A alma límpida dos bichos

A alma límpida dos bichos

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Desembucho um novo causo

Porque a vida não termina

E se esta é minha sina

Morrerei dizendo história

Pode não ser muita glória

Nem uma lenda campechana

Mas meu peito não se engana

Se eu atiro frases de olada

Pois faço das "Campereadas"

Uma Sherazade pampeana

 

 

Bichos

A alma dos bichos (acredito que todos a tenham) é mais límpida e pura que a alma dos homens. Tem gente que nem alma tem. Mas os animais são criaturas divinas que não fazem mal a ninguém, a não ser, é claro, que sejam forçados. Afirmo porque me criei cercado pela bicharada. Eram cavalos, vacas, passarinhos e gostava, ainda guri de calça curta e pé no chão, de correr ladeado pelos cães nas férias de verão pelos campos e matos da minha infância. Os cuscos queriam caçar preás, mas sempre os repreendia, me apiedava dos bichinhos tão frágeis sendo mortos sem nenhum motivo. Nem gostava das caçadas de tatus. Pensava comigo, porque comer esses animaizinhos, porque acabar com a nossa fauna nativa? Então não permitia que meus cachorros aprendessem a caçar. Para alimentá-los, passava as tardes de domingo moendo milho numa máquina manual, depois cozinhava o farelo com farinha e fazia uma "polenta" misturada com restos de carnes e ossos. Essa comida era distribuída durante a semana. Assim, ficavam gordos e felizes, sem caçar. Até hoje não esqueci de nenhum deles e seus nomes, da forma amiga de como me olhavam com seus olhos mansos.

No dia que vi um passarinho se estrebuchando depois que lhe acertei uma pedrada, joguei fora meu primeiro e único bodoque. Lembro que ele, ferido, pulava e batia as asinhas e voltava a cair no chão ensanguentado. Tentei reanimá-lo, mas era tarde. De nada adiantou dar-lhe água no bico e em pouco mais de uma hora morreu. Enterrei-o debaixo de um pé  de laranjeira e me culpei durante anos por aquela maldade. Por anos, em sonhos, ele me aparecia e vinha morrer outra vez na minha frente. Em muitas ocasiões me senti como aquele pássaro, ferido de morte, sentindo  pontadas de pedra, ferro e frio no corpo, sangrado e perdido. É duro a gente sentir dor e não ter amparo, não ter a quem pedir socorro, estar abandonado à própria sorte. Muitas pessoas se imaginam além do bem e do mal, impingindo sofrimentos aos seus semelhantes, ditando ordens e leis. Escolhem esse caminho. Por meu lado, prefiro caminhar por uma estrada de chão batido, a pé, ao lado dos bichos, ouvindo o barulho da sanga, o ruído das folhas sopradas pelo vento e o canto das cigarras. Não preciso de luxos, de sofás de couro nobre, de ar-condicionado, de aparelhos modernos para o meu lazer. Preciso apenas de uma boa sombra amiga para descansar meu corpo e de uma água fresca para matar a sede.

Prezo muito mais a simplicidade e a magia da vida. Nunca deixe um cusco ou uma pessoa morrer ao relento. E rogo que ofertem aos  bichos todo o amor que ainda guardem no coração. Porque quem tem um amigo bicho nunca fica sozinho neste mundo e tem a maravilhosa sensação de ficar por um instante bem perto de Deus.

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