São Francisco de Assis, a cidade que não superou a Revolução de 1923

São Francisco de Assis, a cidade que não superou a Revolução de 1923

Ao contrário dos demais combates ocorridos no Estado ao longo do conflito, na cidade distante 485 quilômetros de Porto Alegre a luta se deu no perímetro urbano, gerando um trauma que persiste até hoje na comunidade, um século depois

Carlos Correa

Um século depois, os coqueiros da praça Manoel Vianna, no Centro de São Francisco de Assis, ainda guardam as marcas de bala

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O sol nascera há poucos minutos, mas parecia escondido em meio às nuvens. Não era uma cena rara naqueles dias, afinal setembro, que mal havia acabado, nunca é o mais ensolarado dos meses no Estado. Entre os poucos sons que se faziam ouvir naquele 2 de outubro de 1923 não estava o barulho das janelas se abrindo. Não era um bom dia de fato para se deixar a janela aberta em São Francisco de Assis, todos sabiam. O silêncio concorria em pé de igualdade com a tensão naquele amanhecer. Só que ele perdeu à medida que os cascos de um cavalo começaram a bater com força no piso de chão batido da avenida Ipiranga. O galope não deixava dúvida que o animal vinha em velocidade rumo à intendência, em frente à praça principal. Lá, estavam entrincheiradas as forças governistas, capitaneadas pelo intendente Carlos Gomes à espera da chegada dos revolucionários. Sem saber que o cavalo havia apenas se desvencilhado de seu dono e, assustado, corrido sem direção, um dos soldados imaginou ser aquele o início do ataque inimigo. Disparou e matou o animal. Mal sabia que começava ali o mais conhecido combate em perímetro urbano da Revolução de 1923.

O 2 de outubro de 2023 foi apenas mais um dia em São Francisco de Assis, distante 485 km de Porto Alegre, na região sudoeste do Estado. Aquela segunda-feira não viu a rotina dos seus pouco mais de 18 mil moradores se alterar por qualquer motivo que fosse. Foi um dia normal. O que talvez não seja normal, visto que exatamente 100 anos antes o município testemunhara pelo menos 80 mortes – o número varia de acordo com os historiadores, há quem diga que foram por volta de 120 – em praça pública, decorrentes do combate da Revolução de 1923. Duas semanas antes, no dia 16, o CTG Pedro Telles Tourem e o Departamento de Cultura da prefeitura promoveram uma recriação do combate, em meio às festividades da Semana Farroupilha de 2023. Mas no dia 2 não houve menção aos mortos, homenagens, nada. “Eu esperava ter visto pelo menos a bandeira a meio mastro para homenagear as vítimas. E no entanto, passou como se nada tivesse acontecido. E morreram 100 pessoas naquele combate”, observa a psicóloga Dalva Dornelles Medeiros.

A chegada dos revolucionários em outubro de 1923 não pegou a população de São Francisco de Assis surpresa. Eram tempos analógicos, sem redes sociais, internet e toda a facilidade de comunicação que a tecnologia traz. O mais avançado que havia neste sentido era o telégrafo, ainda que o mais perto estivesse em Santiago, a mais de 40 km de distância. Mas foi assim que, pouco a pouco, os moradores ficaram sabendo que se planejava a tomada da intendência. “A notícia chegava quase que literalmente a cavalo”, conta a historiadora e pesquisadora Valdreani de Carvalho Pôrto, membro fundadora da Academia de Letras da Região Central do RS (ALERC). Os maragatos contaram ainda com uma vantagem inesperada. As chuvas de setembro acabaram por encher o rio Ibicuí, dificultando a passagem das tropas governistas de Flores da Cunha, que perseguia a coluna de Honório Lemos. Atocaiados na margem oposta, os revolucionários retardaram a perseguição inimiga e puderam rumar sem muita resistência a São Francisco de Assis.

Valdreani de Carvalho Porto, historiadora | Foto: Maria Eduarda Fortes

O meio de comunicação na época era o telegrafo, mas o mais perto ficava em Santiago, a 46 km de distância. Assim, a notícia chegava quase que literalmente a cavalo - Valdreani Porto.

