Ricardo III através dos séculos e continentes

Ricardo III através dos séculos e continentes

Cia. Teatro ao Quadrado celebra 20 anos com montagem que abre o 23º Porto Verão Alegre

Vera Pinto

Marcelo Ádams e Margarida Peixoto formam a Cia. Teatro ao Quadrado, que faz montagens profissionais e cursos

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Densidade, sarcasmo e crítica à sociedade contemporânea são os ingredientes de "O Inverno do Nosso Descontentamento – Nosso Ricardo III", montagem que celebra os 20 anos da Cia. Teatro ao Quadrado, que abre hoje o 23º Porto Verão Alegre. Dirigida por Luciano Alabarse, tem apresentações até domingo, 21h, no Teatro do CHC Santa Casa (av. Independência, 75). Os ingressos estão à venda pelo site www.portoveraoalegre.com.br, onde podem ser conferidas as demais atrações do festival, que segue até 19 de fevereiro, com o slogan "bem-vindo de volta".  

Partindo do clássico de Shakespeare, escrito no século XVI, questões como violência e desumanidades são abordadas, na história do ambicioso Ricardo de Gloucester, que cometeu as maiores atrocidades para subir ao trono da Inglaterra, não hesitando em trair e exterminar quem se colocasse em seu caminho. Deformado e extremamente feio, o ardiloso e cruel vilão, sem qualquer pudor ou culpa, nesta versão transcende o personagem shakespeariano, retratando os genocidas de todos os séculos. A peça que tem um ato único, com cerca de 1h40min de duração, critica a visão distorcida de mundo do protagonista, com suas implicações. Outras obras do autor inglês serviram de inspiração, assim como de Bertolt Brecht e textos pós-modernos, que partiram de clássicos, como Heiner Müller e o gaúcho Ivo Bender, que trouxeram suas visões originais para mitos e histórias consagrados.

“O desafio de montar um clássico é sempre o de descobrir o que ele ainda tem a dizer para as plateias contemporâneas”, diz Marcelo Ádams, que subirá ao palco com Margarida Peixoto. “Shakespeare, como é amplamente reconhecido, criou personagens e tramas que dizem respeito não apenas à Inglaterra pós-medieval na qual viveu, mas ao mundo como um todo. Sempre haverá alguém que faz de tudo para chegar ao poder, formando alianças espúrias e cometendo crimes”, acrescenta. 
Com 20 anos de trabalho ininterrupto, a Cia. Teatro ao Quadrado tem produzido espetáculos profissionais e oficinas para quem deseja conhecer melhor a linguagem cênica. Em suspensão durante a pandemia, a companhia aguardava ansiosamente pelo reencontro presencial com o público, aproveitando o período de isolamento social para aprofundar as pesquisas no trabalho que estreia agora. A parceria com Luciano Alabarse, amigo de longa data, foi retomada. Com ele, Marcelo e Margarida atuaram e ganharam prêmios em peças como “Hamlet”, “Édipo”, “Ifigênia em Áulis + Agamemnon”, “Bodas de Sangue”, “Legalidade”, “Inimigos de Classe”, “A Vertigem dos Animais Antes do Abate”, entre outros. Eles vinham conversando desde 2019, mas em 2020 tudo parou. No ano passado voltaram aos estudos teóricos e desenvolvimento da dramaturgia, até que pudessem se encontrar em sala de ensaio. 

“Todos os grandes clássicos da dramaturgia ocidental merecem ser estudados e encenados. Ricardo III não foge à regra. É uma peça atualíssima e que se debruça sobre o mundo das conspirações políticas e golpes sanguinários. Se olharmos esse período de 500 anos, dos tempos shakespeareanos até aqui, vamos encontrar um inventário de atrocidades cometidas contra as sociedades, independente de sua época”, afirma o diretor. 

Confira a seguir a entrevista com o elenco e diretor: 

CP – A Cia. Teatro ao Quadrado chega aos 20 anos, o que é um privilégio, já que inúmeros grupos não resistiram às crises internas e econômicas. Mas certamente houve muita apreensão e dificuldades. Poderiam falar como foi a subsistência da cia, incluindo percalços e acertos? A escolha de "Ricardo III" veio para brindar esta trajetória e falar do atual momento, tão opressor e frágil?
Cia. Teatro ao Quadrado - Completar 20 anos de trabalho ininterrupto em Teatro é de fato algo digno de registro e comemoração. São bem conhecidas as dificuldades para produzir e fazer circular a arte em nosso país. A maneira de encarar essas limitações é diversificando as atividades. Assim, nessas duas décadas a Cia Teatro ao Quadrado vem trabalhando com a produção de espetáculos profissionais, mas também tem atuação forte no oferecimento de cursos e oficinas de Teatro, para pessoas que têm vontade de conhecer melhor a linguagem das artes cênicas. Vínhamos muito bem até o início da pandemia, em 2020, quando tudo teve que parar, de súbito. A Cia Teatro ao Quadrado permaneceu, por esses quase dois anos, em suspensão, aguardando o momento em que fosse possível voltar a ter contato presencial com o público. Mas, se praticamente não tivemos atividades públicas nesse período, aproveitamos para projetar e aprofundar as pesquisas para o espetáculo que estreia agora, “O inverno do nosso descontentamento- Nosso Ricardo III”, que é fruto de um mergulho não apenas na peça de Shakespeare que nos serviu de ponto de partida, mas também na história, onde buscamos exemplos de governantes que utilizaram o poder como plataforma para cometer atrocidades, ao longo dos séculos. Nesse sentido, Ricardo III é uma espécie de símbolo de todos aqueles homens que desprezaram a vida humana.

