A enchente
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Quando deixara a Estância da Guabiroba imaginara que aqui teria mais emprego, mais dinheiro. O patrão vendera a estância e viera morar na Capital. Sentira que ali os seus sonhos de peão se foram embora para sempre. Queria comprar uma chacrinha, ver o guri mais velho estudar, quem sabe até fazer uma faculdade. Uma lágrima brota do olho esquerdo de Fugêncio e escorre devagar pelo rosto cheio de sulcos. Neste momento lembra que Antônio se perdeu na cidade, fez más companhias, passou a se drogar e depois a trabalhar para um traficante. Acabou preso. Pensa agora nos pequenos, olha para a mulher na cozinha do canto, ajudando as outras a fazer um sopão comunitário. Aninha era uma moça tão bonita, filha do seu Miro, o bolicheiro. Agora tem um olhar tão triste. Aqueles cabelos que pareciam um trigal maduro perderam o viço e Fugêncio se culpa disso. Se esta chuva malina parar ele vai começar tudo de novo.
Estão ali há duas semanas. Já tinha visto tantas cheias, até aquelas lá de quando morava no campo, quando as várzeas se tornavam lagoas imensas, o passo ficava sem vau por meses, pontes levadas pelas águas, gado morto. Mas igual a esta? Ninguém salvou nada, alguma coisinha pouca. No Ginásio fica este cheiro de cusco molhado, essa melancolia suspensa no ar. Então, bem neste momento, enxerga uma camioneta estacionar. Calcula ser mais alguém trazendo comida, roupas. Mas reconhece seu antigo patrão. "Te vi na TV, Fugêncio. Comprei uma granja na Vila Rica e vim te buscar para trabalhar comigo de novo. O que acha?" Quando passam a ponte do Guaíba, no caminho inverso, Fugêncio não carrega nada. Ele (e o restante da família) leva apenas a roupa do corpo e a esperança emalada. Aquela mesma, a que nunca morre, a que retempera sempre a alma da nossa gauchada ...