Para poder refletir sobre o vício dos livros

Para poder refletir sobre o vício dos livros

Escritor português Afonso Cruz fala sobre a sua obra “O Vício dos Livros” e a passagem pela 70ª Feira do Livro

Luiz Gonzaga Lopes

Escritor português Afonso Cruz que passou pela 70ª Feira do Livro de Porto Alegre no final de semana passado

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O escritor português Afonso Cruz foi a atração do primeiro fim de semana da 70ª Feira do Livro de Porto Alegre. Ele participou de mesa sobre “O vício dos livros” (Dublinense). Na coletânea de ensaios, Afonso revela sua faceta de leitor, explorando relatos históricos, curiosidades literárias, reflexões e memórias pessoais, com a leitura no centro. O CS conversou com o autor:

Como ‘O Vício dos Livros’ surgiu dentro da tua trajetória. A obra me fez lembrar ‘Por que Ler os Clássicos’, de Italo Calvino.

Afonso Cruz – Porque é uma paixão, e por ser uma paixão, eu vivo rodeado de livros, a leitura faz parte do meu dia a dia. Eu posso não escrever durante uma semana, mas leio todos os dias. E, portanto, a leitura é importantíssima, para mim sempre foi. Começamos a pensar sobre isso, por um motivo, como nós gostamos de ler, qual é a importância da leitura para nós, enquanto seres humanos, o que é que significa o livro, etc. E quando se começa a pensar sobre isso, e, no meu caso, sendo escritor, comecei também a escrever sobre isso, vamos lendo as opiniões de outros escritores e outros acadêmicos que escreveram sobre o mesmo tema, sob perspectivas diferentes e áreas diferentes, de psicólogos, de neurocirurgiões, etc. Portanto, há aqui muitas abordagens a fazer em relação à leitura, como o cérebro se modifica, por exemplo, graças a esta atividade relativamente nova na história da humanidade. Mas, claro, começa a ser também um objetivo, e ajuda a pensar sobre nós próprios, porque sempre estivemos apaixonados pela leitura e pelo livro, e acaba sendo essencial pensar esse fenômeno.

Qual o impacto que este livro teve nos teus leitores?

Afonso Cruz – Tem sempre um impacto individual. Uma das características do livro é que, apesar de ser um objeto único, reproduzido mecanicamente, é diferente para cada leitor. Portanto, o impacto que poderá ter com a sua leitura é sempre diferente do leitor para o leitor. Por esse motivo, eu usei a epígrafe do Christian Bobin, em que ele diz que um leitor está a reescrever o livro. Quando eu leio um livro, na verdade, estou a escrevê-lo, estou a lê-lo à minha maneira, com meu passado, minha cultura, com a atenção que eu dou a determinadas coisas e a indiferença em relação a outras. Nós olhamos para os livros e temos sensações diferentes em relação a eles. Acho que é um livro para pessoas que leem, que podem ou não ter já pensado sobre o fenômeno da própria leitura. Para qualquer pessoa que nunca leu sobre isso, mas gosta de ler, é um livro que, imagino, poderá trazer novas luzes sobre o que é que se passa.

Enfim, são abordados temas muito distintos, desde a importância da leitura, da importância da escuta, porque é que a leitura não é um fenómeno mais universal do que, pelo menos, a leitura assídua, a leitura diária, a leitura apaixonada. Portanto, tudo isso são maneiras de olhar para os livros, também os livros enquanto resistência, os livros enquanto motor social, enquanto construtores do futuro. É muito importante pensar, e a ficção tem aqui um papel privilegiado nisso, que é poder pensar em hipóteses que, se calhar, não existem, nunca existirão ou poderão existir.

Todas estas hipóteses os escritores exploram. Há um livro do Milan Kundera que fala disso, ele chama a ficção uma exploração da existência. E, de facto, os escritores exploram a existência, não no sentido, neste caso, não da realidade, mas daquilo que poderá ou poderia existir eventualmente. Mas exploram as coisas que fazem parte de uma plenitude humana, daquilo que o humano poderia ser, ainda, como repito-me, poderá nunca vir a acontecer. E mais, alteramos também o passado, especulamos sobre isso, as hipóteses, o que é que poderia ter acontecido se tivéssemos seguido outro caminho, e também isso coloca-nos questões, porque raio de motivo, por exemplo, é que nós, tendo este órgão hipertrofiado, que é o que o cérebro consome, que consome tantas calorias, e passamos a maior parte do tempo a divagar, a sonhar, a imaginar coisas.

E isso percebe-se com mais facilidade se nós estivermos a imaginar um futuro. E percebemos que eu posso estar a planear um futuro, algo que não existe, mas que eu gostava que existisse, ou quero que exista. Mas nós também passamos muito tempo a imaginar e se eu tivesse feito assim no passado, e se eu tivesse feito isto. E isto parece-nos pouco funcional, para que é que serve gastar calorias, para que é que serve o ato de estar a pensar em coisas que não pode fazer, que é impossível ser feito, ou pelo menos até hoje. Mas é aí que nós temos uma componente essencial também da leitura, mas também da nossa própria imaginação, que é, nós pensamos hipóteses para o nosso passado, hipóteses alternativas para o nosso passado, porque se por acaso nos encontrarmos na mesma situação no futuro, temos uma resposta diferente. Podemos ter uma resposta diferente porque já a imaginamos.