Ainda que tenha sido o episódio mais marcante da história da cidade, o combate de 1923 não faz parte do currículo das escolas do município. A prefeitura admite que deveria ser incluído, assim como o estilo musical Bugio, mas que falta capacitação. Seja como for, o fato é que a cada nova geração, os acontecimentos de 100 anos atrás ficam um pouco mais esquecidos. “Estudamos a história dos gregos, dos romanos, e no entanto, não sabemos a nossa própria”, critica o historiador e pesquisador Valdevi de Lima Maciel. De acordo com o prefeito Paulo Renato Cortelini, o problema é que um século se passou, mas as animosidades permanecem, mesmo que veladas. Ou seja, não falar do assunto acaba sendo a saída mais prática para se evitar conflitos. “O combate foi um ato histórico, não podemos esquecer. Temos que lembrar, mas não enfatizar muito. Gostaria que isso fosse esquecido. Essa rivalidade não serve ao município, ainda mais com essa ênfase. Prejudica na nossa política”, diz o político, que prossegue: “Os mais antigos não vão esquecer, mas para as novas gerações isso não pode servir como um exemplo. A bala não resolve nada, a solução devia se basear no diálogo, na boa conversa.”

A tomada de 2 de outubro pelos revolucionários não foi a primeira em São Francisco de Assis. Meses antes, o enredo foi praticamente o mesmo, com a diferença de que naquele episódio não houve enfrentamento e muito menos feridos. Suas consequências, contudo, foram decisivas para o que aconteceria seis meses depois. “Rebentou um movimento revolucionário neste município. As forças revolucionárias estão concentradas na fazenda do Pirajú, sob a direcção dos drs. Alvaro Costa e Lincoln Martins. O intendente e demais autoridades, ante a ameaça de tomada da villa, retiraram-se deste município, seguindo para Cacequy, onde consta estar concentrada força do governo”. Assim noticiou, com a grafia original, o Correio do Povo na capa da edição do dia 3 de abril de 1923. Mais do que a invasão e a tomada da intendência em si – que logo seria abandonada, como era praxe na Revolução –, a peça chave era Carlos Gomes, o intendente. Ao fugir para Cacequi (historiadores também falam em São Vicente do Sul), foi recebido pelos correligionários aos gritos de “covarde”. Tomou o rumo de Santa Maria, onde persistiram os xingamentos. Decidiu ali que nunca mais seria chamado de covarde. Voltaria para São Francisco de Assis e quando preciso, enfrentaria os maragatos até o fim, nem que isso custasse a sua vida.

Se hoje o combate de 1923 não é dos assuntos preferidos em São Francisco de Assis, há 50 anos a rejeição era ainda maior e muito menos sutil. Para marcar os 50 anos da revolução, o governo estadual da época, com Walter Peracchi Barcelos à frente, nomeou uma comissão para que homenagens fossem feitas às vítimas em várias cidades gaúchas. O presidente do grupo encarregado das festividades era João Batista Luzardo. Quando a comunidade de São Francisco de Assis ficou sabendo, não teve dúvida. Até o bispo foi procurado para que o recado fosse entendido. A cidade não queria saber de homenagens. Não queria saber do assunto. Aqueles que viessem seriam corridos de lá a bala. “A história não passou por aqui, lamentavelmente ficou à margem. Nós merecíamos que aquela comissão tivesse vindo aqui 50 anos depois”, lamenta Valdevi.

Na teoria, todos os combates ocorridos durante a Revolução de 1923 têm como origem a eleição ocorrida um ano antes e a briga política decorrente dela: Borges de Medeiros e os governistas de um lado, Assis Brasil e os revolucionários do outro. Não é que no caso de São Francisco de Assis esse aspecto não tenha sido levado em conta, foi. Mas os historiadores ressaltam que ali havia algo mais. O ódio que eclodiu em 2 de outubro não era apenas pelo pleito de 1922 e a luta sobre quem presidiria o estado. Havia mais raiva ali. E essa raiva vinha de bem antes. “O que aconteceu aqui veio de 30 anos antes ou mais. Desde a Revolução Federalista, as atrocidades cometidas pelos republicanos, que inclusive dividiram o partido na cidade. Havia um grupo de republicanos que queria de toda forma que existisse só um partido político. Isso não só em São Francisco de Assis, era geral no estado. Quem se opunha a esses ideais ou ao partido, estava fadado a morrer, com apoio das autoridades. Muitos fizeram engolir o lenço (vermelho), mataram degolando. Existem muitos túmulos espalhados pelos rincões aqui da região de pessoas simpáticas ao Partido Federalista, aos maragatos, que morreram só em razão de serem federalistas”, aponta Valdevi, que cita ainda casos de tortura contra desertores, como seria o caso de João de Deus em 1894, que foi esquartejado e arrastado pelas ruas da cidade. Decisões administrativas também contribuíram para o caldo de fúria. Foi o caso da determinação da construção de uma ferrovia que passava por Alegrete, implodindo as perspectivas econômicas de São Francisco de Assis à época. Tudo isso emergiu quando os maragatos da região viram a possibilidade do combate. Tanto é que invadir a cidade sequer estava nos planos de Honório Lemos, que comandava a coluna da região e não participou deste combate. Foi Hortêncio Rodrigues quem pediu autorização explícita para seguir adiante. “Foi chegando um momento em que, por uma questão de honra, os maragatos, chefiados por Hortêncio Rodrigues, queriam chegar e tomar a intendência para empossar um prefeito federalista”, diz Valdevi.

