A controversa compra de gado vacinado

A controversa compra de gado vacinado

Entrada no Estado de 6 mil bovinos nesta condição preocupa pecuaristas gaúchos e especialistas em bem-estar animal

Nereida Vergara

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Uma operação legal de importação de gado vacinado do Mato Grosso para abate em dois frigoríficos da Marfrig no Rio Grande do Sul, em Alegrete e São Gabriel, vem causando preocupação a pecuaristas e especialistas em bem-estar animal desde o dia 5 de agosto deste ano. A entrada dos bovinos vacinados direto para o abate é autorizada pela Instrução Normativa nº48 do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e se sobrepõe ao fato de o Estado ser detentor do status de zona livre de febre aftosa sem vacinação. Do lado do bem-estar, veterinários argumentam que o estresse imposto aos bovinos é imenso, devido à extensão da viagem (cerca de 2 mil quilômetros do Mato Grosso até a cidade de Alegrete) e ao fato de percorrerem essa distância com apenas uma parada para descanso. Do ponto de vista do produtor, a ressalva é quanto à contribuição dessas importações para um achatamento ainda maior do preço do boi em território gaúcho, já pressionado pela entrada de carne vinda de outros estados e pela diminuição do consumo.

Marcelo Göcks, coordenador estadual do Programa Nacional de Vigilância para a Febre Aftosa (PNEFA-RS) da Secretaria da Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural (SEAPDR), tranquiliza a população quanto ao risco de contaminação do rebanho com a operação da Marfrig. "O Mato Grosso é estado com status de zona livre de febre aftosa com vacinação, sem circulação viral há muitos anos", esclarece. 
Göcks, entretanto, reconhece a penosidade do trajeto para os animais e ressalta que isso gerou a necessidade de o Estado se adaptar ao regramento do Mapa. "Na Instrução Normativa nº 11, de 5 de agosto de 2022, criamos a parada de descanso, em uma propriedade de Frederico Westphalen, no meio do caminho entre o Mato Grosso e Alegrete. No local, os animais descem do caminhão e ficam isolados enquanto descansam, depois voltam ao caminhão, que é lacrado novamente", destaca.

O coordenador do PNEFA/RS informa que desde 5 de agosto ingressaram no Estado 159 cargas destinadas às unidades da Marfrig. O número é contabilizado pelas Guias de Trânsito Animal (GTAs) e representa um total de 6.097 bovinos. De acordo com Göcks, o Estado adotou a parada depois de uma experiência que comprovou a chegada dos animais no frigorífico em péssimas condições, alguns deitados no caminhão e com lesões. "Nossa função foi deixar menos sacrificante a viagem, uma vez que não temos como proibir uma operação que é chancelada pelo ministério'', pontua.

Bruno Teixeira, veterinário e conselheiro do Conselho Regional de Medicina Veterinária (CRMV), e Richard Alves, presidente da Associação dos Fiscais Agropecuários do Rio Grande do Sul (Afagro), questionam a norma do Mapa e não têm certeza sobre a eficácia da adaptação feita pela SEAPDR para amenizar o sofrimento dos bovinos transportados. Alves ressalta que quando os bovinos ficam longos períodos em jejum há comprometimento de suas vísceras, que podem se romper na hora do abate e até condenar completamente a qualidade da carcaça. "A própria parada para que os animais desçam do caminhão é mais um acréscimo ao estresse. Por que trazer bovinos de fora depois que conquistamos o status de zona livre sem vacinação? Por que não comprar os animais que os nossos produtores têm no campo e evitar esse sofrimento? A única motivação que encontramos é econômica", diz o dirigente. Na mesma linha, Teixeira observa que os pecuaristas gaúchos têm sido prejudicados, ao contrário do que se esperava com a obtenção do status diferenciado, com abertura de novos mercados. "Do que adianta o status, então, se estamos abatendo gado vacinado?", questiona.

"Até o momento, o criador de gado de corte não teve nenhuma vantagem auferida com o status de zona livre de febre aftosa sem vacinação. Desde o início, particularmente, achei que as vantagens iriam para a suinocultura. Mas não podemos questionar a operação da Marfrig porque ela está inserida nas regras de livre mercado que o Mapa entende como corretas", avalia o presidente da Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul), Gedeão Pereira. No entendimento do dirigente, porém, essa prática se apresenta agora como uma desvantagem e agrava realmente a precificação do boi no Estado.

De janeiro a outubro, o preço do quilo do boi gordo no Rio Grande do Sul teve um recuo acima de 15%, segundo aponta o coordenador do Núcleo de Estudos em Sistemas de Produção de Bovinos de Corte e Cadeia Produtiva (NESPro/UFRGS), professor Júlio Barcellos. De R$ 11,11 em 5 de janeiro, o valor caiu para R$ 9,33 em 2 de novembro, resultado de um conjunto de fatores, afirma o professor, sendo o principal deles o recuo no consumo. Queda nas importações feitas pela China e diminuição no volume de abates pela indústria, salienta Barcellos, também entram nessa conta, assim como a entrada de carne e de animais para o abate vindos de outros estados. "Há um impacto significativo para o pecuarista sim, e não é pouco", comenta.

O grupo Marfrig foi procurado para explicar a razão pela qual está havendo importação de gado vacinado para as unidades de Alegrete e São Gabriel e se há eventuais perdas de carcaça em razão das circunstâncias impostas aos animais na viagem, mas não se manifestou até o fechamento desta edição.


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895