Onde a inteligência artificial é bem-vinda

Onde a inteligência artificial é bem-vinda

Projeto desenvolvido pela Embrapa, que prevê a detecção de doenças nas lavouras do Brasil utilizando sinais neurais de especialistas na análise de plantas de diferentes culturas, é exemplo da aplicação positiva que a ferramenta pode ter

Patrícia Feiten

publicidade

Do lançamento do ChatGPT – um robô virtual capaz de produzir textos, criar poemas e explicar praticamente qualquer coisa – e da popularização de imagens adulteradas que parecem reais à anunciada recriação da voz de John Lennon para lançar “a última música dos Beatles”, a inteligência artificial dominou os noticiários no último semestre. Se os últimos avanços na área expõem dilemas éticos e até o temor de que, no futuro, as máquinas possam controlar os humanos, pelo menos na agricultura os impactos desse campo científico ficam longe de polêmicas. Soluções baseadas na tecnologia estão auxiliando os produtores a ser mais eficientes, com economia de tempo, recursos e dinheiro.

Exemplo desse uso benéfico da inteligência artificial, um sistema desenvolvido pela Embrapa promete facilitar a tarefa de detecção de doenças que ameaçam a lavoura. Em parceria com a japonesa Macnica DHW e a israelense InnerEye, a empresa de pesquisa vem testando desde abril do ano passado um equipamento que capta e simula os sinais neurais de especialistas responsáveis por analisar imagens de plantas doentes. Por meio de um capacete com eletrodos, o sistema opera como um eletroencefalograma (EEG). Ao assimilar as ondas cerebrais dos fitopatologistas, “aprende” a identificar as enfermidades e classificar as imagens, o que permite automatizar o processo de rotulagem. 

Com a novidade, os pesquisadores esperam garantir rapidez às tomadas de decisão no campo, diz o pesquisador da Embrapa Agricultura Digital e líder do projeto, Jayme Barbedo. Segundo o especialista, a tecnologia da InnerEye, que desenvolveu o equipamento BrainTech, promete resolver um dos grandes gargalos atuais na aplicação da inteligência artificial a esse tipo de trabalho. “Para ‘ensinar’ o computador a fazer essa identificação, você precisa ter uma quantidade grande de imagens, tem de dizer para o computador o que você tem em cada uma, e esse processo de anotação é demorado”, explica. Além de possibilitar a anotação de três imagens por segundo, afirma Barbedo, o sistema inclui mecanismos para aumentar o grau de confiabilidade da classificação, pois é capaz de detectar se o especialista está cansado ou se ele se distraiu em algum momento do trabalho.

Segundo Barbedo, até o momento os pesquisadores já avaliaram em torno de 2 mil imagens de folhas de soja e 700 de milho. Os primeiros resultados do estudo foram positivos. Assim que os modelos treinados estiverem concluídos, a tecnologia poderá ser embarcada, por exemplo, em aplicativos de celular para oferta aos produtores rurais. Na prática, o próprio agricultor que estiver a campo poderá fazer uma foto da planta e obter um diagnóstico preliminar do problema que ela apresenta. “Você automatiza o monitoramento da lavoura, sem a necessidade de (agrônomos) irem lá. Em propriedades muito grandes, esse monitoramento é complicado”, destaca o pesquisador.

A expectativa da Embrapa e das empresas envolvidas no projeto é que até o final deste ano a primeira versão do aplicativo seja liberada para download em serviços de distribuição digital, como a Playstore, possivelmente de forma gratuita. Outra alternativa em estudo é a incorporação do sistema de reconhecimento a máquinas agrícolas, segundo o presidente da Macnica DHW no Brasil, Fábio Petrassem de Sousa. “Não temos uma data para isso, a gente precisaria ainda se engajar com os fabricantes, verificar o interesse deles. Mas, primariamente, o objetivo é disponibilizar da forma mais democrática possível esse conhecimento”, afirma o executivo.

A mesma tecnologia, segundo Petrassem, pode ser aplicada em indústrias que exigem inspeção visual e alto padrão de qualidade na produção, caso do setor automotivo. O sistema de reconhecimento também já está sendo adotado em alguns aeroportos europeus para a identificação de objetos perigosos em bagagens. “A gente consegue agilizar esse processo e trazer uma uniformidade no critério de identificação. Se tivermos um aeroporto grande, com oito linhas de raio-X, por exemplo, 18 especialistas estarão olhando para a máquina e eles não necessariamente têm o mesmo nível de experiência”, diz o executivo. 

