Imigrante haitiano supera dificuldades e conclui curso Técnico de Enfermagem

Imigrante haitiano supera dificuldades e conclui curso Técnico de Enfermagem

Jhonson Saint Jean espera que sua história sirva de inspiração para outras pessoas

Felipe Samuel

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As dificuldades econômicas enfrentadas pelo Haiti, agravadas por um terremoto que devastou a capital Porto Príncipe e o sul do país em 2010, poderiam ser motivos suficientes para qualquer pessoa desistir de seguir em frente. Não foi o que aconteceu com Jhonson Saint Jean, 40. Quatro anos após desembarcar no Brasil com o sonho de ganhar a vida no país e garantir uma vida melhor para a família, o imigrante haitiano concluiu o curso de técnico em enfermagem.

A história de esforço e superação começou a ganhar forma em 2018, quando Jean voltou pela segunda vez ao Brasil. Formado em Ciências Econômicas e Psicologia, no Haiti, ele recebeu uma bolsa de estudos do governo brasileiro, em 2016, para aprofundar os estudos em Psicologia. No país caribenho, Jean já atendia pacientes no consultório. Por conta de mudanças do governo, a bolsa foi cancelada e ele retornou para o país caribenho. Mas o que poderia se tornar frustração acabou se transformando em motivação.

Em 2018, ele desembarcou em Porto Alegre. Ali iniciava uma jornada marcada por dedicação e disciplina. Sem conseguir conciliar o curso de Eletrotécnica, na Escola Técnica Estadual Parobé, com o trabalho em um restaurante, ele tomou uma decisão após o antigo patrão sugerir que ele teria que optar entre o emprego ou estudo. Incomodado com a situação, Jean conversou com um amigo sobre o caso, que o informou que a Santa Casa tinha vagas para imigrantes. Era uma possibilidade de trabalhar e conciliar os estudos. “O meu sonho era de poder crescer na rica cultura brasileira”, afirma.

Em abril de 2019, Jean começou como auxiliar de serviços gerais. Pouco tempo depois foi contemplado com uma bolsa de estudos da Santa Casa. “Ganhava uma bolsa na área de Técnico de Enfermagem”, completa. Inspirado pelo antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, considerado fundador da antropologia estruturalista, Jean afirma que o Brasil é “bom para viver”. Apesar de contar com curso superior e dominar três idiomas - português, francês e crioula haitiano -, atuou três anos e cinco meses como auxiliar de serviços gerais.

“Não é qualquer um que aceita o desafio de trabalhar em uma área que não é a sua de formação, como serviços gerais, e ter ânimo para estudar para outro curso”, ensina. No Haiti, ele lembra que contava com um funcionário para executar a limpeza do consultório. Mas todo esforço tinha uma justificativa: concluir o curso de Técnico em Enfermagem. “Foram dois anos e oito meses de curso. Não foi fácil ter que assistir a aula remota, à distância, aula online, presencial”, relembra, destacando que a pandemia da Covid-19 também prolongou o período de formação.

A jornada diária começava às 8h e se encerrava apenas às 21h20. Das 8h ao meio-dia, ele frequentava as aulas do curso Técnico em Enfermagem. E das 13h às 21h20 cumpria outras oitos horas de trabalho no hospital. “Eram 12 horas de estudo e trabalho. E depois ainda tinha que pegar o ônibus para ir para casa, na Zona Sul”, lembra. Desde outubro, ele trabalha na área de Diálise da Santa Casa. “Agora a situação é estável, porque graças a Deus tenho um emprego, fiz um curso e tenho dinheiro para sustentar e cuidar da minha família”, afirma.

Ele espera que sua história sirva de inspiração para outras pessoas. “Eu queria que todo mundo tivesse a mesma possibilidade para concretizar um sonho. Para sair do lugar que eu estava aqui eu pensava que tinha que ter disciplina e determinação. Eu estava lá na fazendo serviços gerais mas sempre pensava que eu tinha uma qualificação”, destaca. “Tenho bastante amigos venezuelanos concurso superior igual a mim. Tem bastante haitiano que tem qualificação, mas que não conseguiu ter uma possibilidade que eu tenho hoje”, completa.