Valdevi Maciel, historiador | Foto: Maria Eduarda Fortes

Existem muitos túmulos espalhados pelos rincões aqui da região de pessoas simpáticas ao Partido Federalista, que morreram só em razão de serem Federalistas. – Valdevi Maciel

O Rio Grande do Sul testemunhou inúmeros combates ao longo de 1923. Vários ganharam um lugar na história com muito mais destaque do que aquele ocorrido em 2 de outubro. Seja pelo viés que for, outros se destacaram mais, ora por envolver mais combatentes, ora por ter um saldo de vítimas maior ou terem ocorrido em municípios politicamente mais importantes naquela época. E não se engane, a grande diferença no caso de São Francisco de Assis não é ter ocorrido no centro da cidade. Isso é parte do contexto. O verdadeiro drama ali foi o envolvimento da comunidade. “Aqui ninguém matou um desconhecido”, afirma a psicóloga Dalva Dorneles Medeiros. À época, a vila tinha cerca de 3 mil moradores e por mais que vários combatentes tenham vindo de outros lugares, como Dom Pedrito, na sua maioria eram locais. “Esse confronto foi fratricida. Os irmãos, familiares, amigos, pessoas muito próximas mataram umas às outras, gente do mesmo núcleo familiar ou convívio social. E por ser uma cidade pequena, todos se conheciam de alguma forma”, lembra ela, que recentemente resolveu estudar como a cidade lidou com um trauma deste tamanho.

Combate de 1923 aconteceu nas principais vias da cidade | Foto: Maria Eduarda Fortes

A prisão da cidade em 1923 ficava em um prédio junto à intendência, praticamente um anexo. Reza a lenda que em outubro não havia mais que uma dúzia de detentos. Ao primeiro sinal de invasão dos revolucionários, cada um deles recebeu uma pistola e a missão de se juntar ao combate. As celas não foram abertas, mas como havia uma janela naquela espécie de porão que dava para a rua, era o suficiente para acertar o inimigo. Não era o auxílio ideal, mas com o aguardado apoio das forças de Flores da Cunha retido do outro lado do rio Ibicuí, toda ajuda caía bem. O tiroteio foi intenso, isso sem contar os enfrentamentos corpo a corpo, com lanças e espadas. A artilharia governista era mais moderna do que os revólveres calibre 22, 32 e 38 dos maragatos, que no entanto estavam em maior número. Calcula-se que eram 200 invasores contra 40 intendentes. Uma rápida caminhada hoje pela rua João Moreira, entre as avenidas Pinheiro Rocha e 13 de Janeiro é suficiente para ver que as cicatrizes permanecem lá. Marcas de bala no portão da antiga prisão. Na porta da prefeitura. Na sede do Banco do Comércio da época. Os centenários coqueiros que ornam a praça Cel. Manoel Vianna seguem marcados pelos buracos dos tiros. Cem anos se passaram, mas o Combate de 1923 segue lá, como um fantasma lutando para não ser esquecido.