A primeira obra que lemos da tua escritura foi “Vamos Comprar um Poeta”. O livro causou um impacto muito grande em teus leitores por causa da alegoria, de transformar o poeta em um objeto ou quase um pet, um bicho de estimação. Era uma criação que os leitores brasileiros gostam e que nos instigou a querer te conhecer e a te ler mais e mais. Como tu trabalhas na tua obra as questões ligadas à criação, a transversalidade, alegoria, gêneros, etc?

Isto não acontece em todos os meus livros, porque também tenho por bem me diversificar bastante em relação aos géneros e ao que me digo quando escrevo, mas normalmente, ou pelo menos uma parte dos meus livros parte de uma ideia relativamente que eu sinto que é forte ou que pode ser trabalhada de modo a depois dar uma intriga, um enredo, e que possa se desenvolver depois de outra maneira, porque, por exemplo, e isto também é uma ideia recorrente, muitas vezes eu ouço alguém dizer que teve uma ideia para um livro e às vezes não há uma ideia, é apenas um ambiente ou é um tema, mas não é para a narrativa, ele não tem ainda ideia para a narrativa. Por exemplo, no “Vamos Comprar um Poeta”, quando eu imagino uma sociedade em que se pode comprar um poeta como se fosse um animal de estimação, que como é que se diz no Brasil, não é? Agora é um pet, americanizado, eu não tenho história, eu não tenho história para contar, o que eu tenho é um conceito, um ambiente, uma premissa que depois onde a história se irá desenrolar, mas uma sociedade em que se pode comprar poetas, eu posso escrever milhares, milhões de histórias, e não seria necessariamente esta, isso é outra coisa, mas eu gosto muito de ter este conceito à partida definido e que seja relativamente forte a ideia. Em “Para Onde vão os Guarda-chuvas”, quando eu chego a uma história de Gandhi em que há uma pessoa que se aproxima dele, um hindu que se aproxima dele com o filho morto nos braços. Ele aproxima-se de Gandhi e diz que foram os muçulmanos que fizeram aquilo, o que é que ele faz agora? E Gandhi responde, agora o que tem-se de fazer é adotar uma criança muçulmana.

E esta resposta já me dá uma ótima premissa se for recontextualizada. Hoje em dia é interessante falar um pouco o conflito à época entre muçulmanos e hindus. Enfim, não é que não exista, existe, mas agora está em outros moldes. Agora o que seria interessante era recontextualizar, como por exemplo um pai muçulmano perder o filho às mãos de um soldado americano que ocupou o país ou que tenha intervenção militar no país. E o que é que ele tem de fazer depois? Seguir o mesmo conselho de Gandhi, que é adotar uma criança americana. Neste caso já tenho mais do que a premissa, já tenho uma partezinha da história.

Mas gosto de ter isto. Em “Os Livros que Devoraram o meu Pai”, nós dizemos, quando gostamos muito dele, que devoramos os livros. Inverto a situação neste livro, e a metáfora continua a funcionar. A ideia de que somos devorados pelos livros quando eles se tornam imersivos, quando entramos dentro deles e deixamos de ouvir o mundo à nossa volta. Eu consigo aqui ter uma outra ideia: e se ele entrasse literalmente dentro dos livros? E se começasse a viajar dentro dos livros, como se ele fosse realmente devorado por um livro e passasse a viajar entre livros? Tenho aqui um conceito que depois posso mais tarde criar uma intriga. Gosto muito deste tipo de estrutura, de pensar no livro desse modo. Mas nem todos os livros que escrevo são assim; faço dessa maneira todos que são normalmente pensados e estruturados antes de começar a escrever, à exceção de textos muito curtos, que muitas vezes não precisam disso. Ou seja, não precisam de estrutura; não há espaço ou tempo suficiente para que possam ter essa estrutura. Isso acontece nos microcontos, nos aforismos, acontece muitas vezes na poesia. Mas em alguns livros, sim, gosto muito de ter essa sensação de que há uma ideia forte que sustenta o livro.

Queria que tu falasses sobre as trocas em eventos literários e outras obras tuas?

Afonso Cruz – Ultimamente, até tenho escrito livros que são baseados em lugares, mas que obedecem muito a a ideia de viagem. E aquela viagem oferece-me uma boa história; sei que ali tem um bom material que posso resolver bem ou mal. Um desses livros foi publicado cá, que é “Princípio de Karenina” (Companhias das Letras). Foi o primeiro que publiquei baseado em geografias. Em Portugal, saiu mais um baseado em Berlim, e este agora é baseado no Chile. Em todos eles, eu tenho ali uma história que só poderia ser contada naquela geografia e que encontrei precisamente por viajar. Muitas vezes foi um escritor que me contou, ou foi em conversa com escritores. Às vezes tem a ver só com o impacto social ou a situação política, como é o caso de “O Pintor Debaio do Lava-Loiças, baseado numa história que meus avós viveram durante a 2ª Guerra Mundial, em que há um pintor refugiado judeu que eles escondem na sua casa e fica meses a viver escondido. Portanto, é a história efabulada deste artista que nasceu onde é hoje Bratislava, na Eslováquia.

Enfim, muitas coisas nascem de histórias: algumas que são verdadeiras, outras que são contadas, outras que li e que identifico ali qualquer coisa que me permite depois estender. Há histórias destas que servem para uma crónica; há histórias que podem servir para um conto e não mais do que isso. Sinto que a sua estrutura não pode ser esticada a esse ponto, não tem essa força, mas há outras que não; elas acabam por atravessar uma saga, um romance, uma coisa de muito maior fôlego.


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895