Em Porto Alegre, ele reside com a esposa Youdeline e a filha Quezia, de um ano e cinco meses, que nasceu na Santa Casa. A meta agora é juntar dinheiro para tentar validar o diploma de Psicólogo no Brasil, um processo demorado e que pode custar caro. “Quero ter a possibilidade de validar um dos meus diplomas, poder crescer, fazer estudos superiores. Ver se tem como fazer a validação dos meus diplomas e fazer um mestrado, um doutorado, que é um sonho, na área de saúde”, frisa.

Natural de Porto Príncipe, ele sente saudade da mãe Erla e do pai Dieuseul, além dos irmãos e irmãs, que totalizam cinco. “Às vezes conseguimos falar pelo Whats App, mas agora tem uma crise muito grande (no Haiti), com falta de energia. É bem complicada a situação”, destaca. Habituado aso costumes gaúchos, Jean gosta de churrasco e chimarrão. “Levei a minha filha para assistir os eventos da Semana Farroupilha. Me considero gaúcho”, afirma.

Responsável técnica do serviço de diálise da Santa Casa, Degiane Rocha da Rosa acompanha a trajetória de Jean com atenção. “Ele chegou até mim para que a gente pudesse fazer uma entrevista e se eu achava uma oportunidade para que ele se desenvolvesse dentro da área de saúde”, relembra. “Aquela solicitação me remeteu ao início da pandemia, aonde a gente precisou abrir a mente e verificar potencialidades das pessoas e acreditar no potencial realmente delas em desenvolver em um setor de alta complexidade que é a hemodiálise”, salienta.

'Apresentou conhecimento básico da área de saúde muito bem apurado', diz gestora

Segundo Degiane, durante a entrevista para a vaga Jean apresentou conhecimento básico da área de saúde “muito bem apurado, muito estruturado, com bastante embasamento técnico”. “Percebi ali que ele estava tanto com a vontade, a determinação, quanto já com conhecimento bem mais amadurecido, porque o nível técnico muitas vezes não prepara tanto o profissional. Então eu disse pra ele que sim, que nós iríamos recebê-lo e que eu achava que teria esse grande avanço e possibilidade dele se desenvolver na área”, destaca.

O acolhimento dos novos colegas de trabalho facilitou a adaptação ao novo setor de trabalho. “A gente já vem com modelo de aperfeiçoar pessoas, qualificar as pessoas. E a gente tem a noção que o mercado não tem profissionais prontos. Então a gente oportuniza de fato com que as pessoas se aperfeiçoem, se desenvolvam e se realizem, porque além de ser um um desejo dele, a gente percebe que ele também tem desejo de alçar voos profissionalmente para também ter uma base familiar”, reforça.

Conforme Degiane, a integração com o grupo contribui no trabalho diário e na busca de um objetivo único, que é oferecer ao paciente renal crônico uma assistência de qualidade, com mais segurança. “A gente fica muito feliz pela escolha do Jhonson e realmente deseja que ele se realize profissionalmente e desenvolva essas atribuições do técnico de enfermagem com muita qualidade”, observa.

A conquista de Jean também inspira os novos colegas de trabalho. “A vontade dele pela área repercute positivamente em todo o setor, em todo o hospital. Porque às vezes a gente acaba guardando os nossos sonhos, engavetando os nossos sonhos por certos obstáculos, então isso faz com que ele demonstre interesse e demonstre para nós o quanto é importante a gente valorizar nosso trabalho, a nossa qualificação profissional e o nosso saber”, destaca.

Mais do que agarrar a oportunidade de trabalho, Degiane afirma que Jean foi aprovado pelos próprios méritos. “No momento que eu oportunizo alguém a crescer, a gente cresce junto. Fico muito orgulhosa. E ele veio com muita expectativa e achou até que não iria ser aprovado.  E ele foi aprovado devido a pontos positivos de conhecimento dele. Ele de fato foi guerreiro, brigou por esse espaço e a gente está oportunizando. Eu acho que a instituição também tem essa leitura e essa política de engajamento e de inserção social”, finaliza.


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