“Love bombing”: demonstrações exageradas de afeto podem ser uma forma de manipulação; entenda

“Love bombing”: demonstrações exageradas de afeto podem ser uma forma de manipulação; entenda

Comportamento é comum no início de relacionamentos abusivos e pode causar dependência emocional, diz psicóloga

Camila Souza

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Existem formas de identificar comportamentos abusivos em relacionamentos, mas se torna muito mais difícil quando a manipulação vem através de demonstrações exageradas de afeto. Essa prática tem se popularizado com o nome “love bombing” (bombardeio de amor, na tradução) e acontece quando uma pessoa dedica atenção e carinho à outra de forma excessiva e desproporcional no início de um namoro. 

De acordo com a psicóloga Natalia Marques, esse comportamento tem a função de jogar com o ideal do amor romântico que as mulheres são socializadas para ter. “É um conjunto de comportamentos que fazem a mulher se sentir absolutamente especial e acreditar que finalmente encontrou o príncipe encantado”, explica. 

Frases como “você é a pessoa que mais amei na vida” e “nunca me senti desse jeito com ninguém” são comuns nessa prática, que pode ser um instrumento de manipulação. “A mulher fica tão emocionalmente envolvida que vai começar um circuito de dependência emocional em relação a esse homem, que passa a ter um poder psicológico sobre ela”, diz. Diferentemente do “ghosting”, a outra pessoa não some depois de conquistar a vítima, mas diminui as atitudes de carinho, que antes eram intensas, e começa a apresentar um comportamento abusivo.

Natalia também destaca que no “love bombing”, o que é dito não tem coerência com os fatos vividos. Pode envolver mentiras do tipo “você foi a primeira pessoa com quem eu vim neste lugar” e “você a única pessoa para quem eu contei esse segredo”. De acordo com a psicóloga, mesmo que a mulher não tenha como saber se é verdade ou não, ela deve observar o quanto aquela atitude é coerente para o momento do relacionamento. “Será que vocês se conhecem há tempo suficiente para ter desenvolvido esse nível de intimidade, para essa pessoa falar algo que nunca falou para ninguém?”, questiona.

Nessa prática, o afeto excessivo tende a acontecer só no início, como uma armadilha de captura da vítima. “Uma vez que o homem já tem esse poder sobre ela, essa demonstração vai se tornando escassa e até ausente, porque os abusos começam a aparecer”, diz Natalia. Já em relações saudáveis, esse carinho vai sendo demonstrado no decorrer de todo o namoro de forma natural.

Como identificar e se proteger? 

Para se proteger dessa técnica de manipulação, é preciso saber a dinâmica de um relacionamento abusivo. E um dos alertas é esse tipo de demonstração exagerada de amor. "É desconectado da realidade vivida porque é uma demonstração muito intensa para um relacionamento que está no início, em que as pessoas ainda estão se conhecendo”, explica Natalia. De acordo com ela, é o entendimento dessas contradições que vai deixar a mulher capaz de reconhecer esses sinais e interromper já nesse momento.

Contudo, ela ressalta que é muito difícil esperar essa atitude por parte das vítimas e que elas não devem se sentir culpadas por não terem interrompido a relação. “Quando estamos sob uma enxurrada de amor, dificilmente nosso comportamento vai ser fugir daquilo. É importante dizer isso, para que as mulheres não se sintam culpadas por não terem interrompido nesse primeiro momento, mas que estejamos alertas para quando essas situações estiverem em curso”, afirma.

Idealização do amor e dependência emocional

O “love bombing” é difícil de ser identificado e interrompido porque joga com a autoestima e o ego das vítimas, segundo a psicóloga. Filmes, livros e crenças sociais contribuem para que as mulheres criem uma referência de amor romântico ideal. Por isso, quando estão inseridas em situações de manipulação, há a dificuldade de identificar. “Somos socializadas para sermos escolhidas por um parceiro, naquela perspectiva da rivalidade entre mulheres. Quando alguém diz que somos as melhores, é muito sedutor. É difícil permanecer em alerta diante de um discurso que mobiliza tanto as nossas emoções”, explica.

Conforme Natalia, o comportamento abusivo e manipulador está relacionado com a estrutura social. Ela lembra que as mulheres são responsabilizadas pela manutenção da família, ficam na expectativa pela conquista do amor romântico, enquanto os homens são socializados no referencial de virilidade, de agressão e de dominação. “O relacionamento abusivo é mais uma das expressões dessa perspectiva de socialização, que ensina homens a se relacionar a partir dessa lógica da dominação”, explica. 

A dependência emocional é a principal consequência para as vítimas do “love bombing”. “Todo aquele referencial de amor romântico que nós somos socializadas para desejar vai sendo simbolicamente relacionado à figura desse homem, que vai se tornando o centro da vida dela”, destaca a especialista. E para manter esse amor ideal, as vítimas começam a abrir mão de sonhos, de planos pessoais, de sua rotina e convívio com outros indivíduos: “Ao mesmo tempo em que está havendo um bombardeamento de amor, está se criando uma um contexto de isolamento social.”

Assim, tendo apenas uma fonte de carinho e atenção, a vítima tende a fazer qualquer coisa para manter o manipulador na sua vida. Conforme Natalia, esse contexto é muito perigoso, porque está criada a situação de dependência emocional. “Mesmo sofrendo abusos, perdas de vínculos sociais e de coisas que eram importantes para essa mulher, ela não consegue se desvincular dessa figura que simbolicamente é o seu grande amor.”

Para se desvincular de uma situação abusiva é preciso que as mulheres tenham ciência de quais são suas próprias necessidades e ficar em alerta para perceber se o relacionamento em que ela está respeita ou viola esses pontos. “Isso requer um trabalho de autoconhecimento também, para sermos capazes de saber o que de fato é importante para nós até onde as pessoas podem ir com a gente”, destaca.


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