Sopros de invenção e vida em Vargas Llosa
Com a morte do autor peruano, Nobel de Literatura, neste domingo, 13, o Correio do Povo republica no Caderno de Sábado um artigo do professor de literatura Sergius Gonzaga sobre o escritor

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Foi no bar do Antonio, na antiga faculdade de Filosofia da UFRGS, por indicação de um amigo argentino – fanático leitor das novas ficções que explodiam na América Latina – que terminei de ler La ciudad y los perros*, romance de estreia de Mario Vargas Llosa, lançado em 1963. A intriga do texto centrava-se nos dramas de violência e solidão vivenciados por adolescentes no internato de um colégio militar, ao mesmo tempo em que se desvendavam suas relações familiares e afetivas fora do âmbito escolar. Creio que o li em 1968, porque havia cartazes convocando para as derradeiras passeatas, e o ar se impregnava do cheiro de
pastéis que o Antonio fritava na cozinha, e eu lia e fumava, tão absorto nas derradeiras páginas daquele romance intrincado, cuja revelação final modificava de modo fascinante o seu sentido, que, ao contrário de outras manhãs, nem reparava no desfile cotidiano das estridentes e graciosas estudantes de História Natural.
Era uma época de narrativas prodigiosas que surgiam caudalosamente: “O Século das Luzes”, de Alejo Carpentier; “A morte de Artemio Cruz”, de Carlos Fuentes; “Sobre heróis e tumbas”, de Ernesto Sábato; “O jogo da amarelinha”, de Julio Cortázar; “Cem anos de solidão”, de García Márquez, para ficar com as mais conhecidas. Eu não sabia ainda que estava em curso uma revolução sem precedentes na literatura contemporânea, originária de países periféricos que ingressavam na modernidade artística pelas portas do gênero romanesco e assombravam o mundo. As condições objetivas eram favoráveis à emergência do que seria designado como o boom: havia um conjunto de escritores de notável audácia imaginativa, um novo público leitor composto por jovens universitários intelectualizados e dispostos a decifrar textos em que a inventiva e a experimentação predominassem, um amotinamento coletivo contra tudo aquilo
que representava o passado em termos culturais, morais, afetivos e políticos, e havia, por fim, a aura da Revolução Cubana, que naquele momento, parecia traduzir a possibilidade da construção de uma ordem socialista, de natureza libertária.
Contudo, nenhuma outra obra latino-americana que eu lera até aqueles dias – por mais apaixonante que fosse – oferecera com tamanho resplendor um modelo de narrar, uma composição ao mesmo tempo aberta e totalizante, inovadora e profundamente realista, como “A cidade e os cachorros”. A audácia de seus processos formais e a ampliação quase ilimitada de significados do real que essas inovações desencadeavam teriam sequência em “A casa verde” (1966) e Conversa na Catedral (1969). Neles, Llosa reafirmava a perícia incomum para
estabelecer amplos arcabouços estruturais, condizentes com a realidade múltipla que pretendia fixar. Sua vocação realista – a maior entre os contemporâneos – expandia-se nestas complexas arquiteturas técnicas, formidáveis pela engenhosidade, pelo poder de tornar ambíguo o universo narrado e por criarem persuasivos simulacros da vida real.
A par da maestria técnica, jamais se recusou a impregnar seu projeto literário da noção de compromisso, ainda em voga nos anos 60, embora isso não significasse adesão ideológica a algum programa partidário. Em famoso discurso pronunciado por ocasião do recebimento do Prêmio Romulo Gallegos, identificou na literatura uma forma de insurreição permanente contra a realidade como ela é. Poucos anos depois, ao lançar texto crítico definitivo sobre as primeiras obras de García Márquez, “A história de um deicídio”, reafirmaria a missão do escritor como a de um anjo rebelde que não aceita a vida estabelecida, rebaixada pelo
conformismo e pelo marasmo espiritual.
