Leite ajusta estratégia política após seis meses

Leite ajusta estratégia política após seis meses

Ao completar o primeiro semestre do novo mandato, governador gaúcho investe em 'desgaste zero' e tenta reforçar imagem de progressista

Flavia Bemfica

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À vontade, o governador posava para fotos, parabenizava famílias beneficiadas, e conversava com outras autoridades presentes, sendo o presidente Lula (PT) a principal delas. As cenas, comuns entre aliados políticos, foram protagonizadas, na última sexta-feira, na cidade de Viamão, por Eduardo Leite (PSDB), no dia em que ele completou seis meses do segundo mandato à frente do Executivo gaúcho. Causaram mal-estar contido na parcela majoritária da base governista que se identifica como de centro ou liberal, apesar de ter perfil à direita. Mas foram definidas com um “faz parte” por aliados pragmáticos, que consideram que há muito mais em jogo do que a ojeriza “ao PT”, o que inclui desde a destinação de recursos ao Estado até a continuidade da tentativa de Leite de se tornar uma liderança nacional. A movimentação toda acabou ganhando ares de simbólica pela coincidência entre a data e o fato de explicitar um ajuste na estratégia política do tucano.

A alteração é a de, após o que oposicionistas chamam de “seis meses perdidos”, centrar esforços na manutenção de uma imagem com “desgaste zero”, tentando se apresentar como uma administração de viés progressista em diferentes aspectos. Que consegue ir além do tema do ajuste de caixa, e prioriza áreas em alta dentro e fora do país, como a social e a do meio ambiente. Mesmo que, até agora, na prática, articuladores governistas reconheçam que as entregas nessas áreas precisam alcançar patamares muito maiores para que Leite consiga a projeção que almeja. E integrantes da oposição apontem uma desconexão completa entre o que o governo apresenta no discurso e as ações de fato.

A solenidade em questão em Viamão, por exemplo, era uma entrega de moradias populares de um programa federal conhecido e fortemente identificado com as administrações petistas, o Minha Casa, Minha Vida. Leite não é aliado de Lula e a participação do governo do Estado na entrega foi quase figurativa. Dos R$ 39,8 milhões investidos na construção das 446 moradias e infraestrutura do local, R$ 37,6 milhões vieram do governo federal. A administração estadual destinou uma complementação de R$ 2,2 milhões. Mas foi o suficiente para que, nas redes sociais, o tucano carimbasse a ação como também do Executivo gaúcho. “Lar, dignidade, sonho realizado. Uma sexta-feira muito especial para quem recebeu a casa própria em Viamão, num investimento do Governo do Rio Grande do Sul com o Minha Casa, Minha Vida”, postou, em conjunto com um vídeo onde destaca a parte de seu discurso na qual fala de conjunção de esforços e convergência para “atender a população que mais precisa.”

Depois de Viamão, Leite ofereceu a Lula um almoço no Palácio Piratini, para o qual foram convidadas, além de integrantes da comitiva presidencial, autoridades dos demais poderes e ex-governadores. No cardápio, a difícil situação financeira do Estado e a necessidade de que a União tenha um olhar ‘diferenciado’ para com o RS. Membros do núcleo da articulação da administração estadual admitiram que, apesar de ter ouvido com atenção, na prática Lula não vai se envolver diretamente nas demandas de caixa do RS. Mas, pela segunda vez naquela sexta-feira, o governador foi bem-sucedido em vender a imagem de político educado, equilibrado e disposto a passar por cima de divergências ideológicas em nome dos interesses do Estado. Em outra coincidência, no mesmo dia, com a decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de tornar Jair Bolsonaro (PL) inelegível, foi aberta oficialmente a competição pelo espólio eleitoral do ex-presidente para a disputa à presidência da República em 2026, justamente a corrida na qual Leite vem tentando se reposicionar.

