A editora Arquipélago publica no Brasil o livro “O amor é um monstro de Deus”, da escritora argentina Luciana De Luca, de 47 anos. Finalista do Prêmio Filba 2024, o romance chega ao catálogo da editora em tradução de Sérgio Karam e integra a nova linha de ficção da casa, sob curadoria do escritor e jornalista Luís Henrique Pellanda. Ambientado em uma pequena comunidade argentina, o romance se desenrola em meio a uma atmosfera opressiva: uma infestação de moscas, a greve dos funcionários do cemitério e o calor sufocante que acentua a insalubridade do lugar. Nesse cenário, acompanhamos a trajetória de uma mulher disfuncional, gigante, que sofre bullying ou escárnio dos moradores da região. Ela vive entre os desmandos de uma mãe dominadora, a Senhora, e a fragilidade de um pai sonhador, que lê muitos livros, e o silêncio do irmão, que tem problemas de deficiência fonoauditiva, além do chamado enigmático do rio que corta o vilarejo. A rotina da protagonista se transforma com a chegada de dois missionários mórmons estrangeiros, que a colocam em contato com o amor e com uma sexualidade até então desconhecida. Luciana nasceu em Buenos Aires, em 1978. Cresceu no litoral argentino. Escreveu o romance “Otras cosas por las que llorar”. Também é autora de vários livros infantis, entre os quais estão “Soy un Jardín" e "Ratón de biblioteca".
Às 14h deste domingo, dia 2, na Sala dos Jacarandás, no Clube do Comércio (Andradas, 1085, 2°andar), ela participa da mesa “Uma nova literatura argentina”, com mediação de Paula Sperb, pela 71ª Feira do Livro de Porto Alegre. Seu trabalho se caracteriza principalmente pela alta voltagem poética de sua escrita, uma prosa que, mesmo permeada de símbolos e alegorias, se encontra também a serviço de um enredo muito bem elaborado. Nessa conversa com o público da Feira do Livro, ela fala de seu romance e de outros temas. A mesa tem apoio do Instituto Cervantes. Luciana De Luca autografa a obra às 16h na Praça de Autógrafos. Em entrevista ao Correio do Povo, ela fala da visão hiperbólica contida neste livro que será lançado na Feira, dos escritores brasileiros que gosta e também da influência de outros autores e do pai que tinha uma biblioteca considerada média na Argentina, com 10 mil livros.
CP – Sabemos que todos os escritores latino-americano tem um pouco de realismo fantástico em suas obras. Gostaria de saber um pouco mais sobre o que temos de fantástico e de verossímil neste livro “O Amor é um Monstro de Deus”.
Luciana De Luca – A história se criou a partir de vários elementos, que acho que têm a ver com a imaginação um pouco exagerada, não? Com ver tudo através de uma certa visão hiperbólica das coisas. Como tudo pode ser assim ou mais monstruoso. A história, para mim, surgiu há muitos anos. As raízes são dois textos distintos. Um era um texto que não tinha nada a ver, mas era um homem, um velho, que está nesse território. Digamos que sempre estou escrevendo sobre o mesmo território. Aquele homem tinha moscas nos óculos e ele tirava e voltavam as moscas. A ideia é que quando a natureza se torna irreverente e não podemos tirar algo tão pequeno como uma mosca, finalmente elas ganharam. Por outro lado, eu escrevi um conto que se chama “Hernando”, que ainda não está publicado. E é uma história de amor entre uma mulher e um trabalhador. Que também era um amor proibido, como incorreto, pelo menos. Eu acho que essas duas vertentes, como a natureza quando transborda, desde a doença até os insetos ou o rio, e o amor proibido, essa ideia do amor incorreto, do amor que não deveria ser. Eu acho que foram as duas vertentes que me levaram a escrever. São dois temas que me interessam muito, e ainda me interessam hoje.
CP – Quero saber de onde surge a tua literatura. Quais as tuas influências, quais escritores que te embasaram para criar, ou não, a tua literatura, a tua escrita, o teu processo?
Luciana De Luca - Sou completamente devedora de tudo o que eu leio. Sempre que leio algo, este livro já se torna uma influência. Também porque já tenho muitos anos de leitora, então vou escolhendo. Se não gosto de algum livro, talvez não seja uma influência. Mas também o fato de ter lido coisas que não gostei e também me ajudaram. A minha formação de leitora, eu acho que a mais importante, assim como a minha formação sensível no mundo, teve muito a ver com a biblioteca do meu pai, que era muito grande, que estava cheia de obras. Cerca de 10 mil livros. Uma família, digamos, de origem de classe média, muito trabalhadora, sem muita cultura geral, mas tínhamos uma biblioteca. Não tínhamos muitas coisas, mas tínhamos muitos livros. E meu pai me incitava a que eu lesse, sem importar que obra fosse. Ele não acreditava na literatura infantil, ele dizia que só existia a literatura. Me incitava a ler. E eu lia coisas que não eram para minha idade, que estavam muito longe da minha compreensão. Mas eu acho que o fato de não tê-las entendido e de ter lido coisas que não eram para mim, me ajudou um monte, porque a minha cabeça teve que trabalhar e começar a repor ideias que eu não entendia, ou inventar explicações.