Questionar a realidade, lutar contra as verdades feitas, arguir o imobilismo dos seres que obedecem cegamente aos desígnios do destino tornou-se para Vargas Llosa o imperativo de suas ficções. Isso nunca significou, contudo, um protesto explícito, de teor político ou moralista. Seu método tem sido o de desentranhar da interioridade dos personagens e dos atos ínfimos ou grandiosos que cometem - em situação de liberdade ou sob pressão das circunstâncias - a sujeira e o sublime, as paixões lícitas e as clandestinas, a verdade e a impostura, o altruísmo e a violência, a fraternidade e a solidão, em narrativas simultaneamente
vertiginosas e sedutoras, a exemplo de "Tia Julia e o escrevinhador” (1977), “A guerra do fim do mundo” (1981), “História de Mayta” (1984), “Os cadernos de Dom Rigoberto” (1997), “A festa do Bode” (2000).
Quando fechei “La ciudad y los perros”, no distante ano de 1968, ainda havia alarido, risos e cheiro de fritura no bar do Antonio. Mas, apesar de jovem, eu estava convicto de que, em meio aquele ambiente prosaico, havia encontrado um escritor cujo texto apresentava larga coerência interna e não menor polissemia, texto que punha em pé um mundo paralelamente naturalista e autônomo em relação à realidade concreta. Mais do que isso: texto que oferecia aos leitores um testemunho contundente do quanto novas formulações estéticas poderiam
insuflar no romance (gênero aparentemente em estado terminal) incontornáveis sopros de invenção, vida e frescor.
PEQUENO ROTEIRO PARA LER VARGAS LLOSA
1. A cidade e os cachorros – Relato de grande intensidade emocional, tanto pela representação de um microuniverso (o colégio militar Leoncio Prado), eticamente decomposto e dominado pela brutalidade, quanto pela síntese operada pelo autor entre os elementos críticos do realismo tradicional e um inesgotável repertório de inovações técnicas.
2. Conversa na Catedral – Admirável e polifônico romance de teor político sobre a ditadura do general Odría, no Peru – 1948-1956, quando um espesso manto de censura, obscurantismo, corrupção e mediocridade cobre a realidade nacional, degradando, de alguma maneira, todos os inúmeros personagens que povoam a narrativa. O início da obra é um dos mais famosos da ficção latino-americana.
3. Os filhotes – Originalmente Los cachorros – Pichula Cuéllar. Pequena novela, de soberba complexidade narrativa, focando a experiência dolorosa de um menino castrado por ferozes cachorros em um internato lassalista e que, ao se tornar adolescente, usa sua história como forma de destacar-se no colégio, até que, na
juventude, toma plena consciência de sua tragédia pessoal.
4. Pantaleão e as visitadoras – Hilariante sátira à burocracia militar que, por meio de um capitão disciplinado e inflexível, articula um serviço de visitadoras (prostitutas) a unidades do exército peruano localizadas nos confins selváticos do país. É a primeira incursão do autor na dimensão do humorismo.
5. Tia Júlia e o escrevinhador – Uma das obras capitais do escritor, intercala folhetins baratos produzidos por talentoso autor boliviano de radionovelas, que vive em Lima e que vai enlouquecendo e misturando os enredos, e a história real, ainda que também folhetinesca, da paixão do jovem Vargas Llosa por uma tia
emprestada. O texto é uma notável reflexão sobre o sentido da ficção na existência humana.
6. A guerra do fim do mundo – Na visão do próprio autor, é o melhor relato que escreveu até hoje. Para alguns críticos europeus trata-se do grande romance histórico do século XX. Releitura ficcional de “Os sertões”, de Euclides da Cunha, dentro de esquemas formais clássicos, centra-se na certeza de que a guerra de
Canudos resultou da cegueira ideológica de ambas as partes. Além da larga totalização existencial e histórica, o texto apresenta uma galeria inesquecível de personagens.
7. Travessuras da menina má – Belo romance, transcorrido em várias cidades e países, sobre um amor extremado que atravessa décadas de rupturas, traições e surpreendentes retornos, tendo como pano de fundo as grandes mudanças culturais e nos costumes ocorridos sobretudo nas décadas de 1960 e 70. O final do livro é espetacular, pois só então descobrimos o sentido da paixão que alimenta os dois protagonistas.
* A primeira e excelente versão para a língua portuguesa de “La ciudad y los perros”, feita por Remy Gorga Filho, apareceu em 1972, sob o título bizarro de “Batismo de fogo”. Mais recentemente, o livro sofreu outra tradução que
retomou o título original.