Um Chico Buarque cada vez mais eterno

Um Chico Buarque cada vez mais eterno

Ícone da MPB apresentou 30 canções para mais de 3 mil pessoas no Araújo Vianna

Luiz Gonzaga Lopes

Chico Buarque mostrou que está em plena forma em 30 músicas e 1h43min de um show inesquecível

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Quando faltarem as palavras, use o coração, me diz uma vozinha interna sempre quando fica difícil descrever a grandeza de algo. O show de Chico Buarque de Hollanda que abriu a turnê “Caravanas” em Porto Alegre, no Araújo Vianna, na noite desta sexta-feira, com 30 músicas e 1h43min de duração foi no mínimo para dizer que Chico está cada vez mais eterno, atual, certeiro, um compositor/criador/autor de magnitude incomensurável. Os ecos que vinham da plateia eram realmente de conhecer todas as músicas e ter um contágio quase viral de admiração, cantar junto e ter uma noite inesquecível perto do seu ídolo. Assisto a shows do Chico há 30 anos, desde a turnê de “Francisco”, em fevereiro de 1988, quando me deparei com este gênio da MPB no Centro de Convenções do Jardim de Alah, em Salvador, e a cada show ele parece melhor, parece vinho e está cada vez mais eterno.

Abrindo às 21h15min, com “Minha embaixada chegou”, de Assis Valente, um samba de 1935 com letra que diz “Minha embaixada chegou, deixa meu povo passar, meu povo pede licença, para na batucada desacatar”. Desacatar ou não seguir esta ordem vigente, no samba ou no contexto atual também é uma marca de Chico e que empolgou o povo do Araújo. O samba que seguiu com “Partido Alto”: “Diz que Deus diz que dá, E se Deus negar, ô nega, Eu vou me indignar e chega, Deus dará, Deus dará”, com direito a um arranjo cheio de breques na hora em que a letra passeia por “bota a mãe no meio”, com Chico mostrando a plena forma, a desenvoltura e a cumplicidade com os olhares para as duas extremidades do palco: à sua esquerda, o violonista e diretor musical Luiz Cláudio Ramos e à sua direita o pianista João Rebouças.

O passeio musical pelo mundo Chico Buarqueano não podia prescindir do momento cubano abolerado com duas preciosidades: a primeira composta a quatro mãos com Pablo Milanés: “Yolanda”, cantada alternadamente uma estrofe em espanhol, outra em português; seguida por outra parceria com um músico fixo de sua banda, o baixista Jorge Helder, “Casualmente”: No volverá nunca más/ la canción sentimental/ que casualmente en La Habana/ Escuché cantar/ A una mujer/ Como ya no veré/ Otra vez nada igual”. Com amor e um pouco de nostalgia, Chico foi alternando as novas canções de “Caravanas”, com as antigas compostas com grandes parceiros de 53 anos de carreira, possibilitando assim “A Moça do Sonho”, “Retrato em Branco e Preto”, “Desaforos”, “Injuriado” e “Dueto”, esta última gravada no disco mais recente de 2017 com a neta Clara Buarque, mas que teve a voz de Bia Paes Leme para o jogo do choque de gerações, quando ela diz que “consta no Tinder, no Telegram, no Insta” e ele diz: “no e-mail, no fax, no Orkut” para a gargalhada geral da plateia.

O malandro aparece duas vezes em “A Volta do Malandro” e “Homenagem ao Malandro”, pois a figura do malandro parece que sai das ruas do Rio de Janeiro e acaba colando na classe política como um todo: “malandro candidato a malandro federal... "malandro com retrato na coluna social". Em alguns destes momentos o povo da embaixada de Chico entoou: “Lula Livre” e não houve manifestação contrária. Houve um clima de paz, pois a mensagem das letras de Chico é o mais importante.

Dois outros grandes momentos da metade do show foram em músicas de “Caravanas”. O primeiro foi em “Massarandupió”, quando Chico, emocionado, demonstrou todo o afeto ao neto e parceiro na composição, Chiquinho Brown, ás vésperas de completar 22 anos e as lembranças daquele menino em Salvador: “Devia o tempo de criança ir se arrastando até escoar, pó a pó/ Num relógio de areia o areal de Massarandupió”. O segundo momento foi a atenção e respeito à diversidade no blues “Blues pra Bia”, quando Chico conta a história de um cara que tenta sensibilizar uma mulher para ele, mas ela só tem olhos para outra mulher: “Que no coração de Bia/ Meninos não têm lugar/ Porém nada me amofina/ Até posso virar menina/ Pra ela me namorar?”. O público bateu palmas demoradamente ao final desta canção.