Capital político se esgota com maior rapidez a partir de 2024

A aproximação com o governo federal e a ênfase em tentar capitalizar ações em pautas que são destaque nacionalmente acontecem após seis meses com ausência de ‘grandes entregas’ por parte da administração estadual, poucos projetos articulados na Assembleia Legislativa e cobranças por ações mais efetivas tanto da parte de aliados como de oposicionistas. O governador ainda dispõe de um significativo capital político, mas, na avaliação de especialistas que se debruçam sobre o cenário do Estado, ele se esgota cada vez mais rápido daqui para a frente se resultados não começarem a aparecer.

A educação hoje é tida como o maior exemplo das dificuldades enfrentadas entre o anunciado e as ações concretas. Desde a campanha, a chapa vencedora estabeleceu que a área seria prioridade absoluta do segundo mandato. Os efeitos deste direcionamento, contudo, ainda não surgiram, e o RS segue com números considerados preocupantes tanto em indicadores básicos como na implementação de mudanças.

O cenário foi evidenciado nos dados do Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do RS (Saers), divulgados em abril a partir de provas aplicadas em outubro de 2022 com estudantes das redes estadual e municipais. Conforme os números, 73% dos estudantes do 3º ano do Ensino Médio tiveram desempenho básico ou abaixo disto em Língua Portuguesa. Em Matemática foi pior: 96% ficaram com desempenho abaixo do básico e básico.

As dificuldades vão além da aprendizagem. Na metade de junho, após relatos de problemas em diferentes cidades do Estado, a Comissão de Finanças do Legislativo aprovou requerimento de audiência pública da deputada Bruna Rodrigues (PcdoB) para tratar das condições de infraestrutura das escolas estaduais. Na semana passada foi a vez de a Comissão de Educação tratar de outro aspecto referente à qualidade. Em audiência pública do colegiado, pesquisadores da Ufrgs apresentaram levantamento que mostra que 14,6% das escolas estaduais estão oferecendo apenas uma trilha de aprendizagem no Novo Ensino Médio, em desconformidade com resolução do Conselho Estadual de Educação.

“Na área da educação, a população não identifica ainda feitos, mas reconhece uma fala mais ativa, um diagnóstico por parte do governo. Em que pese não ser a primeira administração de Eduardo Leite, a pandemia trouxe a ele e a outros governantes uma espécie de salvo-conduto, como se estivesse começando tudo de novo. Por isto, as famílias mantêm a confiança. Mas é uma confiança frágil e estimamos que, se o governo não começar a fazer entregas, até o início do ano letivo de 2024 a expectativa vai virar frustração e a confiança tende a se esgotar”, projeta a cientista social e política Elis Radmann, diretora do Instituto Pesquisas de Opinião (IPO).

A diretora do IPO também adianta que outras demandas começam a se acumular nas ruas. Segundo ela, em função do início do inverno, aumenta a inquietação da população com a saúde pública. E, devido à tragédia recente, também a preocupação com a inexistência de uma estrutura preventiva em relação aos eventos climáticos. “Uma estrutura de saúde desatualizada e que enfrenta deficiências na distribuição já ganha uma maior irritação da sociedade. O que se repete em relação às consequências dos eventos climáticos, mesmo em municípios onde a tragédia já era anunciada. A percepção, no que concerne a estas áreas, que envolvem infraestrutura, é de que a administração atual está no mesmo ritmo das anteriores: encaminha medidas paliativas para problemas crônicos.”

Tucano precisa mais do que vitórias locais para se colocar no cenário nacional 

Três temas dominaram os debates protagonizados pelo governo gaúcho nos seus primeiros seis meses. São eles os embates com o funcionalismo estadual em função da proposta de reestruturação do IPE Saúde e da adequação à lei federal para o pagamento do piso do magistério. O imbróglio sobre a privatização da Corsan. E, na sequência, a constatação de que as reformas feitas no primeiro mandato e a adesão ao Regime de Recuperação Fiscal (RRF), de renegociação da dívida, ao contrário do que havia sido inicialmente anunciado pelo Executivo, não equacionaram as contas do RS, que seguem em situação frágil. O governo obteve vitórias no Legislativo tanto em relação ao índice de reajuste do magistério como sobre o IPE. A questão da Corsan e a das contas seguem em aberto.