As primeiras pistas remontam ao início dos anos 1990, quando Dalva Dorneles Medeiros voltou a morar em São Francisco de Assis e, formada em psicologia, passou a trabalhar com a saúde mental da população. Os sinais de que havia uma espécie de padrão nas pessoas com quem conversava nunca passaram despercebidos. Seja por questões pessoais ou profissionais, passaram-se 30 anos até que a psicóloga resolvesse investigar a fundo algo que a inquietava há tanto tempo: por que, um século depois, a cidade ainda não havia superado o Combate de 1923? Desse questionamento surgiram pesquisas, descobertas de relatos e novas entrevistas. Até que um projeto começou a se desenhar e ganhou título: “Revolução de 1923: o Confronto de São Francisco de Assis – 100 Anos de Dor, Silêncio e Divergências”. Ao longo de quase 30 páginas, Dalva entrega relatos que indicam que os traumas daquele 2 de outubro se enraizaram por baixo do asfalto da cidade de tal forma que, mesmo silenciosos, permanecem reprimidos à espera de uma brecha para emergirem com força. E raiva. “É um assunto muito mal resolvido, que não se fala. Entendo o papel do silêncio como a negação dos fatos. Não se fala porque a dor é tanta que é melhor evitar. E todo trauma só é resolvido quando revivenciado. É preciso vivenciar ou pelo menos ter conhecimento do fato, saber o que tem ali para poder ressignificar”, explica Dalva, que também teve que lutar com questões familiares dentro deste contexto, quando lhe foi revelado que o próprio avô havia sido torturado durante aquele ano.

Carlos Gomes havia feito uma promessa em abril: nunca mais seria chamado de covarde. Enfrentaria sozinho se preciso os revolucionários, mas não ouviria nunca mais alguém criticando-o por fugir da luta. Correram seis meses sem que o voto fosse posto em prática. Até que no final de setembro, começaram as primeiras notícias de que os revolucionários planejavam uma nova tomada da cidade. Desta vez, no entanto, o intendente estaria preparado. Organizou trincheiras para o combate de 2 de outubro, usou como quartel-general a casa do sogro, onde morava, no que hoje são as esquinas das ruas João Moreira e Pinheiro Rocha. Durante a primeira hora de combate não se furtou de arriscar a vida ao ir e vir inúmeras vezes até a frente do prédio auxiliando os governistas, alcançando-lhes as armas. Até que numa dessas idas e vindas, foi atingido. Tombou ali mesmo. Lutando.

“Eu acho que vou sofrer retaliações a partir da publicação do meu artigo. Meu trabalho derrama sangue. Mas isso só mostra como essa questão de chimangos e maragatos ainda pesa”. A declaração de Dalva não é feita com medo. Não há receio do que possa acontecer, mas resignação. São Francisco de Assis aprendeu a lidar com o silêncio e sabe que ele pode ser tanto um instrumento de fuga como de agressão. A divisão entre lenços brancos e vermelhos não é mais formal, é velada. Nos 90 anos do combate, uma placa comemorativa foi colocada na praça Manoel Vianna. Não demorou muito e, na calada da noite, sumiu. A prefeitura alegava que nada sabia, mas informação aqui, informação ali, a suspeita era de que estava guardada (ou escondida?) justamente na prefeitura. Estrategicamente, foram feitas algumas insinuações de que o caso seria revelado à imprensa se nada fosse resolvido. Como num passe de mágica, a placa voltou dias depois. “Por que tiraram a placa de lá? Porque só tinha nome de maragato lá”, afirma o historiador Valdevi de Lima Maciel.

Aqui ninguém matou um desconhecido. Esse confronto foi fraticida. Os irmãos, familiares, amigos, pessoas muito próximas mataram umas às outras. – Dalva Medeiros, psicóloga

Dalva Dorneles Mederiso, psicóloga | Foto: Maria Eduarda Fortes

Trajano Rodrigues tinha uma dívida de gratidão a ser paga. Tempos antes, o tenente-coronel de Dom Pedrito havia enfrentado os governistas na sua região. Lá, recebeu a ajuda decisiva do piquete liderado pelo coronel Hortêncio Rodrigues, de São Francisco de Assis. Desde então, se colocou à disposição para ajudar o amigo quando fosse necessário. Naquele 2 de outubro, surgiu a oportunidade. Só que durante os duelos, Trajano foi ferido mortalmente. A história conta que vendo seu líder tombado, os demais combatentes de Dom Pedrito saíram de si, escalando o cenário de violência. Como Carlos Gomes também havia morrido, tomaram a intendência. Era hora de decidir o que fazer com os prisioneiros rendidos. É aí que a história se divide. Uma versão dá conta que, diante da insanidade que acometeu o piquete vizinho, Hortêncio tomou a dianteira e acalmou os ânimos, o que foi decisivo para o fim do combate, após duas horas e meia. Outra, indica que foi Hortêncio quem elevou a temperatura, orientando que os soldados rendidos fossem todos degolados, a exemplo do que muito se fez na Revolução Federalista. E que coube a um capitão o papel de apaziguador: Paulino Cipriano Haygert, também conhecido como Pimba.

