Se o tratamento é um sucesso, por que não publicam os resultados?, questiona gerente do Clínicas

Se o tratamento é um sucesso, por que não publicam os resultados?, questiona gerente do Clínicas

Médico epidemiologista Ricardo Kuchenbecker esclarece informações a respeito do “tratamento precoce com o chamado kit Covid

Flavia Bemfica

Kuchenbecker também avalia do ponto de vista médico mudanças pretendidas na estratégia contra a Covid-19 no RS

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Em entrevista ao Correio do Povo o médico epidemiologista Ricardo Kuchenbecker esclarece informações a respeito do 'tratamento precoce’ com o chamado kit Covid e avalia do ponto de vista médico mudanças pretendidas por lideranças políticas e empresariais na estratégia contra o coronavírus no RS. Gerente de risco do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e integrante do comitê científico de apoio ao enfrentamento à Covid-19 montado pelo governo do Estado, Kuchenbecker está na linha de frente do combate à pandemia no RS. Leia os principais trechos.

Correio do Povo: Lideranças políticas e empresariais do Estado estão solicitando ao governador Eduardo Leite (PSDB) alterações na política de enfrentamento ao coronavírus no Estado. Uma das alterações propostas é disponibilizar o “tratamento precoce”, cuja base é a administração do chamado kit Covid (composto por medicamentos como cloroquina, hidroxicloroquina, azitromicina, ivermectina, zinco e vitamina D). É possível adotar o kit Covid como protocolo de tratamento em todo o RS?

Ricardo Kuchenbecker: Estas lideranças apresentam alguma evidência científica que comprove a eficácia de algum destes medicamentos? Porque elas não existem. Se, por tratamento precoce, estas lideranças entendem o chamado kit Covid, que representa azitromicina, ivermectina, hidroxicloroquina (e/ou cloroquina), vitamina D e zinco, se é disto que estamos falando, a resposta é: não há evidência científica sustentando este tipo de utilização destes medicamentos, seja do ponto de vista individual, seja do ponto de vista do coletivo, de todos somados, ou associados em diferentes combinações. Estas evidências, que devem ser avaliadas a partir de ensaios clínicos randomizados, que são a melhor evidência disponível que a ciência conhece, não existem. Não foram feitos estudos avaliando estas estratégias. E os estudos que avaliaram de forma individual a hidroxicloroquina, por exemplo, seja para tratamento, seja para prevenção, seja para profilaxia, deram resultados negativos.

CP: E quanto à ivermectina?

RK: Não há estudos clínicos que sustentem a administração da ivermectina. Não há estudos em seres humanos que sustentem uma combinação que chamamos de eficácia e segurança.

CP: Nenhum destes medicamentos evita o contágio pelo coronavírus?

RK: Não há estudos documentando que qualquer um destes medicamentos, isoladamente, ou em grupo, sejam capazes de impedir que uma pessoa adquira o vírus. Mais do que isto: não há evidência de que estas medicações, isoladamente ou em grupo, sejam capazes de tratar uma pessoa com a infecção da Covid.

CP: Parte de prefeitos, deputados e lideranças empresariais argumentam que os medicamentos que integram o kit Covid não estariam sendo eficazes porque são administrados tardiamente. E defendem que, caso fossem administrados dentro dos primeiros sete dias a partir do aparecimento dos sintomas, no que denominam de ‘fase viral’, seriam eficazes para evitar que os casos se agravassem. Existe esta possibilidade?

RK: Não há estudos científicos que documentem o tratamento da Covid em fases. Não foram produzidos estudos na ciência até hoje.

CP: É possível explicar então por que estas teses continuam a arregimentar defensores, entre eles integrantes da comunidade médica?

RK: Sempre há algum médico que, de alguma maneira, constrói hipóteses baseadas em uma observação não sistemática de casos e tira conclusões que mereceriam ser fundamentadas cientificamente. Quando não são, não podem ser aplicadas. Veja: se a cada 100 pessoas que se infectam com o vírus, 90 vão se curar sozinhas, o fato de eu aplicar medicamentos que são isentos de eficácia e de segurança não muda isto. As 90 vão se curar igualmente. Mas terei a falsa impressão de que elas se curaram pelo medicamento. Quando, na verdade, a cada 100, entre 85 e 90 se curam sozinhas. Então não há relação. A hidroxicloroquina, em especial, foi avaliada em pacientes mais graves, e não deu resultados positivos. Mais do que isto: deu resultados negativos, aumentando arritmias cardíacas. Esta mesma droga foi avaliada em pacientes menos graves, com sintomas iniciais, e não apresentou resultados de eficácia e segurança. Não funciona. E esta mesma droga foi avaliada em estudos como profilaxia. E também não apresentou resultados.