Na disputa de narrativas, governistas usam o endosso do Legislativo à reforma do IPE Saúde como exemplo de que o Executivo, quando necessário, consegue formar uma base robusta, apesar de, no cotidiano, ela ser fluída. Já parlamentares de oposição rebatem que o governo só garantiu os 36 votos obtidos na aprovação do texto após negociar o direcionamento de valores entre R$ 1 milhão e R$ 3 milhões em recursos do orçamento para atender, individualmente, a demandas regionais de parlamentares.

Segundo o professor Rodrigo González, do programa de pós-graduação em Ciência Política da Ufrgs, para além da troca de farpas entre aliados e oposicionistas, é inegável que no início deste segundo mandato o governador conseguiu se consolidar como uma liderança dentro de seu partido (que preside nacionalmente) e no Estado. E, ainda, articular uma base para seguir aprovando suas propostas.

A configuração, porém, conforme o professor, não basta para que o tucano alcance suas aspirações. “Enquanto o Estado não começar a crescer e melhorar sua condição, o governador não alcança o cacife necessário fora do RS. Ele joga com a lógica de sanar as contas para então fazer algo, mas este algo ainda não apareceu. Neste momento o RS não sabe se volta a ser um estado industrializado tradicional, se prioriza a agricultura ou se aposta no setor de tecnologia. Resumindo: não tem uma proposta clara de desenvolvimento. E isto não adianta para quem pretende disputar a presidência da República em 2026.”

González lembra ainda que, no cenário nacional, há outros governadores em melhores condições do que Leite para ocupar o espaço deixado pela ausência de Jair Bolsonaro. Hoje quem aparece na ponta é o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos). A diretora do IPO, Elis Radmann, completa que, com Bolsonaro inelegível, “começa o desfile.” “Mas é um palco tapado de candidatos, onde, de início, vai predominar mais a manutenção do que a conquista de espaço. Há diversos players nesse jogo, e é importante prestar atenção, para além de Tarcísio e Zema (o governador de Minas Gerais, Romeu Zema, do Novo), também, por exemplo, no governador Ratinho Júnior (PSD), do Paraná. Agora, um cenário mais consistente mesmo, só teremos após as eleições de 2024”, avalia.

O que eles dizem   

Frederico Antunes (PP) – líder do governo na Assembleia Legislativa

Nestes primeiros seis meses seguimos pagando salários em dia e cumprimos com o piso do magistério, o que em governos anteriores não era feito. Estamos realizando obras de infraestrutura em diferentes áreas, que também tinham altas demandas não atendidas. Há uma série de obras em andamento em estradas, fazemos sucessivas entregas em hospitais e em escolas, e estamos providenciando a reposição do quadro de pessoal em áreas fundamentais, como educação e segurança. Isto não é a minha avaliação. É o que está acontecendo. Nossa prioridade é seguir mantendo as contas do Estado equilibradas e o que já estamos fazendo, tanto no custeio como nos investimentos.

Rodrigo Lorenzoni – líder da bancada do PL na Assembleia

São seis meses perdidos. Principalmente no que diz respeito a desenvolvimento econômico. Fora a reforma do IPE Saúde, que não resolverá os problemas, e o piso dos professores, que foi uma adequação à lei federal, o governo não apresentou nada, e indicadores ruins se acumulam. O superávit é feito com receitas extraordinárias. O primeiro mandato foi para cuidar da despesa. Prometeu, no segundo, priorizar a educação, e nem isso conseguiu. Falta projeto de desenvolvimento. Eduardo Leite montou um governo morno, com um espectro político amplo, para não se incomodar, porque seu foco não está no RS. Não adianta montar o time se o técnico não aparece para treinar os jogadores.


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