A memória dos invernos
publicidade
Por isso, sempre que o céu veste seu poncho enregelado sobre a grande noite do Sul, lembro dos invernos da Vila Rica. Das geadas que branqueavam os campos, das noites silenciosas sem nenhum piar de coruja, do velho poncho furado que era meu cobertor, das botas emborrachadas que calçava ainda escuro para ajudar a mãe a tirar leite na mangueira, do meu palinha bichará, do blusão de lã crioula, feito à mão, dos ventarrões, da neve caindo sobre o arvoredo e de todos os aguaceiros que ainda hoje encharcam a minha saudade. Era um período que andávamos encolhidos, amarrados dos pés à cabeça, que retirávamos dos baús e armários velhos capotes, campeiras puídas, camisas rasgadas e até alguns palas de lãs já em frangalhos. Época em que o dia começava tarde e a noite chegava sempre muito cedo. Era preciso muita lenha seca para atiçar as labaredas, era necessário muito carvão para aquecer as noites de garoa com vento e as madrugadas geladas. O campo vira um monstro cruel nas invernias, machucando a alma dos humanos e açoitando o couro dos bichos que gemem pelos oitões.
No final das tardes, depois de encerrar as leiteiras no galpão, de alimentá-las, depois de despejar no cocho do Tostado um balde de milho quebrado, após dar de comer à toda a bicharada, corria para encher o fogareiro de carvão e esperar a hora de acender o fogo. Era uma festa assoprar as primeiras brasas que se espalhavam e as faíscas subindo em ziguezague para o teto de zinco, parecendo que as estrelas estavam dentro da cozinha.
Se pudesse, diria agora aos alunos de Canoas e ao meu amigo Daniel, que a memória dos invernos campeiros do meu pago remete às chamas multicores que consomem as achas de lenha, as labaredas avermelhadas que bailam sobre os fogões através dos anos, de geração em geração, um fogo que nunca se apaga. Nesta memória está o tempo perdido, estão os vazios da alma e, como sempre, tudo é muito tarde demais. É algo que nos consome, é a cinza das cinzas, mas esta memória também guarda o que nos desperta...