A guampa continua intacta, sem nenhum sinal de que foi feita há 100 anos. Foi com ela a tiracolo, como caneca, que Hortêncio passou por toda a Revolução de 1923. “Tio Liberato Rodriguez era irmão do tio Hortêncio. Ele que fez a guampa para ser usada na revolução”, conta Neiva Rosback Dominguez, 85 anos, sobrinha-neta de Hortêncio. “E não tem nenhuma marca de bala”, completa, com um sorriso orgulhoso. Neiva conviveu com o parente mais famoso apenas criança, já que ele morreu de infarto quando ela tinha apenas oito anos. Ficaram as lembranças de um tio afável, que trazia presentes como bonecas de louça e tinha fama de corajoso e leal aos amigos. “Me criei com eles se reunindo lá em casa. Sempre gostei de escutar histórias, escutava tudo. Hoje, o maior partido do Brasil é o partido da conveniência. Naquela época, meus pais me falavam em trabalhar pelo país. O meu tio lutava acima de tudo por um ideal”, garante. Hortêncio, no entanto, é uma figura emblemática no Combate de 1923 e que divide opiniões. Para muitos, foi a figura mais sanguinária no 2 de outubro. “Me desculpa, mas quem vai para uma revolução não é peidorreiro. O Hortêncio era um homem de personalidade, não dava volta para trás.” Em alguns dos relatos colhidos por Dalva Medeiros, no entanto, a imagem é forte. “Foi ele quem, com sua espada, decepou uma mão do velho e já vencido Major Estevão Brandão. A mesma espada teve depois sua lâmina partida, quando seu dono atroz, aplicou tremenda pranchada na cabeça do legalista Capitão Antônio Carpes”, aponta um depoimento. Aos 81 anos, Ori Heigert corrobora essa linha. Filho mais velho do coronel Pimba, ele cresceu ouvindo outra versão sobre a tomada da intendência. “Hortêncio foi para degolar meu pai, porque ele desobedeceu e impediu a degola dos soldados”, afirma, e continua: “Foi um ato de bravura dele. Ele era capitão e Hortêncio era coronel. E dentro das forças deles, existia um regulamento, quem desobedecesse seria degolado”.

Sobrinha-neta de Hortêncio Rodrigues, Neiva Rosback Dominguez | Foto: Maria Eduarda Fortes

O relógio ainda não havia chegado às 9h. Já não se ouvia mais o barulho dos tiros e das lâminas das espadas. As dezenas de mortos continuavam espalhadas pelas vias que circundam a praça e a intendência. Muitos outros, feridos, mas ainda vivos, eram colocados nos bancos da igreja, que servia como um arremedo de serviço de triagem. Dentro do possível seriam levados para o hospital mais próximo, em Alegrete. O saldo era negativo por onde se olhasse. Os governistas reuniram cerca de 40 combatentes e perderam pelo menos a metade deles, incluindo o intendente Carlos Gomes, o delegado e o sub-delegado. Os revolucionários, com a desvantagem de terem que tomar a iniciativa e sem posições estratégicas viram cerca de 80 dos seus 200 caírem. A intendência fora tomada, mas por pouco tempo. Sabia-se que logo as forças de Flores da Cunha atravessariam o rio Ibicuí e, muito mais numerosa, chegaria a São Francisco de Assis. Assim, naquela tarde mesmo os revolucionários partiram. Ficaram os mortos. E o trauma.

Túmulo do coronel Pimba | Foto: Maria Eduarda Fortes

As chuvas que castigaram o Estado este ano adiaram a inauguração de um monumento em homenagem às vítimas do Combate de 1923 na praça Manoel Vianna. Depois de uma série de datas proteladas, a obra foi finalmente entregue nessa terça-feira. Trata-se de duas mãos feitas de bronze envelhecido se cumprimentando. O artista plástico Tadeu Martins recebeu algumas poucas instruções: não ter qualquer menção a lenços e muito menos às cores branca (dos chimangos) ou vermelha (dos maragatos). Não por acaso. “O que a gente quer é que isso não aconteça mais. E a gente não pode esquecer. Então, o monumento foi pensado desta forma. Viver o fato e não copiar o fato. Que não sirva de exemplo daquela maneira. Poderia ser diferente, na conversa, sei lá como”, afirma o prefeito Paulo Cortelini, torcendo para que pelo menos nos próximos 100 anos haja mais conversa. E menos silêncio.


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