O parceiro Cristovão Bastos apareceu em duas músicas: “Todo Sentimento” e “Tua Cantiga”. A primeira arrancou suspiros do público por ser uma narrativa de amor e devoção: “Depois de te perder/ Te encontro, com certeza/ Talvez num tempo da delicadeza”. E por esta delicadeza no mundo e no amor, que Chico continua a compor uma enormidade, como se diz por aí. Esta música me fez voltar ao show de Salvador há 30 anos, que à época era um tempo de delicadeza, pelo menos para mim.

“Tua Cantiga”, por outro lado, foi a música criticada de “Caravanas”, chamada de machista, logo que o disco foi lançado, por causa deste trecho: “Quando teu coração suplicar/ Ou quando teu capricho exigir/ Largo mulher e filhos/ E de joelhos/ Vou te seguir”. Na época, Chico respondeu que tinha composto a partir da escuta de uma conversa em supermercado de que seria machismo ficar com mulher e filhos e também com a amante, enganando a todos.

O grande maestro, Tom Jobim, foi reverenciado em “Sabiá” e o show seguiu com clássicos como “Grande Hotel”, “Gota D´Água”, quando Chico botou o chapéu de malandro carioca e depois apresentou a banda formada João Rebouças (piano), Bia Paes Leme (teclados e vocais), Chico Batera (percussão), Jorge Helder (contrabaixo), Marcelo Bernardes (flauta e sopros) e Jurim Moreira (bateria), além do próprio diretor musical Luiz Claudio Ramos (violão). Após apresentar os músicos, ele lembrou do parceiro que não está mais entre os mortais, o baterista Wilson das Neves, falecido no ano passado, a quem ele dedica cada um dos shows da turnê. O lado meio funk, meio mar de Chico vem com a contundente “As Caravanas” com base de beat box e toada de ritual.

Em “Estação Derradeira”, a homenagem à Mangueira Estação Primeira, deixando em destaque o cenário de oito cordas e uma esfera armilar de Helio Eichbauer e a luz de Maneco Quinderé pontuando os verdes e rosas, provocando uma pintura digna de grandes museus. Chico é mensagem, social, político e também estética. Depois, emendou novamente “Minha Embaixada Chegou” e saiu do palco agradecendo ao público, mas o bis estava combinado, como sempre e veio com “Geni e o Zepelim”, de “A Ópera do Malandro” (1978) e “Futuros Amantes”. Se as pessoas jogam pedras na Genis metafóricas do Facebook e outras redes sociais, execram primeiro e depois vão conferir se era fake ou verdadeiro, Chico vem com a atualidade de uma música com 40 anos de idade.

Ele sai do palco mais uma vez junto com seus músicos mas é para voltar em “Paratodos”, uma homenagem a todos os seus mestres e parceiros, desde Noel, Cartola até o seu maestro soberano Antonio Brasileiro, Dorival Caymmi, Caetano, João Gilberto, Luiz Gonzaga, Gil, Bethânia, Nara, Erasmo, Roberto, Gal, Rita, para terminar dizendo que é um artista brasileiro, e já eternizado para seguir a toada deste humilde texto.

Para finalizar, quero dizer que Chico agradeceu ao público do gargarejo, correndo de um lado para o outro, tocando as mãos como jogadores de basquete ao entrar em quadra, após 1h43min de show e 30 músicas, mostrando que aos 74 anos de idade está na sua melhor forma, tanto física (nutrida com as peladas semanais do Polytheama) como intelectual e musical. E mostrando que está cada vez mais eterno. Neste sábado, às 21h, e domingo, às 19h, tem mais duas odes à eternidade de Chico. Não perca nem por brincadeira, quem já tem ingresso. Quem não tem, tente na hora (estão esgotados, mas...), pois vale muito a pena viver este momento.

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