Amado Fortuna

Amado Fortuna

Nos domingos de manhã, ele empurrava a cadeira de rodas até o açude e, debaixo de um açoita-cavalo, ficavam mateando e conversando

Paulo Mendes

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Depois de apertar os arreios do tordilho, Amado alça a perna, monta, e segue para o rumo das casas. Menos ela. Ela dorme para sempre ali naquele coxilhão onde fizera seu túmulo, para que ficasse junto àqueles campos que tanto amava, junto ao gado, às perdizes, às flores silvestres e ao céu imenso. Ele volta tranquilo, com o coração apaziguado, ele que, apesar do nome, fora pouco amado no mundo. Talvez por viver quase sempre nas soledades tenha pouco aprendido sobre carinhos. Porém, quando encontrou Céu, ela deu-lhe tudo o que até então havia faltado. Foi assim, vou contar: 

Se não me falha a memória foi num setembro, numas carreiras lá no Espinilho Grande. Amado caminhava para a cancha quando percebeu aqueles olhos de jade atrás do vidro da caminhonete. Mais tarde, após a carreira, quando o zaino dos Waihrich ganhou de dois corpos de um alazão de São Borja, Amado viu de novo os olhos esverdeados e, tirando o chapéu de aba larga, perguntou, de chofre: “Qual sua graça, senhorita?” Ela, timidamente, respondeu: “Céu...” Era uma voz melodiosa, como um trinar de corruíra, delicada e bela. Ficaram conversando, ele de pé, ela dentro da caminhonete do pai. Um mês depois, Amado vestiu sua melhor pilcha, fez a barba, e pegou um trem para Cruz Alta. Chegando, alugou um carro de praça e foi para a Estância Santo Antônio, onde tinha um compromisso que iria mudar sua vida. Apresentou-se ao pai da moça, disse quem era. “Amado Fortuna, do Rincão do Cerrito”, na Vila Rica, tinha uma fazendola, solteiro e vinha pedir a mão de Céu em casamento. Don Antônio, homem calmo e espirituoso, carreirista, explicou que sua filha não podia casar, tinha uma doença de nascença, perigosa, não caminhava, por isso ficava dentro do auto quando iam às carreiras. “Não me importo, seu Antônio, eu já sei disso, sou um homem que só precisa de amor. Chame Céu, pergunte a ela, porque de minha parte caso em dois meses.” 

Foram tão felizes no pouco tempo que viveram juntos, ah, isso foram, todos puderam atestar. Ela trouxe para a São Francisco apenas uma grande mala de madeira com suas roupas, uma foto dos pais, e o cusquinho Mancha, ainda novinho. Depois, ganhara da família algumas louças, roupas de cama e um pequeno santuário de Nossa Senhora de Fátima. Nos domingos de manhã, ele empurrava a cadeira de rodas até o açude e, debaixo de um açoita-cavalo, ficavam mateando e conversando. Ela jogava milho para os patos e recitava poemas de Dimas Costa e Luiz Menezes. Amado aplaudia e ficava mirando seus olhos encharcados e, por vezes, chegava a chorar também de tanta felicidade. 

Ele a amava como um cão faminto que chega e volta farejando o alvorecer. Ela se transformou mesmo em seu mundo, terra e céu. Houve uma noite, diferente das outras, que se amaram ainda mais, pois ao contrário das outras, dormiram nus e ela o recebeu de um jeito que ele jamais esqueceu. Quando acordaram, ainda abraçados, ela estava em febre. Nada a salvou. O médico disse que a doença voltara, que era para ter vindo antes, mas que o casamento tinha prolongado sua vida. E agora, todos os anos, em junho, ele vem neste lugar, deixar flores e rezar por ela. Amado sabe, no entanto, que segue ainda mais amado. Por isso, agora retornam, ele, o tordilho e o Mancha, felizes, como quem vai para o céu...

 


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