ouvidos pela reportagem apontam perda bilionária de recursos por causa do sistema de financiamento

R7

Ministro da Saúde, Marcelo Queiroga

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Com a defasagem da tabela de procedimentos do Sistema Único de Saúde (SUS), usada para os serviços hospitalares prestados pelos estabelecimentos conveniados à rede pública de saúde, as despesas das famílias superam os gastos do governo para a área, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Os gastos com o consumo final de bens e serviços de saúde no Brasil atingiram R$ 711,4 bilhões em 2019, início do mandato de Jair Bolsonaro (PL). Desse total, R$ 283,6 bilhões (3,8 do PIB) foram despesas do governo e R$ 427,8 bilhões (5,8% do PIB), de famílias e instituições sem fins lucrativos a serviço das famílias.

Segundo o IBGE, a despesa per capita com o consumo de bens e serviços de saúde, na ocasião, foi de R$ 2.035,60 para famílias e de R$ 1.349,60 para o governo. O principal gasto das famílias foi com serviços de saúde pública, que incluem despesas com médicos e planos de saúde — correspondente a 67,5% do total das despesas de consumo final de saúde.

O serviço público conta com defasagem na tabela de procedimentos do SUS e especialistas criticam o modelo de financiamento de recursos destinados para a área. De acordo com o Conselho Federal de Medicina (CFM), mais de 1.500 procedimentos hospitalares estão defasados — e a lista poderia ser ainda maior, se considerados os atendimentos ambulatoriais, não apontados no levantamento.

A perda acumulada nos honorários médicos em determinados procedimentos chegou a quase 1.300%, aponta a estimativa do órgão, feita pela última vez em 2015. Segundo o levantamento, o médico recebia R$ 10 por cada consulta ambulatorial realizada no SUS.

Os honorários médicos para o tratamento de doenças do fígado, como hepatite ou cirrose, chegam a apenas R$ 59,70, divididos pelo tempo médio de oito dias de internação do paciente. Ao fim do tratamento, corresponde a uma diária de R$ 7,46. De 2008 a 2014, a média diária de pagamento teve reajuste de apenas R$ 0,35. No final da comparação, pelos índices de inflação acumulados no período, hoje estaria, no mínimo, em R$ 10,50.

A tabela de procedimento do SUS lista, por exemplo, os valores de remuneração de quase 5 mil procedimentos médicos, que vão desde atendimento em ambulatório até cirurgias mais complexas, como transplante de coração.

Além da defasagem de décadas na tabela do SUS, especialistas criticam ainda o sistema de financiamento de recursos, dividido atualmente entre os três entes federativos — União, estados e municípios —, e citam perdas milionárias ocasionadas a partir da Emenda à Constituição 95/2016, editada durante o governo de Michel Temer (MDB).

O texto instituiu no país um novo regime fiscal e impôs um teto para os gastos até 2036. Durante o período, as despesas públicas poderão variar apenas conforme a inflação acumulada no período de um ano.

Se os efeitos das políticas de austeridade fiscal na área da saúde proporcionaram um financiamento aquém do adequado para suportar a demanda registrada no SUS, com a emenda do teto de gastos, especialistas apontam subfinanciamento.

Uma tabela que será apresentada em julho pela Comissão de Orçamento e Financiamento do Conselho Nacional de Saúde (CNS) aponta que a emenda do teto de gastos fez com que o sistema público perdesse quase R$ 37 bilhões de recursos em saúde desde que foi promulgada. Participam do estudo Francisco Funcia, Bruno Moretti, Rodrigo Benevides, Mariana Mello, Erika Aragão e Carlos Ocke-Reis.

Se em 2019 o governo tivesse aplicado o mesmo montante que aplicou em 2017 — 15% da receita corrente líquida —, o Ministério da Saúde teria um orçamento de cerca de R$ 142 bilhões, e não R$ 122 bilhões de fato aplicados. Ou seja, houve encolhimento de R$ 20 bilhões apenas naquela ocasião, segundo o estudo.

Em entrevista ao R7, o conselheiro Getúlio Vargas de Moura afirma que, com a emenda do teto de gastos, congelando os recursos por 20 anos, o prejuízo ao SUS pode ultrapassar os R$ 400 bilhões. "O fato é que, historicamente, nunca houve o financiamento adequado da Saúde. A tabela nunca foi ajustada e, sim, sempre subestimada. É o que a gente sempre diz que o SUS faz muito, com muito pouco", afirma Moura. "E isso nos preocupa porque transforma em política de estado o que deveria ser de governo", completa.

As dificuldades para atingir o volume de recursos necessários que atendam as demandas da população seguem sem vista de solução, mas os especialistas do CNS alertam para possíveis alternativas.

Para o consultor da Comissão de Orçamento e Financiamento do Conselho Nacional de Saúde e vice-presidente na Associação Brasileira de Economia da Saúde, Francisco Funcia, o principal problema em si não é a defasagem da tabela e, sim, o financiamento de recursos da saúde. "A discussão da tabela do SUS fica secundarizada diante do modelo de financiamento de recursos que o SUS adota. A nossa sugestão é levar em consideração as necessidades da saúde da população e componentes para que se possa ter valor per capita definido, de modo que atenda ao sistema", defende.

Segundo Funcia, o país necessita de um valor que possibilite a ideia de per capita. "O Reino Unido aplica cerca de 7,8% do PIB (Produto Interno Bruto) em saúde. Nós, cerca de 4%. E o custo per capita por dia beira os R$ 4", relata.

Nesse modo compartilhado, o conselheiro do CNS aponta que a União vem reduzindo ao longo dos últimos anos sua participação no financiamento da saúde. "Atualmente representa menos da metade de tudo que se gasta, cerca de 42%, enquanto os municípios, 32%, e os estados, 26%", diz.

Em nota, o ministério informou que os valores da tabela do SUS são atualizados constantemente e ressalta que não é a única forma de financiamento dos serviços. "O Ministério da Saúde repassa mensalmente, aos fundos estaduais e municipais de saúde, recursos financeiros destinados ao custeio de serviços hospitalares de média e alta complexidade", diz, acrescentando que, em 2021, foram repassados R$ 45 bilhões e, em 2022, já foram R$ 16 bilhões. A reportagem questionou o ministério sobre as defasagens e valores mencionados pelo CFM, mas não obteve retorno.


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