Ara Malikian une música clássica e rock em show sensorial em Porto Alegre
Violinista usou repertório para contar sua história em apresentação na noite de domingo
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O espetáculo começou com Charles Humberto Armas (viola), Jorge Antonio Guillen del Castillo (violino), Nantha Kumar (percussão), Hector Osorio Heredia (percussão), Tania Bernaez Abad (contrabaixo), Cristina Lopes Garrido (cello) e Antonio Carmona Vives (guitarra) subindo ao palco e fazendo uma performance enérgica. Após um breve apagar das luzes, Ara Malikian surgiu, com seus longos cabelos cacheados, barba comprida e calça de couro, ditando um tom lento, suave e penetrante ao interpretar Vivaldi. Dono de um estilo único, forjado a partir de suas origens e de sua "genética multicultural" - descendente de armênios, ele nasceu na capital libanesa Beirute durante a guerra civil no país e é radicado na Espanha -, emendou duas canções num arranjo mais acelerado.
Foi então que ele se dirigiu à plateia pela vez. Carismático, o artista de 50 anos falou em espanhol, se desculpando por não saber português. Contou que o violino que usa é um item de família: pertenceu ao avô, natural da Armênia, que nunca soube tocá-lo. Dedicou a obra seguinte, uma canção tradicional do país asiático com ritmo dançante, ao seu ascendente. O show seguiu de forma estruturada; antes de cada peça, Malikian explicava a razão pela qual iria interpretá-la. Aos 15 anos, o músico se tornou a mais jovem pessoa a ser aceita na Musik und Theater Hannover em Berlim, e se migrou para a Alemanha para estudar. Ele explicou que, enquanto a maioria dos estudantes ostentava violinos de grandes marcas italianas, como Stradivarius e Guarneri, o seu não fora fabricado por um grande nome.
Certa vez, os colegas perguntaram quem havia construído seu instrumento, ao passo em que respondeu com a primeira palavra em italiano que veio à mente: “raviolli”. Sem entender, os colegas brincaram: “al pesto”. Ele retrucou: “Alfredo”. Malikian havia inventado um personagem, “Alfredo Raviolli”, quem o acompanhou durante a juventude e a quem compôs uma solfa. Verdadeiro e um dos maiores nomes da história do violino, Niccolò Paganini não ficou de fora do repertório. Sua “La Campanella” foi apresentada cheia de vigor e empolgou o público, que ensaiou palmas durante a apresentação.
Entretanto, foi uma versão revisitada de “Paranoid Android”, do Radiohead - grupo que o artista conheceu durante um festival na Inglaterra -, que deu início a uma seção mais contemporânea e agitada do show. Para satisfazer a banda, tocou também “Life on Mars”, de David Bowie, cujo arranjo é inconfundível até mesmo no violino. O frenesi foi atingido com “Kashmir”, do Led Zeppelin. Em sua longa explicação para a presença do trabalho no setlist, o libanês contou que sua adolescência foi dividida entre o rock, do qual a irmã, com quem morava, era fã, e os clássicos que o pai admirava. O patriarca repudiava o outro gênero, então, toda vez que visita os filhos, Malikian precisava esconder o pôster que tinha da banda em frente à cama. Ao terminar a canção, ele brincou: “se por acaso alguém encontrar meu pai, não conte que eu toquei essa música”. O momento dedicado aos anos 1990 foi finalizado com o tema de “Pulp Fiction”.
Passada essa agitação, foi a vez do som puro e aveluadado do violino tomar conta do teatro num “ato” mais intimista, sóbrio e emocionante. Com extrema destreza, o libanês apresentou “Vals de Kairo”, composta ao filho Kairo quando este ainda nem era nascido. Na sequência, os acordes de “Requiem para um Louco” ecoaram entre as quatro paredes. A música foi composta em homenagem ao violino, quando Malikian pensou que o objetivo havia "morrido" devido à sua falta de zelo. Coube a um luthier a difícil tarefa de recompor o instrumento e ensinar uma lição que o músico passa a todos: “se bem cuidado, um violino pode durar anos, mais do que uma pessoa. Então eu quero que o meu toque para mim este requiem feito para ele quando eu morrer”.
Em meio a um repertório recheado de grandes nomes internacionais e de uma variedade de árias que bebe nas tradições indiana, árabe e cigana, o brasileiro Egberto Gismonti marcou presença com "Água e Vinho", canção de 1972 regravada pelo libanês no disco "15". Não faltaram elogios à fonografia brasileira, da qual o músico se declarou fã, arrancando aplausos e gritos da plateia. Mais um ingrediente à mistura cultural do libanês, cujas tatuagens e trajes de astro de rock quebram o padrão das principais orquestras e maestros de música clássica do mundo.
Performático, Malikian já havia mostrado o quanto tocar significa para ele e que canaliza suas energias e sentimentos na mão direita quando movimenta o arco nas cordas, mas a revelação da origem do seu violino explicou de onde vem sua paixão e sensibilizou a plateia. Era 1915 e, em meio ao Genocídio Armênio, o avô conseguiu fugir para o Líbano graças ao instrumento mesmo não sabendo manuseá-lo. "Por causa dele, meu avô sobreviveu", afirmou. Já em Beirute, o homem fez com que o filho aprendesse a tocar, tarefa repassada ao neto. Após contar essa história e se aplaudido pelo público, Malikian lembrou que o mundo vive hoje a pior crise de refugiados desde a Segunda Guerra Mundial, com mais de 60 milhões de deslocados ao redor do mundo. A eles, às vítimas do Genocídio Armênio, e “a todos que sofrem com as injustiças”, o músico dedicou “1915”, composta há dois anos para o centenário do evento histórico. Com os holofotes a meia fase, um número para apreciar com os olhos fechados.
Ovacionados e aplaudidos por mais de um minuto, o artista e a banda fizeram a tradicional reverência de final de show, o que motivou algumas pessoas a deixar o teatro. Mas o espetáculo ainda não havia acabado, e esses perderam uma fechamento magistral. Interpretando Bach, o instrumentista desceu do palco e, no corredor entre as poltronas da plateia baixa, atuou como se estivesse numa seranata. Alguns espectadores, que durante a apresentação tentavam eternizar os momentos na tela dos smartphones sem que ninguém percebesse - a ordem era para não filmar e fotografar -, escancararam sua rebeldia e levantaram seus celulares e câmeras para gravar. Valeu o registro nos cartões de memória, para mostrar aos amigos, mas a ação não era necessária: a noite mágica em que Porto Alegre conheceu Ara Malikian pessoalmente será dificilmente esquecida por quem o assistiu ao vivo.