Eron Duarte Fagundes: A literatura é o avesso

Eron Duarte Fagundes: A literatura é o avesso

Crítico literário analisa para o Caderno de Sábado a obra mais recente de Jeferson Tenório, patrono da 66ª Feira do Livro de Porto Alegre

Correio do Povo

"O Avesso da Pele" é o primeiro livro de Tenório lançado pela gigante Companhia das Letras

publicidade

O narrador criado por Jeferson Tenório em “O Avesso da Pele" (2020) é uma fusão de narradores. Há um narrar em primeira pessoa: uma personagem conta a história. Esta primeira pessoa se dirige a uma segunda pessoa, um “você” que chega a assumir o centro da ação romanesca, no entanto não retira da cena central aquele que conta a história. Deste cruzamento e coexistência entre pessoas que narram o romance (o “eu”, o “você” e lá pelas tantas o clássico narrador em terceira pessoa), deste rebuscamento formal que visa interferir na sintaxe direta e transparente da narrativa do livro, Tenório extrai um certo circunlóquio para o ponto de vista no qual uma história pode ser levada até o leitor, sem que isto atrapalhe os aspectos cristalinos de sua proposta literária, que é fazer fluir as frases.

No romance o “você” é pai do “eu”. A história do “você” evocada a todo o instante pelo “eu” joga algumas luzes sobre o “eu”, sua vida, seus comportamentos, sua trajetória em busca duma desalienação, considerando-se a alienação como um mergulho no vazio e na inconsciência. O que o leitor vê nas páginas é a construção rigorosa duma relação narrativa entre o “eu” e o “você”, este recebendo a palavra daquele, aquele existindo neste; são estes dois principais narradores do que vai contado no livro que, ordenados com extraordinária precisão, dão conta das relações estilísticas e temáticas do romance. Lentamente, o espanto de contar a história do país pelas lentes dos perseguidos e desfavorecidos assalta o observador. Não deixa de ser um êxtase esta descoberta de regiões estranhas e agudas num texto de aparências simples, tão admiravelmente escrito que se assemelha a uma carta ao pé do ouvido em que o “você” destinatário se converte, aos poucos, tanto no narrador original (o “eu”) quanto no leitor a quem no fundo um livro é dirigido (você, o leitor das linhas que vão escritas). O primeiro capítulo fecha-se com esta tensão entre o “eu” e o “você”. “Teu caos me comove. Olho para tudo isso e percebo que serão esses objetos que vão me ajudar a narrar o que você era antes de partir. Os mesmo utensílios que te derrotaram e que agora contam sobre você. Os objetos serão o teu fantasma a me visitar.”

No jogo cruzado que é a narrativa de Tenório, as relações afetivas do “eu” se espelha um pouco nas relações afetivas do “você”. Sim, certo, como diz o narrador (o “eu”? o “você”? outro?), “a psicanálise tinha cor e era branca”, “definitivamente havia coisas que escapavam a Freud”. A mecânica da lógica relacional da narrativa de Tenório vem a ser outra. Sharienne é uma namorada negra do “eu” negro que vai contando a sua história ao mesmo tempo em que este “eu” faz iluminar sua história pela história do “você” negro que o antecedeu; o lado intelectual da garota perturba o rapaz, por desconhecer algumas informações e experiências culturais que ela aduz, então ele recorre às lembranças das conversas com o pai, um professor, um literato: o “eu” assume-se no “você”. E o “você” negro teve namoradas brancas e nestes relacionamentos os conflitos racistas se exacerbaram. No entanto, o grande conflito se situou na descoberta de Crime e castigo, o romance de Dostoievski: na descoberta da personagem de mente curva que é Raskólnikov. Quem indicou este livro ao “você”, este narrador meio intruso meio central, foi um professor, também negro; o “você” disseminou as tensões da narrativa de Dostoievski em leituras em salas de aula, um aluno negro, Peterson, recebe o impacto e as dúvidas desta leitura, tenta traduzi-la para sua interpretação, a distante realidade russa de Crime e castigo adapta-se transversamente a seu avesso, a realidade brasileira, seus crimes, seus castigos, os arrependimentos que deixam de ser externados, violências e mágoas acavaladas como num monturo para que tudo se exploda num dispositivo nervoso que só é posto a uma luz transparente pelo engenho da palavra feita literatura.

No capítulo três do último trecho do romance, “A barca”, um policial sonha que homens negros estão invadindo seu apartamento. “Ao virar-se, o policial vê um homem no meio da cozinha apontando uma arma para ele.” Este trecho do romance é que abandona por momentos a narrativa eu-você, permitindo-se compor a clássica narrativa onisciente na terceira pessoa, uso do discurso indireto livre para fazer as fusões narrativas e captar o interior da personagem. No capítulo 8, provavelmente o clímax dramatúrgico do texto de Tenório, se dá a abordagem policial em que o “você”, entusiasmado com Dostoievski e seus alunos, mais na São Petersburgo do século XIX que na prosaica Porto Alegre de sua contemporaneidade, é morto, por ser um homem negro, por estar mais interessado em literatura que em obedecer a policiais. “O terceiro tiro foi dado por ele, pelo policial que vinha tendo pesadelos com homens negros invadindo a sua casa.” Este capítulo 8 é uma das muitas falas que o “eu” dirige ao “você”, como se fosse uma carta; mas esta frase sobre o policial que deu o terceiro tiro, cujos pesadelos com homens negros foram revelados capítulos antes por um narrador em terceira pessoa, pertence a quem? Ao “eu”, que se teria fundido no narrador onisciente?

A questão na literatura, neste alvorecer de milênio, finalmente já não é saber se Capitu traiu Bentinho, ou se a fruta estava dentro da casca. A questão agora, nestes dias brasileiros, é saber como Ogum pode conversar com Shakespeare, ou se afinal casca e fruta são uma coisa só. Lá pelo começo de O avesso da pele o “eu” anota sobre a história do “você”: “Neste período, você ganhou peso, sua úlcera fechou e não havia mais uma ferida aberta no seu estômago, mas às vezes, quando você chora, quando lembra que pode chorar, você tem a sensação de que aquela ferida de meio centímetro sempre esteve dentro de você, desde o momento que nasceu até sua vida adulta.” Terá mesmo a ferida da úlcera cicatrizado? De onde nasceu essa úlcera? “Vou em frente, na direção do Guaíba”, escreve o narrador, o “eu”, na penúltima frase do livro. O leitor pode perguntar-se: se o “eu” sabe tanta coisa sobre o “você”, para além dos episódios que lhe podem ter sido relatados, não seria o “eu” o “você”, um simples disfarce narrativo? Ou talvez somente a literatura, que em suas formas camufladas é o avesso das coisas, possa dar iluminações aos ambíguos caminhos da vida, indo em frente na direção desta mesma vida.

*Crítico literário

 


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895