No caso do agronegócio, a Macnica e a Embrapa também vislumbram o uso da novidade no diagnóstico de doenças de animais, com base na identificação de sons emitidos por eles. O projeto, explica Petrassem, seguiria o mesmo roteiro básico: treinar o sistema a partir do conhecimento do veterinário apto a associar o comportamento animal a uma determinada enfermidade. “Usamos a tecnologia da InnerEye como uma ponte entre a experiência humana e a inteligência artificial. Quando a gente consegue capturar essa experiência e transferir para dentro do algoritmo, não tem mais esse gargalo, de muita gente tentando acessar uma fonte de conhecimento que é limitada”, destaca Petrassem.

Como funciona

  • O sistema “imita” o funcionamento cerebral de especialistas no momento em que visualizam imagens de plantas doentes. O objetivo é simular, tão próximo quanto possível, o processo cerebral da pessoa quando identifica algo ou toma uma decisão, como foi feito com os fitopatologistas que participaram da pesquisa.
  • O primeiro passo é a calibragem do modelo, ajustando-se um capacete com eletrodos na cabeça do especialista para identificar seus sinais cerebrais. Isso porque cada pessoa tem um padrão diferente, ou seja, os sinais elétricos do cérebro são distintos de um indivíduo para outro.
  • Uma vez que o sistema “aprendeu” como a mente da pessoa funciona, começa o processo de rotulagem da base de dados. Os especialistas são instruídos a enumerar (1, 2, 3 …) as folhas doentes quando as virem na tela, que apresenta três imagens por segundo. O sistema vai capturando os sinais cerebrais emitidos a cada novo estímulo, que são diferentes de quando se visualiza uma folha saudável.

Fonte: Embrapa 

Solix Hunter, o robô que caça e elimina insetos nocivos às plantações

Com pouco mais de dois metros de altura, equipamento é capaz de encontrar pragas como o bicudo-da-soja, a cigarrinha-do-milho e os gafanhotos, sem agredir os agentes polinizadores

Um robô exterminador de insetos, que percorre o campo durante a noite à procura de vilões da lavoura de difícil controle – como o bicudo-da-soja, a cigarrinha-do-milho, a mosca-branca, gafanhotos e mariposas – e os elimina antes que completem seu ciclo reprodutivo. Tudo isso sem uso de agroquímicos e sem riscos para os agentes polinizadores, os insetos “do bem”, essenciais para a produtividade agrícola e a segurança alimentar. O equipamento com dois metros de altura e 2,5 m de largura, que parece saído de um filme de ficção científica, é uma criação da Solinftec. A empresa desenvolve ferramentas baseadas em inteligência artificial para a agricultura aliando a robótica a técnicas de manejo integrado de pragas (MIP).

Batizado de Solix Hunter e equipado com placas solares, o robô noturno atrai os insetos por meio de comprimentos de ondas de luz específicos, neutralizando-os com eletrochoques. Segundo o head de robótica da Solinftec, Bruno Pavão, um dos diferenciais do equipamento é a possibilidade de percorrer áreas de interesse dentro da lavoura, executando “missões” específicas. No caso de insetos que realizam saltos ou voos de curta distância, o Hunter pode ser programado para parar em pontos específicos onde consegue capturá-los. “O produtor ou a equipe técnica pode desenhar o caminhamento desse robô. Então, dependendo do comportamento do inseto, as missões podem ser feitas na bordadura, na parte interna do talhão. Podem ter caminhamentos de 20 metros a 50 metros, paradas onde as luzes vão ficar intensificando a atração e a captura durante 30 minutos”, exemplifica Pavão.

O robô exterminador, lançado em março deste ano, durante a Agrishow, em Ribeirão Preto, São Paulo, custa R$ 250 mil, estando preparado para desenvolver “missões” na área de plantio, onde suas luzes atraem os insetos indesejados  | Foto: Cristiano Requena / Divulgação / CP.

Lançado em março deste ano durante a Agrishow, em Riberão Preto (SP), o Hunter tem custo de R$ 250 mil e faz parte de uma solução completa de inteligência artificial da Solinftec, a Solix AG Robotics. No ano passado, a empresa lançou o modelo que serve de base para toda a plataforma, o robô Scouting. Também alimentado por energia solar, o dispositivo escaneia as lavouras coletando dados e fazendo análises detalhadas das plantas. 