CP – Quais foram os desafios de montar este clássico, o segundo mais extenso do dramaturgo? O original é dividido em 5 atos. Como será esta versão, e que duração terá?
Cia. Teatro ao Quadrado - O desafio de montar um clássico é sempre o de descobrir o que ele ainda tem a dizer para as plateias contemporâneas. Não é mais o suficiente encenar uma peça de Shakespeare da mesma maneira que vem sendo feito desde o século 16. O mundo é completamente outro. Nossas consciências, na média, se desenvolveram muito mais em direção ao que chamamos de humanismo. Por outro lado, um clássico, para ser chamado assim, sempre traz uma perspectiva ampla, tratando de questões que tendem a se modificar muito menos com a passagem do tempo. Por exemplo: tiranos sempre existiram, e provavelmente sempre existirão. Eles podem ter hoje telefones celulares e twittar ao invés de usar mensageiros a cavalo, mas são igualmente perigosos e desprovidos de empatia. Shakespeare, como é amplamente reconhecido, criou personagens e tramas que dizem respeito não apenas à Inglaterra pós-medieval na qual viveu, mas ao mundo como um todo. Sempre haverá alguém que faz de tudo para chegar ao poder, formando alianças espúrias e cometendo crimes. Sobre a transcriação da peça de Shakespeare, não seguimos a divisão em cinco atos original, pois esta é uma prática que caiu em desuso. A peça tem um ato único, com cerca de 100 minutos de duração, na qual acompanhamos criticamente as ações de Ricardo, apresentando sua visão de mundo distorcida e as terríveis consequências para aqueles que são atingidos por ele.
 
CP – O personagem central foi retratado pelo autor com extrema feiúra e deformidade, assim como maldade, no texto repleto de ódio. A obra de Shakespeare é atemporal, por retratar os sentimentos humanos em sua amplitude, que se sobrepõem ao tempo e espaço. Mas esta parece mais atual do que nunca, quando vemos a polarização e o virtual a serviço da manutenção do poder, nem que seja às custas de notícias falsas. Que paralelo vocês traçam com os fatos retratados nos séculos XVI e XVII com os tempos atuais?
Cia. Teatro ao Quadrado - A deformidade de Ricardo, duque de Gloucester, que no século 15 se tornou o rei Ricardo III da Inglaterra, foi motivo de muito debate à época. Shakespeare escreveu sua peça A tragédia do rei Ricardo III menos de cem anos após a morte de Ricardo. A deformidade física e principalmente moral do rei inglês foi objeto de muita especulação, e fez com que ele se tornasse uma das personagens mais famosas do autor, junto de Hamlet, Julieta e Macbeth. São incontáveis as encenações e os filmes feitos a partir dessa história. O que torna Ricardo tão atraente para o público contemporâneo é o fato de que ele toma atitudes que podem ser perfeitamente alinhadas com atitudes tomadas por governantes atuais. O desprezo pela vida humana e a absoluta falta de medida o tornam uma espécie de símbolo do poder destrutivo. E temos, neste século 21, vários exemplos de “Ricardos modernos”, que comandam multidões e tomam decisões que afetam as vidas de milhões de pessoas.
 
CP – Trechos de outras obras de Shakespeare Brecht, Heiner Muller e Angelic Liddell, bem como do atual cenário político serviram de inspiração. Pode-se esperar uma montagem com caráter humanista, crítico e reflexivo?
Cia. Teatro ao Quadrado - Partimos de uma personagem icônica, Ricardo III, e a partir dele construímos uma dramaturgia polifônica, em um trabalho de lapidação e dilapidação dramatúrgica. Lapidação para extrair os trechos de Shakespeare que melhor se adequassem às intenções de nosso espetáculo, como se faz com um diamante; dilapidação, no sentido de “por abaixo”, porque não tivemos pudores em desconstruir a forma original da peça de Shakespeare, com as dezenas de personagens que ele criou e a divisão em cinco atos. Nesse sentido, nos confrontamos com dramaturgias pós-modernas, que também partiram de textos clássicos, como as de Heiner Müller ou do nosso grande Ivo Bender, que trouxeram suas visões originais para mitos e histórias bem conhecidas. Nossa montagem é, sim, profundamente crítica, e, a exemplo do que defendia Bertolt Brecht, queremos com isso despertar no público o impulso de refletir sobre o mundo contemporâneo.
 