Oscar Wilde, os irmãos Grimm, Ibsen, Dostoyevsky, Cronin, Tchekhov estiveram entre minhas leituras e influências primeiras. E depois, é claro, muitos autores argentinos, porque havia, sobretudo na casa de meus avós, uma linda biblioteca de autores argentinos e latino-americanos. Então, eu li muitos de Juan Ibarburú, Maria Elena Walsh, Álvaro Yunque, Eduardo Wilde, Eugenio Cambaceres. Eu li um monte deste autores que talvez naquela época não fossem tão extemporâneos, mas agora estão um pouco, talvez, perdidos. E isso me ajudou a configurar um universo muito amplo, mas, sobretudo, isso de ler o que eu ainda não entendia. Mas isso me parece que foi bom.
CP – Queria que você falasse do seu livro “Otras cosas por las que llorar”. Me parece que tem algo de Clarice Lispector deste monólogo interior de uma mulher e seu existencialismo?
Luciana De Luca - Sinto que estou presa em um território da minha imaginação, sempre escrevendo. Há uma geografia comum em tudo o que eu escrevo, há um clima que se repete, e, inclusive, há vínculos que se repetem. Esse romance atravessa esse mesmo território e é um monólogo, ou seja, é uma narradora que fala, é uma mulher que está perdendo a memória. Nesta altura, as pessoas que o leram dizem que ela teria Alzheimer. Eu nunca disse que ela tinha Alzheimer. E não se diz nesse momento, mas há uma deterioração cognitivo e ela começa a repassar sua vida, mas não só em termos do que lembra e o que não, mas em termos do desejo. Como foi sua vida, como o desejo foi se movendo ao redor dela, o que podia ser ou não através do desejo. E como essa espécie de cerco que as mulheres tiveram, nós tivemos as mulheres por muito tempo, mas especialmente uma mulher, digamos entre seus 70 e 80 anos. É uma mulher de outra época. Como esse cerco foi se configurando em sua vida. É um livro, eu acho, muito poético, que se apoia muito na voz da narradora, em seu olhar para seu marido, para seu filho, para suas amigas, para seu pai. É um livro muito nostálgico sobre seu pai. E, ao mesmo tempo, começa a se tornar fantasioso a medida que a doença funciona, de alguma forma, como uma fratura em seu apego à realidade. Então, por essa fratura, escapam um monte de coisas, imaginação, dor, mas também muita fantasia e muita vontade de libertar-se e de poder falar, por fim.
CP - E da literatura brasileira, o que você lê e gosta, além de Clarice Lispector?
Luciana – O Brasil tem muitos escritores que eu gosto muito. Eu gostei de ler “Grande Sertão Veredas”, de Guimarães Rosa. Outro é “Macunaíma”, de Mário Andrade, que li faz pouco tempo. Eu gosto muito de Adélia Prado e de autores contemporâneos como Micheliny Verunschk, que eu estou lendo muito devagar em português, porque me custa ler. Sinto que há um monte de autores que eu quero ler do Brasil e que eu gostaria que chegassem traduzidos para a Argentina, porque meu português é muito limitado, e eu gostaria que tivesse mais autores, porque a outra vez eu estive com Ana Paula Maia e com Lina Meruane em uma mesa, elas conversavam, e falávamos da literatura latino-americana, e todo o tempo parecia que Ana Paula era de outra literatura, que não era latino-americana, e a sua literatura é parte disso, e, no entanto, há poucos autores investidos nesse boom chamado de literatura feminina latino-americana, mas eu gostaria de poder ler mais.
CP - Você acha que a literatura teria um conceito, de alguma forma, de poder realmente salvar e transformar as pessoas, que sem ela haveria algo de vazio nas pessoas?
Luciana - Na minha vida foi vital, me deu uma profissão, me deu um hobby, me deu uma razão para estar no mundo e para me esforçar, que é escrever, me esforçar para escrever cada vez melhor. Eu não sei se salva a vida de todo mundo, mas acho que pode melhorar a vida de todo mundo. Não vejo a possibilidade de que a boa literatura em termos de bem-intencionada, se está bem escrita ou não. Se lemos algo mal, talvez possa fazer mal, algo panfletário, algo horrível, mas acho que definitivamente ajuda. Vejo isso nos meus filhos, que são adolescentes e leem menos do que na minha geração em geral. Vejo que a compreensão da realidade é diferente, que quando leem ou se aproximam da literatura da maneira que seja, há algo que se abranda na forma de ver o mundo, há algo que se faz menos rígido. Me parece que sim, definitivamente, que os filhos leem, que os adultos leem, que os adultos mais velhos leem, que as pessoas velhas leem. É uma companhia, é uma forma de ver o mundo. E às vezes é a forma de ver o mundo quando não há nada para ver. Quando alguém está muito desesperado, ou muito triste, muito sozinho, e não há nada, não há com quem conversar, não há com quem ver, me parece que a literatura é uma grande companhia.