Integra a plataforma ainda o modelo Solix Sprayer, um robô que promete manter lavouras de grãos livres de plantas invasoras com uma aplicação mais cirúrgica de herbicidas. Abastecido por quatro painéis solares, o equipamento opera 24 horas e fornece recomendações de velocidade de vento e melhores horários para pulverização, podendo cuidar de até 200 hectares por dia. “A gente consegue atingir casos de 70% a 93% de redução de (uso de) produto químico, com a certeza de estar quebrando o ciclo reprodutivo da planta daninha, por se tratar de uma inteligência que consegue apanhar a identificação dessa erva no seu estágio inicial no campo”, diz Pavão. 

Outro ponto forte do modelo, segundo o fabricante, é sua capacidade de evitar a deriva durante o manejo de herbicidas. Por ser uma máquina mais leve e operar com velocidade mais baixa, o robô apresenta maior estabilidade das barras, respeitando também a recomendação de espaçamento entre bicos, normalmente de 50 centímetros. 

Dispositivo faz previsões de tempo mais precisas no campo

Sistema desenvolvido por Mariana e Ricardo oferece ao produtor informações sobre as condições mais favoráveis para semeadura, tratos culturais e colheita | Foto: Mariana Vianna / Arquivo pessoal. 

Fundada em 2018 pelo casal Ricardo Sodré e Mariana Vianna, a agtech de inteligência climática FieldPro vem transformando a rotina de propriedades rurais pelo Brasil com uma tecnologia que cruza informações de estações meteorológicas e satélites com dados de microclima de áreas agrícolas específicas. Compacta, a solução é aparentemente simples. A parte visível consiste em um dispositivo portátil em formato de haste, que é instalado na lavoura pelo próprio agricultor. Capaz de cobrir uma área de até mil hectares – ou um raio de 2 km –, o equipamento coleta dados de clima, plantas e solo e é conectado a uma plataforma de gestão da empresa, que pode ser acessada por aplicativo de celular ou por computador. 

Pelo sistema, o produtor recebe orientações sobre as condições ambientais mais favoráveis para fazer a semeadura, manejos e a colheita. Segundo Sodré, o projeto nasceu da proposta de combinar facilidade de instalação e uma relação custo-benefício atraente para produtores de qualquer porte, eliminando os gastos com manutenção, combustíveis e intervenção humana geralmente associados a unidades de monitoramento de clima. “O nosso produto não tem manutenção. Você coloca lá, ele tem um painel solar autolimpante e mede a chuva pelo impacto. Não tem nenhuma limpeza a ser feita, e a calibração é feita à distância”, explica o empreendedor.

Em parceria com a empresa de sistemas SpaceX, a Fieldpro lançou o dispositivo no mercado brasileiro em 2021. Com 1,7 metro de altura e dotado de 14 sensores, o equipamento fornece dados sobre temperatura, direção do vento, umidade do ar e do solo no ponto onde está instalado. “Com isso, consigo ter um modelo meteorológico sem viés de influência de outro microclima. Todos os modelos atualmente têm uma influência, os produtos estão distantes da área (de interesse) ou, pior ainda, numa cidade onde você tem ilhas de calor até 11° C de diferença e a chuva é muito localizada”, afirma Sodré. 

A FiedPro promete ainda recomendações “personalizadas” para cada tipo de cultivo. “O produtor de soja, de milho, de trigo vai ter o estádio fenológico da cultura dentro do sistema, que vai avisar como foi a emergência, se teve uma radiação solar ideal, o balanço hídrico ideal para uma boa produtividade”, exemplifica Sodré. O dispositivo, afirma o empreendedor, pode ser utilizado em áreas a partir de 100 hectares. O custo de aquisição é R$ 5.900, mas a agtech oferece também a alternativa de aluguel (comodato) pelo período mínimo de um ano. “O produto se paga em uma safra. Obviamente, o agricultor com mais de mil hectares tem um custo de insumos maior e vai ver mais rapidamente a economia que está fazendo. Mas qualquer agricultor pode se beneficiar”, diz. 

Atualmente, mais de 400 propriedades rurais brasileiras já utilizam o dispositivo, sendo mais de 20 localizadas no Rio Grande do Sul. Segundo Sodré, a empresa tem planos de expansão no Estado, onde já atua em parceria com concessionárias das redes John Deere, Valtra e Case IH. “Queremos ampliar os nossos pontos de distribuição além das máquinas agrícolas. Queremos ter mil pontos no final do ano que vem (no Brasil) e muitos no Rio Grande do Sul”, adianta o empreendedor.


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895