CP – No cenário tem objetos cirúrgicos e hospitalares jogados em um lixão. Esta é uma referência às doenças do personagem central e pestes ao longo do tempo, e também à pandemia pela qual estamos passando?
Cia. Teatro ao Quadrado - A cenografia do espetáculo tem como principais elementos objetos e mobiliário hospitalar, livros e brinquedos. Ricardo era um homem que sofria de dores terríveis, de doenças crônicas que o afetavam enormemente. A partir desse fato histórico, ampliamos as possibilidades de leitura dessa proposta: a doença física e moral de Ricardo se amplia e contamina tudo à sua volta, como um vírus maligno. O próprio Shakespeare, enquanto viveu, também sofreu o efeito de epidemias mortais na Inglaterra. 
 
CP – A parceria e amizade com Luciano Alabarse, retomada agora, é antiga. Quantos e quais trabalhos fizeram juntos?
Cia. Teatro ao Quadrado - Trabalhamos com Luciano Alabarse há muito tempo, ele é um dos artistas de Teatro com os quais mais temos efetuado trocas artísticas nesses 20 anos de Cia Teatro ao Quadrado. Mas esta é a primeira vez que Luciano é nosso convidado para dirigir um trabalho da companhia. Fiz com ele espetáculos lindos e premiados como "O homem e a mancha, de Caio Fernando Abreu, trabalho com o qual ganhei meu primeiro Açorianos de Melhor Ator; "Hamlet", espetáculo com o qual a Margarida Peixoto foi premiada com o Açorianos; "Édipo", com o qual recebi meu segundo Açorianos de Melhor Ator; "Ifigênia em Áulis + Agamemnon", "Bodas de sangue", "Legalidade- o musical", "Inimigos de classe", "A vertigem dos animais antes do abate" e outros.

CP – "Ricardo III" estava na mira dos espetáculos que Luciano Alabarse gostaria de assinar em algum momento de sua trajetória?
Cia. Teatro ao Quadrado - Pelo que sei, Luciano não havia cogitado trabalhar com Ricardo III. Fomos nós da Cia Teatro ao Quadrado que propusemos, e ele imediatamente se interessou pelas possibilidades cênicas que essa história trazia. Vínhamos conversando desde 2019, pelo menos, mas em 2020 tudo parou. Em 2021 retomamos, ao longo de todo o ano, os estudos teóricos, o desenvolvimento da dramaturgia, até que pudéssemos nos encontrar presencialmente em sala de ensaio, para construir efetivamente a dramaturgia cênica, que vai além das palavras que são proferidas pelo ator e pela atriz, e que passa pelas ações, pela visualidade e pelas sonoridades que vão sendo sobrepostas em camadas, aprofundando o conceito do espetáculo e descobrindo soluções que nos agradem como artistas criadores.

Luciano Alabarse - Todos os grandes clássicos da dramaturgia ocidental merecem ser estudados e encenados. Ricardo III não foge à regra. É uma peça atualíssima e que se debruça sobre o mundo das conspirações políticas e golpes sanguinários. Se olharmos esse período de 500 anos, dos tempos shakespeareanos até aqui, vamos encontrar um inventário de atrocidades cometidas contra as sociedades, independente de sua época. Uma peça assim deveria interessar a todos. Seu estudo é potente e fascinante. 
 
CP - Em "Édipo", protagonizado por Adams e dirigido por Alabarse, a trilha tinha Rolling Stones. O que vocês destacaram nesta? O título "O Inverno do nosso Descontentamento - Nosso Ricardo III" remete aos  governos tiranos?
Cia. Teatro ao Quadrado - O trabalho com a trilha sonora é também uma espécie de ourivesaria. Pesquisamos quais são as sonoridades que melhor contribuem para criar as atmosferas com as quais desejamos impregnar o palco. No caso de O inverno do nosso descontentamento- Nosso Ricardo III trabalhamos com sonoridades, não apenas com músicas. Também há marchas militares, um tanto de música clássica, e algumas surpresas. Sobre a possibilidade de identificar em nosso espetáculo figuras de tiranos nossos conhecidos, isso é certo. Foi Shakespeare quem escreveu que a arte é o espelho e a crônica da sua época. Assim, apresentamos ao público um grande espelho, para quem possa e queira se mirar nele.

Luciano Alabarse - Sempre dedico muita atenção à trilha sonora de um espetáculo. Como atravessamos um período de 500 anos, uma das chaves de compreensão dessa transição temporal é a música. Há de tudo: Meredith Monk, Teixeirinha, hinos de guerra, clássicos. Estou satisfeito com a trilha.
a de controle.


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