Ara Malikian une música clássica e rock em show sensorial em Porto Alegre

Ara Malikian une música clássica e rock em show sensorial em Porto Alegre

Violinista usou repertório para contar sua história em apresentação na noite de domingo

Eric Raupp

Libanês apresentou repertório com músicas de Bach a David Bowie

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Assistir a um show do libanês Ara Malikian é uma experiência sensorial. O artista, em passagem pelo Brasil pela primeira vez na carreira, apresentou na noite de domingo em Porto Alegre um espetáculo que fez os espectadores do Teatro do Bourbon Country viajarem pela história da música e vivencirarem os mais variados sentimentos. Em 2h30min, o violinista tocou um repertório composto por canções clássicas, autorais, e também pelo rock, todos com significados pessoais ligados à sua vida. Essa amálgama sui geresis - combinada a uma iluminação que seguia o ritmo do som, à paixão e energia pulsantes do músico e à diversidade de instrumentos que compõe a banda de apoio - resultou numa performance que terminou com uma ovação de mais de um minuto.

O espetáculo começou com Charles Humberto Armas (viola), Jorge Antonio Guillen del Castillo (violino), Nantha Kumar (percussão), Hector Osorio Heredia (percussão), Tania Bernaez Abad (contrabaixo), Cristina Lopes Garrido (cello) e Antonio Carmona Vives (guitarra) subindo ao palco e fazendo uma performance enérgica. Após um breve apagar das luzes, Ara Malikian surgiu, com seus longos cabelos cacheados, barba comprida e calça de couro, ditando um tom lento, suave e penetrante ao interpretar Vivaldi. Dono de um estilo único, forjado a partir de suas origens e de sua "genética multicultural" - descendente de armênios, ele nasceu na capital libanesa Beirute durante a guerra civil no país e é radicado na Espanha -, emendou duas canções num arranjo mais acelerado.

Foi então que ele se dirigiu à plateia pela vez. Carismático, o artista de 50 anos falou em espanhol, se desculpando por não saber português. Contou que o violino que usa é um item de família: pertenceu ao avô, natural da Armênia, que nunca soube tocá-lo. Dedicou a obra seguinte, uma canção tradicional do país asiático com ritmo dançante, ao seu ascendente. O show seguiu de forma estruturada; antes de cada peça, Malikian explicava a razão pela qual iria interpretá-la. Aos 15 anos, o músico se tornou a mais jovem pessoa a ser aceita na Musik und Theater Hannover em Berlim, e se migrou para a Alemanha para estudar. Ele explicou que, enquanto a maioria dos estudantes ostentava violinos de grandes marcas italianas, como Stradivarius e Guarneri, o seu não fora fabricado por um grande nome.

Certa vez, os colegas perguntaram quem havia construído seu instrumento, ao passo em que respondeu com a primeira palavra em italiano que veio à mente: “raviolli”. Sem entender, os colegas brincaram: “al pesto”. Ele retrucou: “Alfredo”. Malikian havia inventado um personagem, “Alfredo Raviolli”, quem o acompanhou durante a juventude e a quem compôs uma solfa. Verdadeiro e um dos maiores nomes da história do violino, Niccolò Paganini não ficou de fora do repertório. Sua “La Campanella” foi apresentada cheia de vigor e empolgou o público, que ensaiou palmas durante a apresentação.

Entretanto, foi uma versão revisitada de “Paranoid Android”, do Radiohead - grupo que o artista conheceu durante um festival na Inglaterra -, que deu início a uma seção mais contemporânea e agitada do show. Para satisfazer a banda, tocou também “Life on Mars”, de David Bowie, cujo arranjo é inconfundível até mesmo no violino. O frenesi foi atingido com “Kashmir”, do Led Zeppelin. Em sua longa explicação para a presença do trabalho no setlist, o libanês contou que sua adolescência foi dividida entre o rock, do qual a irmã, com quem morava, era fã, e os clássicos que o pai admirava. O patriarca repudiava o outro gênero, então, toda vez que visita os filhos, Malikian precisava esconder o pôster que tinha da banda em frente à cama. Ao terminar a canção, ele brincou: “se por acaso alguém encontrar meu pai, não conte que eu toquei essa música”.  O momento dedicado aos anos 1990 foi finalizado com o tema de “Pulp Fiction”.

Passada essa agitação, foi a vez do som puro e aveluadado do violino tomar conta do teatro num “ato” mais intimista, sóbrio e emocionante. Com extrema destreza, o libanês apresentou “Vals de Kairo”, composta ao filho Kairo quando este ainda nem era nascido. Na sequência, os acordes de “Requiem para um Louco” ecoaram entre as quatro paredes. A música foi composta em homenagem ao violino, quando Malikian pensou que o objetivo havia "morrido" devido à sua falta de zelo. Coube a um luthier a difícil tarefa de recompor o instrumento e ensinar uma lição que o músico passa a todos: “se bem cuidado, um violino pode durar anos, mais do que uma pessoa. Então eu quero que o meu toque para mim este requiem feito para ele quando eu morrer”.

Em meio a um repertório recheado de grandes nomes internacionais e de uma variedade de árias que bebe nas tradições indiana, árabe e cigana, o brasileiro Egberto Gismonti marcou presença com "Água e Vinho", canção de 1972 regravada pelo libanês no disco "15". Não faltaram elogios à fonografia brasileira, da qual o músico se declarou fã, arrancando aplausos e gritos da plateia. Mais um ingrediente à mistura cultural do libanês, cujas tatuagens e trajes de astro de rock quebram o padrão das principais orquestras e maestros de música clássica do mundo.

Performático, Malikian já havia mostrado o quanto tocar significa para ele e que canaliza suas energias e sentimentos na mão direita quando movimenta o arco nas cordas, mas a revelação da origem do seu violino explicou de onde vem sua paixão e sensibilizou a plateia. Era 1915 e, em meio ao Genocídio Armênio, o avô conseguiu fugir para o Líbano graças ao instrumento mesmo não sabendo manuseá-lo. "Por causa dele, meu avô sobreviveu", afirmou. Já em Beirute, o homem fez com que o filho aprendesse a tocar, tarefa repassada ao neto. Após contar essa história e se aplaudido pelo público, Malikian lembrou que o mundo vive hoje a pior crise de refugiados desde a Segunda Guerra Mundial, com mais de 60 milhões de deslocados ao redor do mundo. A eles, às vítimas do Genocídio Armênio, e “a todos que sofrem com as injustiças”, o músico dedicou “1915”, composta há dois anos para o centenário do evento histórico. Com os holofotes a meia fase, um número para apreciar com os olhos fechados.

Ovacionados e aplaudidos por mais de um minuto, o artista e a banda fizeram a tradicional reverência de final de show, o que motivou algumas pessoas a deixar o teatro. Mas o espetáculo ainda não havia acabado, e esses perderam uma fechamento magistral. Interpretando Bach, o instrumentista desceu do palco e, no corredor entre as poltronas da plateia baixa, atuou como se estivesse numa seranata. Alguns espectadores, que durante a apresentação tentavam eternizar os momentos na tela dos smartphones sem que ninguém percebesse - a ordem era para não filmar e fotografar -, escancararam sua rebeldia e levantaram seus celulares e câmeras para gravar. Valeu o registro nos cartões de memória, para mostrar aos amigos, mas a ação não era necessária: a noite mágica em que Porto Alegre conheceu Ara Malikian pessoalmente será dificilmente esquecida por quem o assistiu ao vivo.

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