CP: Observou-se este mesmo tipo de comportamento no Norte e no Nordeste do país quando a pandemia explodiu naquelas regiões. Os números acabaram confirmando que, apesar do uso dos medicamentos, o número de casos, e a mortalidade, cresceram expressivamente. Apesar disto, a partir do momento em que o coronavírus atingiu com força o RS, diversos prefeitos, de pequenas a grandes cidades, aderiu ao kit Covid e o está distribuindo. Ao que é possível atribuir a insistência nestes tratamentos?

RK: É preciso entender isto a luz da psicologia das massas, como disse Sigmund Freud em seu livro clássico. Quando estamos diante de uma pandemia para a qual a humanidade não tem defesas, e, portanto, há um impacto enorme em termos de casos, as pessoas buscam desesperadamente por soluções. E estas soluções nem sempre são embasadas em evidências. Deveríamos aguardar a publicação de evidências científicas para não cometer equívocos. Isto não é novo. Nos anos 90, acreditávamos que poderíamos tratar pessoas portadoras do vírus HIV com altas doses de um único medicamento chamado zidovudina. Começamos a fazer isto, os Estados Unidos foram pioneiros. E, logo na sequência, se mostrou que este medicamento, sozinho, causava mais mortes do que o placebo. Na década de 90 tivemos estudos observacionais análogos a estes que estão sendo sustentados para a hidroxicloroquina, que foram avaliados em pacientes com arritmia cardíaca no pós-infarto. E se acreditava que ministrar antiarrítmicos interferia nisto. Também se demonstrou que esses remédios causavam mais mortes do que o placebo. Não é suficiente eu descrever uma doença como a Covid nas suas fases. Preciso testar os medicamentos para cada uma e nada disto foi avaliado cientificamente até o momento.

CP: Na manhã desta quinta-feira o líder da bancada gaúcha na Câmara dos Deputados cogitou a possibilidade de mudanças na forma de tratamento. Conforme ele, a doença é tratada por infectologistas em hospitais e muitos deles não estariam dando a devida atenção ao sucesso alcançado por médicos de diferentes especialidades na administração dos medicamentos do kit Covid dentro do tratamento precoce.

RK:  Existe uma forma muito fácil de documentar este sucesso. É ele sendo publicado. Por que estes estudos empíricos não estão sendo publicados? É simples. Inclusive, se eles forem publicados, isto vai ajudar sobejamente a espécie humana. Se os infectologistas não são os médicos mais experientes para tratar os pacientes com a Covid, eu realmente não saberia dizer quais são.

CP: O deputado também referiu que os que estão na linha de frente no combate ao coronavírus no RS ‘infelizmente são muito vinculados politicamente e têm preconceito’ com os medicamentos do kit.

RK: Difícil responder a algo assim não é?  Médicos tem uma finalidade precípua de ajudar os outros e, para isto, fazem o melhor uso possível das evidências científicas. Para não causar danos. Não causar dano é um dos pressupostos de Hipócrates, quando a medicina não tinha nem sido criada. Não é uma questão política.

CP: É possível que o RS venha a adotar como política estadual o protocolo do tratamento precoce com o kit Covid?

RK: Não. Acredito que isto é muito pouco provável, porque o estado do Rio Grande do Sul tem se pautado por uma resposta a pandemia baseada em evidências científicas. Que eu saiba isto não está em discussão no Comitê.

CP: É possível substituir as restrições à circulação pela testagem em massa unicamente? O senhor tem conhecimento de uma estratégia assim em algum outro lugar, que possa ser usada como referência?

RK:  O teste não é um escudo, ele é uma informação diagnóstica. Se, por hipótese, testássemos 100% da população do RS em um único dia, e 20% apresentasse teste positivo, o que faríamos com essa parcela da população. E com os que testassem negativo? Não é assim que se desenvolve uma estratégia de testagem em massa. A estratégia precisa ser direcionada, por exemplo, para profissionais de saúde, para surtos, profissionais que desempenham atividades estratégicas. Todos os países que utilizaram estratégias de testes em grande escala fizeram isto de uma maneira orientada pela pandemia, e não uma utilização indiscriminada de testagem. Testar em massa, sem critério, é igual a não testar.

CP: E o pleito de transferir aos municípios a autonomia para cumprir os protocolos de cada bandeira. Dar esta autonomia poderia ser mais eficaz do que um controle centralizado pelo governo estadual?

RK: Esta é uma alternativa que desconsidera o pacto federativo. O SUS só é efetivo em sua resposta a uma pandemia se ele for interfederativo. União, estados e municípios devem trabalhar em uníssono, baseados em evidências científicas. Se abrirmos isto para os municípios, que não possuem a retaguarda científica suficiente para definir suas condutas, talvez estejamos abrindo um precedente grave. É muito importante que dialoguemos com a sociedade, principalmente porque é muito difícil fazer frente ao grau de desinformação que as vezes observamos, sobretudo quando ele é proveniente de nossas lideranças. 


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